A oposição ao pedido de autofalência

17/07/2020 às 11:34
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Há possibilidade de oposição ao pedido de autofalência?

 A OPOSIÇÃO AO PEDIDO DE AUTOFALÊNCIA

 

 

A Lei 11.101/05, que trata da recuperação e da falência da sociedade empresária e do empresário, ao contrário do contido no Decreto-Lei 7.661/45, nada dispõe a respeito da possibilidade de oposição dos sócios/acionistas ao pedido de autofalência formulado pela pessoa jurídica. Portanto, o art. 8º, parágrafo primeiro, do decreto-lei ab-rogado não se faz presente no art. 105 da lei que rege a matéria. A bem da verdade, outro aspecto previsto no texto de 1945 não foi reiterado no texto legal em vigor. Diz com a “necessidade” de o devedor em crise, e estando na situação de inadimplente, ter a obrigação de requerer sua falência, no prazo de 30 [trinta] dias. Evidentemente que tal determinação era letra morta e foram raros os “comerciantes” que requereram a autofalência dentro do prazo pela lei estipulado. Nesse passo, aqui cabem algumas considerações reputadas importantes. O devedor tem o direito de pedir a decretação de sua falência. Mais do que um direito propriamente dito, tem o poder-dever de assim agir em juízo, sob pena de, mantendo-se no mercado competitivo, causar prejuízos às demais entidades que estão neste mesmo mercado. Aliás, no que diz especificamente com os mercados, em temos de globalização econômica, sabe-se que são verdadeiras instituições jurídicas, onde imperam algumas regras e os componentes têm confiança recíproca; há regularidade na prática de atos tendentes ao impulsionamento das atividades econômicas; existem, pois, cláusulas obrigacionais próprias, padronizadas e bem delineadas; linguagem padrão e as participantes agem considerando o fator previsibilidade do outro; coloca-se em relevo a conduta das pessoas jurídicas; confia-se no procedimento destas e a quebra de confiança pode contaminar o mercado, causando efeito multiplicador, o que é deletério ao sistema.  A sujeição dos agentes econômicos às regras dos mercados nos quais atuam implica, necessariamente, em aceitação das regras do jogo capitalista imposto. A regularidade e a reiteração dos atos praticados pelos agentes econômicos impulsiona a economia local, a nacional e até mesmo a mundial. Impera, pois, a livre iniciativa, princípio de cunho eminentemente constitucional, previsto na ordem econômica, sendo não menos certo, por outro lado, que a livre concorrência dos agentes econômicos que atuam nos mercados é assegurada pela Carta Política. Não obstante tal fato, o encolhimento do Estado não implica em soltar as rédeas de determinadas atividades de cunho privado. Impera, pois, a atividade estatal de regulação, via agências reguladoras, por exemplo. Em sendo certo que a livre concorrência é uma das importantes vigas-mestras da ordem econômica nacional, não menos certo que as pessoas jurídicas que se sujeitam ao jogo do mercado devem aceitar as cláusulas impostas por esse mesmo mercado. Portanto, a empresa (atividade econômica) mergulhada em crise, cuja solução não se encontra na reestruturação [em uma de suas modalidades definidas em lei] tem o poder-dever de retirar-se do mercado, via autofalência. Nesse passo, bem esclarece J.C.Sampaio de Lacerda que o devedor não espera a ação dos credores. A lei obriga-o a confessar logo a sua falência, a fim de que não seja levado à prática de expedientes prejudiciais[1]. Portanto, a iniciativa de pedir a imediata retirada do mercado cabe ao devedor inadimplente e que não reúne as mínimas condições de continuar no jogo do mercado competitivo. Mais do que um poder, nota-se a necessidade de observância do imperativo de agir em juízo, confessando a insolvência.

 

Com efeito, Rubens Requião entende que, não delineada a situação fática que autoriza o pedido de autofalência, poderia haver a insurgência dos credores[2], e o artigo 8º, §1º, do Dec.-Lei 7.661/45, abre a brecha legal para a oposição daqueles que participam do quadro societário e não assinaram o pedido de autofalência. A falência torna de direito uma situação fática e, estando o devedor em crise [numa de suas modalidades], deverá, mediante linguagem própria, expor em juízo os motivos autorizadores do pleito de retirada do mercado. Caberá ao devedor, noutros termos, e de forma exaustiva, expor em a sua petição inicial quais são, de fato, os motivos que impossibilitam a continuidade de sua atividade econômica. Lembre-se que os documentos exigidos pelo art. 105 da lei de 2005 se traduzem em exigências meramente formais, competindo ao devedor agir em juízo [sempre e invariavelmente] com lealdade, boa-fé honestidade, explicitando o porquê de seu pleito drástico, por assim dizer.  Mas o hodierno hermeneuta, evidentemente, não se compraz com a [mera] interpretação literal do texto contido no art. 105 da Lei 11.101/05. Vai bem mais além, colocando [inexoravelmente] em relevo a hermenêutica filosófica, sem [jamais] se abater pela Síndrome de Abdula, tão bem descrita por Lenio Streck[3], e que ainda prepondera, sem dúvida, em alguns setores jurídicos. O intérprete autêntico [o juiz], certamente perquirirá a respeito das razões aduzidas pelo devedor no pedido autofalência; perceberá, por outro lado, que há detalhes importantes a serem analisados no texto legal e que a situação da autofalência não é tão simplista com a, por assim dizer, necessidade imediata decretação da falência do devedor.

 

Primeiramente, as razões fáticas ensejadoras do pedido de autofalência, conforme dito alhures, deverão estar perfeitamente delineadas - mediante linguagem técnica própria - na petição inicial, pois, é de todo evidente que o pedido de falência pode ser utilizado como uma forma de burla à lei, intenção do devedor de criar [maiores] prejuízos aos seus credores. É bem certo que reiteradas vezes se “esvazia” a pessoa jurúdica, mediante a intencional dilapidação de patrimônio, em fraude contra credores, para fins de benefício dos participantes da sociedade empresária. Portanto, cabe a juntada de prova quanto a necessidade de decretação da autofalência do devedor em crise considerada não momentânea. Mais do que isso, e se é que a falência torna de direito determinada situação fática, não menos certo que o devedor deve ser ético e honesto em suas manifestações, competindo-lhe agir também no interesse de seus credores. Sabe-se, por outro lado, que a decretação da falência pode, em determinado momento processual, ensejar a propositura da ação revocatória falimentar ou da ação declaratória de ineficácia relativa de ato[4], demandas essas que ensejam, caso se dê pela procedência do pedido, o retorno do bem ao acervo da massa falida.  

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Não delineada perfeitamente a situação fática, torna-se evidente que poderão os credores e os próprios participantes da sociedade empresária oferecer a chamada “oposição” [descrita na lei de 1945] ao pedido, e o tema será abordado um pouco mais adiante. A intimação dos credores se faz necessária, tal como bem adverte Requião, a fim de que provem determinado fato: o devedor possui condições financeiras de honrar suas dívidas, e ao juiz caberia o indeferimento do pleito de autofalência[5]. Prosseguindo, ao receber a petição inicial não cabe ao juiz abrir vista dos autos do processo ao representante do Ministério Público, na medida em o artigo 4o da lei recebeu veto, e somente nos caso em que a lei é expressa quanto a intimação de tal órgão, assim deverá ocorrer. Por outro lado, o agente ministerial terá vista da falência depois que o juiz decretar a retirada do devedor do mercado[6], consoante art. 99, XIII da lei de regência, artigo esse que é balizador também para a decretação quando se coloca em mesa pedido de autofalência. O juiz da causa, então, ao receber a petição inicial, poderá seguir alguns caminhos processuais, tendo como arrimo as disposições do Código de Processo Civil, aplicável à espécie. A primeira hipótese é a determinação para que o devedor emende a petição inicial, no prazo de 10 [dez] dias, consoante art. 106 da lei falimentar e art. 284 do Código de Processo Civil. Estando em termos a emenda, cabe-lhe decretar a falência do devedor. Normalmente, o juiz não deixa de decretar a falência do devedor. A segunda hipótese diz com a emenda insatisfatória ou mesmo quando o caso é de silêncio do devedor após o comando judicial. Nestes casos caberá ao juiz indeferia petição inicial, tal como diz a parte final do mesmo art. 284.  A terceira hipótese é a decretação imediata da falência do devedor, estando o juiz convencido de que as razões aduzidas não destoam da realidade documental e considerando a força  argumentativa do devedor.

 

Entrementes, considerando o total [e incorreto] silêncio do art. 105 da Lei 11.101/05, ainda há alguns detalhes a serem observados pelo juiz ao receber a inicial. Primeiramente, em se tratando de sociedade limitada, por exemplo, caberá deliberação dos sócios a fim de autorizar o pedido de autofalência, por interpretação teleológica do art. 1071, VIII do Código Civil. Portanto, deverá existir documento próprio instruindo a petição inicial, e que materialize a vontade dos participantes da sociedade quanto ao pleito. No caso de sociedade por ações, por outro lado, em se tratando, por exemplo, de sociedade anônima, caberá à assembléia geral extraordinária autorizar o administrador a confessar em juízo o estado de falência e, em caso de urgência poderá fazê-lo, mediante concordância do acionista controlador, se houver, contanto que seja convocada assembléia geral para se pronunciar acerca da matéria. Além disso, os representantes legais da sociedade empresária deverão [também] assinar a petição inicial.Cabe redobrada atenção quando o juiz se depara com pedido de autofalência, considerando as exigências antes expostas. No que se refere aos direitos fundamentais dos acionistas, insta salientar que o art. 109, III, da Lei 6.404/76, basicamente, estabelece o direito de fiscalizar a gestão dos negócios sociais. Por outro lado, em relação ao sócio participante de sociedade empresária limitada, caso não concorde com o pedido de autofalência, terá condições jurídicas de agir em juízo. Nesse passo, cabe especular a respeito de alguns detalhes importantes. Detectando o juiz a irregularidade quanto anuência ao pedido externado pela entidade em crise, cabe-lhe, de ofício, determinar a intimação dos sócios ou acionistas discordantes para que se pronunciem fundamentadamente, querendo, e desde logo apresentando rol de provas - se possível exaustiva -, quanto a oposição materializada. Em se tratando de companhia fechada, tudo é bem mais fácil, considerando o número de acionistas dela participantes. Mas, quando se coloca em mesa uma anônima aberta, por exemplo, seus diretores ou controladores deverão ser intimados. Os demais acionistas dissidentes também poderão se manifestar em juízo. Com inequívoca visão de futuro, Requião há muito expunha que os sócios discordantes deveriam ser intimados a fim de que apresentassem um plano de recuperação da empresa[7], mas cabe aqui investigar, mesmo que superficialmente, como ocorreriam as intimações para pronunciamento acerca da confissão do devedor em juízo. De acordo com o que foi escrito alhures, o juiz deverá ter redobrada atenção ao analisar pedido desta natureza, na medida em que pode, a bem da verdade, mascarar tentativa de fraude em relação aos credores. Caso a inicial não esteja suficientemente instruída, e mais especificamente se ressentindo da prova de que houve autorização expressa para o pleito de autofalência, caberá a intimação por mandado para que os sócios ou acionistas se pronunciem. Diante da ausência da lei quanto ao prazo, entende-se que pode ser de 10 [dez] dias a contar da juntada do mandado cumprido aos autos do processo. O juiz, de ofício, deverá determinar ocorram tais intimações, sob pena de nulidade processual.  Quanto à possibilidade recursal - e partindo da ideia de que os sócios ou acionistas que foram devidamente intimados e quedaram inerte -, também poderão ingressar com todos os recursos previstos no Código de Processo Civil, até e principalmente porque não são considerados como “parte” e a ausência de pronunciamento, em consequência, não induz falar em revelia.

 

A intimação dos credores, caso o juiz verifique que a inicial não está em consonância com a realidade, poderá ocorrer via edital. 

 

Finalmente, outra hipótese é a da retratação por parte do devedor, ou seja, desiste do pedido de autofalência. Mas aqui há alguns detalhes. Caso o juiz ainda não tenha decretado a falência, o pedido de desistência pode livremente ser protocolado, cabendo a extinção do feito. Entrementes, não cabe a retratação ora ventilada após o juiz já ter decretado a falência, considerando que a situação jurídica do devedor foi substancialmente alterada, com sua retirada do mercado; há concomitante instauração da massa falida e juízo universal; a sentença espraiou feitos jurídicos em relação aos credores e ao próprio devedor, e, também, porque a sentença proferida só pode ser alterada via recurso próprio.

 

Portanto, mesmo a Lei 11.101/05 nada dispondo a respeito, podem os credores e os sócios ou acionistas dissidentes ingressar em juízo, via “oposição”, a fim de tentar obstar a decretação da falência do devedor. É o que se nos parece, s.m.j., estando a questão apresentada ao debate.

 


[1] Apud CLARO, Carlos R. Lei de Falências e Concordatas. Anotada à Luz da Jurisprudência. Curitiba:Juruá,  2001, pp. 41-42.

[2] Curso de Direito Falimentar. 1o Volume. Falência. 17a edição. São Paulo:Saraiva, 1998, p. 103.

[3] Hermenêutica Jurídica e (m) Crise. Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 3a edição. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 228. Nesse passo, em relação à necessidade de abertura hermenêutica, vale a pena ler, dentre outras de igual envergadura, a obra de Paolo Grossi, intitulada “Mitologias Jurídicas da Modernidade”, editada pela Fundação Boiteux.

[4] A propósito, ver: CLARO, Carlos R. Revocatória Falimentar. 4a edição. Curitiba:Juruá, 2008. Há outras obras importantes, tais como a de Jayme Leonel, Da Ação Revocatória no Direito da Falência. 2a edição. São Paulo:Saraiva, 1951; Nelson Abrão, Da Ação Revocatória. 2a edição. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1997, e Yussef Said Cahali, Fraude contra Credores. 2a edição. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999, para citar alguns brasileiros, e quanto aos estrangeiros, ver a obra de Giuseppe Ragusa Maggiore, Contributo alla Teoria Unitaria della Revocatoria Fallimentare. Milano: Dott. A. Giufrè Editore, 1960.  

[5] Op. cit., p. 103.

[6] Ver art. 187 da lei de regência.

[7] Op. cit., p. 103.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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