No dia 12 de junho foi publicada no D.O.U a Lei nº 14.010 de 10 de junho de 2020, que dispõe sobre Regime Jurídico Emergencial e Transitório – RJET - das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do corona vírus ( Covid- 19).
Esta Lei é fruto do Projeto n.º 1179, de 2020, de autoria do Senador Antonio Anastasia[1], e trouxe diversas determinações com o objetivo de amenizar eventuais desgastes entre os cidadãos em suas relações jurídicas privadas nesse período de calamidade, tendo em vista as dramáticas consequências da pandemia do Coronavírus (Covid-19) que se fazem sentir na economia mundial.
Destaca-se que a intenção do legislador foi no sentido de que o projeto de lei inicial se norteasse pelos seguintes princípios, a saber:
(i) manter a separação entre relações paritéticas (de Direito Civil e de Direito Comercial) e relações assimétricas (de Direito do Consumidor e das Locações Prediais Urbanas);
(ii) não alterar as leis vigentes, dado o caráter emergencial da crise gerada pela pandemia, mas apenas criar regras transitórias que, em alguns casos, suspendam temporariamente a aplicação de dispositivos dos códigos e leis extravagantes;
(iii) limitar-se a matérias preponderantemente privadas, deixando questões tributárias e administrativas para outros projetos e;
(iv) as matérias de natureza falimentar e recuperacional foram deixadas no âmbito de projetos já em tramitação no Congresso Nacional.
Em que pese mantida a essência, a então Lei 14.010/2020, sofreu consideráveis vetos do Presidente da República, os quais foram apontados na mensagem de veto nº 331[2] de 10.06.2020.
O objetivo tratado aqui se limita a previsão contida no Capítulo II, que trata da prescrição e decadência estabelecida no art. 3º e seus parágrafos e seus reflexos no âmbito do direito condominial, em especial para tomada de ações que envolvam cobranças de taxas condominiais e ações reparatórias ou inibitórias oriundas de vícios construtivos.
Apenas para lembrança histórica, o Código Civil de 1916 não dissociava prescrição e decadência, pois entendia que se tratava de uma ideia unificada. Por sua vez, o Código Civil de 2002 sistematizou o tratamento dos institutos parametrizando de forma que foram construídos a contar de uma definição do que é prescrição e decadência.
Os prazos previstos nos artigos 205 e 206 do CC são prazos prescricionais e todos os outros prazos referem-se à decadência.
A prescrição, segundo Clóvis Beviláqua, é a perda da ação atribuída a um direito e de toda sua capacidade defensiva, devido ao não-uso delas, em um determinado espaço de tempo. A decadência, também chamada de caducidade, ou prazo extintivo, é o direito outorgado para ser exercido em determinado prazo, caso não for exercido, extingue-se.
O objetivo dos prazos prescricionais e decadenciais é conferir segurança jurídica, para estabilização das relações jurídicas fundada na busca da paz social. Dentre as diferenças entre prescrição e decadência destacamos algumas:
- Prescrição: (i) a ação e o direito subjetivo não são objetos de prescrição e a pretensão, é consubstancia no poder de exigibilidade decorrente da violação do direito; (ii) as causas de interrupção, suspensão e impedimento poderão levar à paralisação do prazo; (iii) a fonte de sua existência é a lei, inexistindo, portanto, prescrição convencional; (iv) sobre os direitos subjetivos patrimoniais a sua incidência está relacionada à dificuldade de reconhecimento de ofício pelo juiz, pois o Estado, ao reconhecê-la de ofício, interfere em uma relação jurídica de direito patrimonial, a qual, teoricamente, não deveria interferir, pois a intervenção é incompatível com a natureza jurídica dos direitos patrimoniais e (v) o início é estabelecido a partir da violação do direito, motivo pelo qual se tem dificuldade no estabelecimento do momento em que o direito é violado.
- Decadência: (i) se trata de direito potestativo que influi na esfera jurídica de outrem, o qual não possui alternativas à intromissão, ou seja, há uma sujeição ao direito potestativo; (ii) em regra, não há possibilidade de interrupção ou suspensão; (iii) a fonte de sua existência é a lei ou convenção; (iv) os direitos subjetivos atingem os patrimoniais e não patrimoniais; (v) poderá ser reconhecida de ofício, salvo a decadência for convencional.
Diante dos esclarecimentos preliminares acima, quais seriam os reflexos do art. 3º, da Lei 14.010/2020 nas relações de direito condominial?
Prescrição das cotas condominiais:
O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que o prazo prescricional para cobrança de cotas condominiais depende do momento em que nasce cada pretensão.
Para a Terceira Turma do STJ, por se tratar de obrigação de trato sucessivo, é possível incidirem, na mesma ação de cobrança de cotas condominiais, dois prazos prescricionais diferentes, a depender do momento em que nasce cada pretensão, individualmente considerada, observada a regra de transição prevista no artigo 2.028 do Código Civil de 2002.
Esta foi a decisão no Recurso Especial de nº 1.677.673[3] - DF, de 14.05.2019, onde a relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que a pretensão de cobrança das cotas condominiais se renova conforme a periodicidade em que é devido seu pagamento – em regra, mês a mês – e, por isso, nasce a partir do vencimento de cada parcela.
“Em se tratando de obrigação de trato sucessivo, podem incidir, no contexto da mesma relação jurídica, dois prazos prescricionais diferentes – 20 e cinco anos –, a serem contados a partir de dois marcos temporais diferentes – a data do vencimento da cada prestação e a data da entrada em vigor do CC/2002 –, a depender do momento em que nasce cada pretensão, individualmente considerada”, afirmou.
“Sob a ótica do direito intertemporal, portanto, há, no particular, prestações cuja pretensão de cobrança se sujeita a prazo prescricional de 20 anos, a contar da data de seu vencimento; há outras cuja pretensão de cobrança se sujeita a prazo prescricional de cinco anos, a contar da data de entrada em vigor do CC/2002 e, por fim, outras sujeitas ao prazo prescricional de cinco anos, a contar da data de seu vencimento”, explicou.
Neste aspecto, mister se faz, esclarecimentos sobre as causas que suspendem ou que impedem a prescrição.
As causas que suspendem a prescrição são aquelas onde a violação do direito ocorre após a configuração da situação fática prevista em lei, exemplos, artigos 197 a 200 do CC/2002. Por sua vez as causas que suspendem a prescrição são as que a violação do direito ocorre quando já configurada a situação fática prevista na lei, i.e., art. 202, do CC.
Com advento da lei 14.010/2020 há que se observar, para fins de contagem do prazo prescricional visando a cobrança de cotas condominiais os termos do seu art. 3º, que estabelece que os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020.
Desta forma, o credor condominial poderá se valer da regra de suspensão e interrupção prescricional prevista na lei 14.010, que expandiu a régua de contagem de prazos, a partir da vigência da lei (12.06.2020) até o dia 30 de outubro de 2020.
Em época de pandemia a norma suspensiva e interruptiva prescricional pode servir como oportunidade, para que as partes envolvidas possam ter mais tempo a se comporem amigavelmente, evitando a imediata interposição da via judicial executiva extrajudicial ou de cobrança, mais onerosas e traumáticas para o condômino e condomínio.
Prescrição e decadência sobre os vícios construtivos:
O Código Civil, Código de Defesa do Consumidor e os Tribunais de Justiça, determinam que as construtoras devem manter a garantia quinquenal aos compradores.
A previsão legal encontrada no Art. 618, do CC/2020, indica que nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.
Já a norma consumerista prevista no Art. 27, estabelece que prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo, a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.
Com a vigência da lei 14.010/2020, estes prazos prescricionais também encontram-se suspensos ou interrompidos, o que também abre janelas de oportunidades para composição amigável entre as partes evitando inúmeros custos, dentre eles os judiciais e periciais, com por exemplo nas ações judiciais mais comuns para estes casos, como as de produção antecipada de provas, prevista no Art. 381, inciso III[4], § 2º e 5º[5], do Código Instrumental Civil, segundo o qual a produção de antecipada de prova poderá ser utilizada nos casos em que o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação.
Com os prazos prescricionais e decadenciais suspensos e interrompidos, excetuados os previstos no art. 3º; § 1º, da lei 14.010/2020, que não se aplicam enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional, o condomínio, condômino, construtoras e até mesmo contratantes terão condições de trabalharem com transparência e boa-fé objetiva na resolução de seus problemas, uma vez que até 30.10.2020 os prazos prescricionais e decadenciais do direito e das pretensões executivas das partes estarão paralisados.
Por fim, cabe esclarecer que não se nega a preocupação do legislador ao editar a lei 14.010/202, que deve estar sempre atento as situações jurídicas contemporâneas. Todavia, também não se pode perder de vista que não é viável que uma lei restabeleça direitos e pretensões atingidos pela prescrição ou pela decadência, porque isso representaria uma retroatividade vedada no ordenamento por violar direito adquirido e esta pode ser talvez a maior crítica que se faça para o Art. 3º e seus parágrafos da lei em contento. Além do mais, as situações atuais podem ser socorridas pela própria doutrina, pois a suspensão da prescrição e da decadência é plenamente defensável atualmente.
De qualquer forma, a lei 14.010/2020 está em vigor, e se aplica aos condomínios e associações de moradores, e mesmo que por ventura sofra questionamentos no Poder Judiciário, deve se levar em consideração a mensagem legislativa que pretende acolher as relações jurídicas de Direito Privado no período de pandemia do corona vírus (Covid- 19) outorgando mecanismos para que as partes evolvidas possam decidir com tranquilidade e transparência suas relações comerciais, exercendo assim a função social dos contratos e pacificação dos problemas.
[1](PSD/MG)
[2]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-331.htm
[3]https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1823900&num_registro=201600883618&data=20190516&formato=PDF
[4]Art. 381, do CPC. A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que:
III - o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação. § 2o A produção antecipada da prova é da competência do juízo do foro onde está deva ser produzida ou do foro de domicílio do réu.
[5]Art. 381. A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que:
§ 5o Aplica-se o disposto nesta Seção àquele que pretender justificar a existência de algum fato ou relação jurídica para simples documento e sem caráter contencioso, que exporá, em petição circunstanciada, a sua intenção.