O Condomínio residencial e a hospedagem por aplicativo

06/07/2020 às 11:37
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A hospedagem por aplicativos tem se apresentado como algo complexo nas relações condominiais.Neste artigo apresento breves considerações sobre a possibilidade de normatização pela massa condominial frente a possíveis limitações ao direito de propriedade.

Vivemos em tempos modernos onde o avanço da tecnologia e o conceito de uso compartilhado são inevitáveis e afetam diretamente nosso dia-a-dia. Não raramente este avanço colide com nossos conceitos e estruturas, gerando conflitos e sensação de insegurança e é dentro deste contexto que surge a questão locações de imóveis por meio de aplicativos (especialmente Airbnb) em apartamentos residenciais.

O assunto é polêmico e, por ser novo, ainda não temos uma legislação específica, o que leva os juristas a apresentarem todo tipo de interpretação.

Os defensores desta prática respaldam seus argumentos em dois pontos:

  1. direito de propriedade, aduzindo que tal direito lhe confere o poder de usar, gozar e dispor de seu patrimônio da maneira que melhor lhe aprouver; e,
  2. que a locação por aplicativos equipara-se a locação por temporada, previsto no artigo 48 da Lei 8.245/91 que possibilita a locação de imóveis residenciais por período não superior a 90 (noventa).

Porém, não podemos nos esquecer que o direito de propriedade não é absoluto e encontra limites no direito da coletividade, como indicado no inciso IV do artigo 1.336 do Código Civil que estabelece ao condômino a obrigação de “dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes”, um nítido limitador ao direito de propriedade.

Resta, portanto, apenas o segundo argumento – equiparação a locação por temporada, que analisaremos mais adiante.

Por seu turno os críticos das locações por aplicativo argumentam que:

  1. via de regra, os condomínios trazem em suas convenções que as unidades terão uso exclusivamente residencial e, portanto, a disponibilização de partes ou a totalidade do imóvel para este fim acarretaria uma afronta à destinação do bem, já que possui um cunho econômico, assemelhado à atividade comercial;
  2. as locações por aplicativos assemelha-se a atividade hoteleira, rechaçando assim a aplicação da lei do inquilinato (Lei 8465/91), sujeitando-se à 11.771/2008.

Todavia tais premissas também não podem ser tidas por absolutas. Vejamos:

Se considerarmos a locação por aplicativos uma atividade comercial capaz de infringir a convenção condominial que dá ao empreendimento finalidade residencial, como ficaria a situação dos profissionais que trabalham em home office? E aquela senhora que lava e passa roupas para fora? E ainda alguém que trabalha com encomenda de comidas que são produzidas em seu apartamento. Se adotarmos essa corrente, corremos o sério risco de caracterizar todas essas atividades como capazes de desvirtuar a finalidade do empreendimento.

Quanto ao segundo ponto - que as locações por aplicativo não se encaixem na Lei do Inquilinato[1], mas sim na Lei de Hospedagem[2] - encontrando este entendimento respaldo em parecer emitido pela Comissão de Direito Imobiliário da OAB, também nos reservamos ao direito de discordar parcialmente, pois embora seja um argumento forte, vale lembrar que a Lei de Hospedagem prevê a existência de prestação de serviços aos hospedes, algo que não se faz necessário nas locações via aplicativo.

Ainda nesta teoria de equiparar a locação por aplicativos à lei de hospedagem encontramos o argumento que a lei do inquilinato não prevê a locação de imóvel por períodos e horas, mas sim por dias, meses e anos.

É fato, não há na Lei 8245/91 previsão alguma quanto a possibilidade de locação por horas e períodos, mas não podemos nos esquecer que referida lei foi promulgada em 1991 e sua mais recente modificação aconteceu em 2012, sendo que o Airbnb começou ganhar notoriedade no Brasil apenas em 2012. Ora, sendo a legislação um instrumento de materializar e organizar as relações e conflitos existente, não haveriam motivos para que a lei do inquilinato tratasse desta possibilidade de locação.

O assunto torna-se ainda mais nebuloso quando analisamos a jurisprudência, igualmente dissonante e diante de todo este contexto, levantamos uma outra linha de argumentação.

O parágrafo 1º[3] do artigo 1.331 do Código Civil estabelece que os abrigos para veículos (vagas de garagem) só podem ser alienadas ou locadas para terceiros estranhos ao condomínio se a convenção expressamente autorizar.

Temos aqui uma clara indicação que o espírito da lei foi velar pela segurança do condomínio, evitando que terceiros, com vínculos perenes com o empreendimento, tenham livre acesso às dependências do condomínio.

Evidente que o inquilino que loca o imóvel por horas e/ou dias não tem um vínculo com o condomínio e seus demais ocupantes, mas sua relação é única e curta. Portanto, por analogia às vagas de garagem, poderíamos dizer que para possibilitar a locação por aplicativos necessário seria uma autorização expressa na convenção condominial.

Percebemos ainda um direcionamento, ainda que tímido, das decisões judiciais que apenas a Convenção Condominial teria poder suficiente para limitar o direito de propriedade e vetar a locação por aplicativos. Assim, caso seja de interesse da maioria, sob quaisquer argumentos que se levante, poderá sim estabelecer sua vedação, mediante assembleia convocada com pauta específica para este fim e que a votação observe o quórum de 2/3 previsto no artigo 1351 do Código Civil[4]

Certo é que não basta a Convenção atribuir ao empreendimento característica “exclusivamente residencial”, pois, seguindo o padrão de decisões judiciais que temos sobre o tema, é necessário que se vede especificamente este tipo de locação, motivo pelo qual exige-se o quórum qualificado para sua ampla validade.

Por fim ressaltamos que, em que pese a existência de argumentação jurídica para ambos posicionamentos, não podemos fechar os olhos para a realidade que se apresenta, nem mesmo nos esquecer que estamos falando do domicilio das pessoas, local de tamanha importância que, inclusive, é amparado como inviolável por nossa Lei Maior

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Devemos nos atentar ainda que a segurança dos condomínios deve ser velada e que não são poucos os casos de locação por aplicativos que o escopo final é invasão para prática de ilícitos.

Como costumamos dizer, condomínio é um organismo vivo, cada um com características próprias. Assim, não há como se estabelecer uma única regra para este assunto, mas cabe ao gestor avaliar e entender à realidade de cada empreendimento e, consequentemente, direcionar o tema de modo que atenda a coletividade daquele local.

Sendo o empreendimento situado em regiões de grandes fluxos de pessoas, como centros de eventos e exposições; aeroportos; hospitais especializados; dentre tantas outras hipóteses, notadamente negar aos proprietários o direito de locar seu imóvel via aplicativos gerará conflitos, prejuízos e questionamentos judiciais. Neste caso o melhor a se fazer é estabelecer em assembleia regularmente convocada para este fim, as normas para cadastro dos locatários, procedimentos de segurança, formas de acesso, (im)possibilidade de uso das áreas comuns e penalidades para os casos de abusos, com responsabilização direta do proprietário.

Por seu turno, empreendimentos fora dessas características dificilmente gerará interesse neste tipo de locação e a discussão se torna inócua.

Não buscamos no presente artigo defender ou atacar a pratica de locação via aplicativos, mas chamar a atenção do leitor e leva-lo a pensar no aspecto jurídico do assunto, bem como alertar os gestores (síndicos e administradoras de condomínios) que cada empreendimento é único e não existe receita pronta para um assunto tão polêmico. Deste modo, é de nodal importância empenhar-se em garantir que a coletividade seja atendida em seus interesses, mas, principalmente no que concerne à segurança e uso pacífico do imóvel.


[1] Lei 8.245/91.

[2] Lei 11.771/2008 e Decreto nº 7.381/2010

[3] “As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio.

[4] Art. 1.351. Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção; a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da aprovação pela unanimidade dos condôminos.

Sobre a autora
Juliana Egea Almeida

Advogada com atuação em direito imobiliário e condominial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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