A Lei de Segurança Nacional e o direito de opinião

18/07/2020 às 14:58
Leia nesta página:

O artigo discute a aplicação da Lei de Segurança Nacional diante de caso concreto.

I – O FATO

O governo federal tem usado a Lei de Segurança Nacional contra manifestações que entende desrespeitosas.

Observo o que dito no site Consultor Jurídico, em 14 de julho de 2020:

“O Ministério da Defesa enviou à Procuradoria-Geral da República uma notícia de fato contra o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. O documento foi encaminhado nesta terça-feira (14/7) com menções às críticas recentes feitas pelo magistrado à atuação do Exército na crise decorrente da epidemia. A informação foi publicada pela Folha de S.Paulo.

Segundo o jornal, a pasta cita como argumentos para representar contra o ministro artigos da Lei de Segurança Nacional e do Código Penal Militar. O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, já havia adiantado que acionaria a PGR em nota de repúdio às declarações publicada na segunda-feira (13/7).

No sábado, em uma live, o ministro havia dito que o Exército estava se associando a um "genocídio" ao aceitar fazer parte da condução das políticas públicas desastrosas de enfrentamento à Covid-19 no alto escalão do governo. De forma interina, o ministério da Saúde é comandado pelo general Eduardo Pazuello.

"Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso", disse o ministro na ocasião. Agora cabe à PGR analisar se o caso deve prosseguir.”

Segundo o Estadão apurou, o dispositivo citado é o Artigo 23, que prevê como crime a prática de incitar ‘à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis’. A pena é de um a quatro anos de prisão. Também são mencionados artigos do Código Penal sobre crime contra a honra e outro do Código Penal Militar.

Também foram citados artigos do Código Penal de crimes contra a honra, como calúnia, difamação e injúria, cujas penas, somadas, podem chegar a quatro anos e ainda o artigo 219 do CPM.


II – A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

Com o devido respeito penso que não houve conduta delituosa.

A Lei de Segurança Nacional define penas para 21 crimes, incluindo incitação à subversão da ordem política, emprego de violência contra o regime democrático e ofensas

A Lei de Segurança Nacional, editada ao fim do regime militar, e não revista durante o ciclo democrático, não constitui o instrumento adequado para um governante lidar com seus adversários em tempos de paz, com instituições democráticas em pleno funcionamento.

A Lei 7.170/83, mais conhecida como Lei de Segurança Nacional, foi promulgada pelo regime militar em 1983, com a justificativa de definir crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. Portanto, um texto legal criado num regime de exceção, com o objetivo maior de proteger a ditadura que se instalou no país. Porém, essa norma não foi revogada e ainda se encontra em pleno vigor. Analisando seu conteúdo à luz de um Estado democrático de Direito, constitui-se certamente um entulho autoritário que permanece até nossos dias, embora, ao que parece, vinha sendo um tanto esquecida.

É certo que a Lei de Segurança Nacional é plena de enunciados vazios, abertos, que podem levar à sua não efetividade.

A característica mais saliente e significativa da Lei de Segurança Nacional é a do abandono da doutrina da segurança nacional.

O art. 1.º da lei esclarece: "Esta lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I - a integridade territorial e a soberania nacional; II - o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; III - a pessoa dos chefes dos Poderes da União." Criticando o projeto de que resultou o texto definitivo da lei, em parecer aprovado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, Heleno Fragoso sugeriu que esse art. 1.° tivesse a seguinte redação: "Esta lei prevê crimes que lesam ou expõem a perigo: I - a existência, a integridade, a unidade e a independência do Estado; II – a ordem política e social, o regime democrático e o Estado de Direito". Desta forma se teria melhor especificado a objetividade jurídica desses crimes, indicando, com maior precisão, o âmbito da segurança externa e, com mais propriedade, os bens que importa preservar, no âmbito da segurança interna.

O art. 2.° da lei estabelece que devem levar-se em conta, na aplicação da lei, a motivação e os objetivos do agente e a lesão, real ou potencial, aos bens jurídicos anteriormente mencionados, sempre que o fato esteja também previsto em outras leis penais. Isso significa que nos crimes políticos próprios (em que a ação, por sua natureza, se dirige a atentar contra a segurança do Estado), o fim de agir (motivação política) é elementar ao dolo. Nos crimes políticos impróprios (crimes comuns cometidos com propósito político) a aplicação desta lei depende de indagação sobre os motivos (que devem ser políticos)e os objetivos (que devem ser subversivos).E depende também da existência de lesão, real ou potencial, aos bens jurídicos que a lei tutela.

É mister lembrar que a lei, como ensinou Heleno Fragoso, restringiu o conceito de segurança nacional, de acordo com a tendência mais liberal e democrática. Segurança Nacional é o que se refere à nação como um todo, e diz respeito à própria existência do Estado e à sua independência e soberania. Trata-se de segurança nacional, ou seja, da nação. Ela não se confunde com a segurança do governo ou da ordem política e social, que é coisa bem diversa. Esse conceito de segurança nacional é o que prevalece no direito internacional. Quando o Pacto de Direitos Civis e Políticos permite a derrogação da garantia de direitos humanos, por motivos de segurança nacional (arts. 12 a 14, 19, 21 e 22), essa expressão significa apenas a garantia de bens relativos a toda a nação, com exclusão de atentados ao governo. Nesse sentido são os chamados "Princípios de Siracusa", aprovados em reunião de peritos convocada pela Comissão Internacional de Juristas e pela Associação Internacional de Direito Penal, celebrada na cidade de Siracusa, na Itália, em abril/maio de 1984, para o estudo das derrogações e limitações previstas pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos.

A referência à proteção dos chefes dos Poderes é imprópria. Ela já está compreendida na tutela jurídica da ordem política vigente e sempre se entendeu que os atentados aos governantes (quando praticados por motivos políticos) atingem a segurança interna. O que esta lei visa proteger não é a pessoa dos chefes dos Poderes da União, mas sim a segurança do Estado. A pessoa de tais chefes é protegida por outras leis penais. O que aqui se contempla é a ofensa aos interesses da segurança interna, através do atentado ou da ofensa realizados com propósito político-subversivo. Isso significa que a pessoa dos chefes dos Poderes, no âmbito de uma lei dessa natureza, é protegida de forma secundária ou reflexa.

O art. 2.° da lei estabelece que devem levar-se em conta, na aplicação da lei, a motivação e os objetivos do agente e a lesão, real ou potencial, aos bens jurídicos anteriormente mencionados, sempre que o fato esteja também previsto em outras leis penais. Isso significa que nos crimes políticos próprios (em que a ação, por sua natureza, se dirige a atentar contra a segurança do Estado), o fim de agir (motivação política) é elementar ao dolo. Nos crimes políticos impróprios (crimes comuns cometidos com propósito político) a aplicação desta lei depende de indagação sobre os motivos (que devem ser políticos)e os objetivos (que devem ser subversivos). E depende também da existência de lesão, real ou potencial, aos bens jurídicos que a lei tutela.

Por outro lado, como ainda ensinou Heleno Fragoso (A nova Lei de Segurança Nacional), “os crimes de manifestação do pensamento constituem o ponto nevrálgico de uma lei desse tipo. Pode-se dizer, sem medo de errar, que a quase totalidade dos processos movidos com base na lei de segurança, depois da revogação do Ato Institucional n.º 5, refere-se a crimes de manifestação do pensamento. A nova lei apresenta sobre a anterior, nesta matéria, sensíveis modificações. Abandona-se o texto simplesmente lamentável que vinha em vigor, em favor de uma fórmula que faz sentido, se se considera a finalidade da lei. Perigosa é apenas a incriminação da propaganda (e da incitação) de luta pela violência entre as classes sociais. Essa disposição serviu indebitamente para a inclusão na lei de segurança de conflitos de terras, como a experiência demonstrou. É verdade que agora o crime depende, sem a menor dúvida, de motivação política ou de propósito político-subversivo e de lesão, real ou potencial, aos interesses da segurança do Estado.”

Essas lições hauridas de Heleno Fragoso, um dos maiores penalistas brasileiros, e célebre na luta pelas liberdades individuais, durante a ditadura militar, são exemplares com relação àquela Lei de Segurança Nacional.

Essas palavras foram vistas nas lições de Heleno Fragoso, Advocacia da Liberdade, e ainda em sua tese para professor da Universidade do Rio de Janeiro.


III – A LIBERDADE DE PENSAMENTO

Não se pode usar a Lei de Segurança Nacional para travar a chamada liberdade de pensamento e de expressão.

Pimenta Bueno exprimiu, com máxima propriedade, lição centenária no sentido de que ¨liberdade de pensamento em si mesmo, enquanto o homem não manifesta exteriormente, enquanto não comunica, está fora de todo o poder social, até então é do domínio somente do próprio homem, de sua inteligência e de Deus.¨

Essa liberdade de expressão de pensamento assume diversas e múltiplas formas, por força da óbvia razão de que são muitos os planos em que o pensamento se exercita como ainda são diversos os meios que existem para a comunicação, como se vê dos estudos recentes que nos levam à complexidade da linguística e da semiótica.

A liberdade de opinião resume a própria liberdade de pensamento em suas várias formas de expressão. Daí que a doutrina a chama de liberdade primária e ponto de partida de outras, sendo a liberdade do indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha, quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de uma posição pública; liberdade de pensar e dizer o que se creia verdadeiro, como dizia José Afonso da Silva (Direito Constitucional positivo, 5ª edição, pág. 215).

De outro modo, a liberdade de manifestação de pensamento constitui um dos aspectos externos da liberdade de opinião. A Constituição Federal, no artigo 5º, IV, diz que é livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimato, e o art. 220 dispõe que a manifestação do pensamento, sob qualquer forma, processo ou veiculação, não sofrerá qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição, vedada qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística.

A liberdade de manifestação de pensamento que se dá entre interlocutores presentes ou ausentes, tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir, de forma clara, a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros.

 Ainda se fala em liberdade de expressão intelectual, artística e cientifica e direitos conexos, de forma que não cabe censura, mas classificação para efeitos indicativos (artigo 21, XVI).

Deve-se respeitar a liberdade de expressão, o direito de se expressar livremente, a faculdade de apresentar um pensamento, um dos pilares da democracia.


IV – A INEXISTÊNCIA DE DELITOS PARA O CASO

Deve ser visto o espírito da segurança nacional como ente a serviço da democracia e não mero instrumento de perseguição política a adversários do status quo.  

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Por outro lado, não houve crime de incitação contra as Forças Armadas e nem crime contra a honra. Não houve sequer uma tentativa de intimidação.

O que o ministro Gilmar Mendes acentuou foi sua extrema preocupação com os problemas que a Administração poderá enfrentar com a tragédia sanitária que o país ora enfrenta, com mais de sessenta mil mortos e um prognóstico de mais vítimas nos próximos dias.

O ministro Gilmar Mendes como qualquer cidadão tem o direito de dizer o que pensa.

Disse bem Ricardo Rangel(A liberdade de expressão e a LSN, publicado na Veja em 17 de julho de 2020):

“Gilmar não comete crime ao afirmar que considera a política de saúde “genocida”, nem muito menos ao dizer que o Exército está associado a ela: com um general da ativa à testa do ministério e quase trinta militares no staff, isso é o óbvio do óbvio.”

Dita a LSN:

Art. 23 - Incitar:

I - à subversão da ordem política ou social;

II - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis;

III - à luta com violência entre as classes sociais;

IV - a prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.

Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

Não houve crime de incitação.

É certo que, no passado, o Supremo Tribunal Federal enfrentou a matéria à luz do artigo 33, III, do Decreto-lei nº 314/67, no RE 69.528/PR, DJ de 26 de abril de 1971, em plena ditadura militar, à época da vigência do AI-5 e da Emenda Constitucional nº 1/69, objeto de uma legislação autoritária.

O STF absolveu, por insuficiência de provas, no RC 1.098/CE, pelo mesmo crime.

Ainda a AP 271/DF tratou da mesma matéria perante o STF, que entendeu por receber em parte a denúncia.

Era um delito que tinha sentido num período ditatorial que combatia a subversão a cada passo numa luta diária contra aqueles que entendia como “inimigos do regime”. Vigia à época a chamada “doutrina da segurança nacional”, num polarizado entre os Estados Unidos, capitalista, e a URSS, comunista.

De outro lado não houve intenção dolosa de criar na sociedade um clima de insatisfação na sociedade contra as Forças Armadas:

Tem-se, pois:

Artigo 219 do Código Penal Militar: “propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do público”.

Como bem disse o Grupo Prerrogativas( Poder 360, em 15 de julho de 2020), o ministro “botou o dedo na ferida” do governo federal, que se encontra “em maus lençóis por causa da péssima gestão da crise da covid-19″. 

Usou o ministro Gilmar Mendes de hipérbole ao falar da palavra genocídio para definir o tamanho da crise sanitária no Brasil, gerada pelo combate a covid-19, diante de milhares de mortes e do fato do ministério da saúde não estar entregue a técnicos na matéria, mas, sim, a militares que não têm formação na área de saúde.

Tampouco houve crime contra a honra.

Conhecida é a lição de Antolisei, citada por Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, parte especial, 7º edição, pág. 179), de que “a manifestação ofensiva tem um significado que, embora relacionado com as palavras pronunciadas ou escritas, ou com os gestos realizados, nem sempre é idêntico para todas as pessoas. O que decide é o significado objetivo, ou seja, o sentido que a expressão tem no ambiente em que o fato se desenvolve, segundo a opinião da generalidade das pessoas. Como bem esclarece o antigo professor da Universidade de Turim, o mesmo critério deve ser seguido, em relação ao valor ofensivo da palavra ou do ato, não se considerando a especial suscetibilidade da pessoa atingida. Isto, porém, não significa que não seja muitas vezes relativo o valor ofensivo de uma expressão, dependendo das circunstâncias, do tempo e do lugar, bem como do estado e da posição social da pessoa visada, e, sobretudo, da direção da vontade (animus injuriandi).”

Não houve claramente o intuito de ofender, mas clamar por providências a bem da sociedade brasileira, que se encontra envolta em uma das maiores crises de sua história.

Por tudo isso, espera-se que o procurador-geral da República, titular da ação penal perante o STF, determine o arquivamento da noticiada representação.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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