Crimes durante a Pandemia

19/07/2020 às 10:06
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Em tempos de pandemia, em que os governos municipais, estaduais e federal se esforçam para conter o avanço de uma doença altamente transmissível, o Direito Penal tipifica condutas que possam prejudicar a saúde pública da coletividade.

Nos tempos estranhos que vivemos atualmente, em que o risco de um vírus invisível ronda nossa porta e nossos corpos, temos acompanhado inúmeras manifestações de solidariedade humana, mas também notícias alarmantes de condutas criminosas que podem prejudicar ainda mais a saúde pública.

A saúde pública é um dos aspectos da incolumidade pública, bem jurídico fundamental, que consiste na segurança de todos os membros da sociedade, evitando que a vida, integridade física ou patrimônio se sujeitem à eventos lesivos.

De acordo com o art. 196 da Constituição Federal de 1988, a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

No intuito de garantir bem jurídico tão precioso, o Código Penal criminalizou inúmeras condutas que possam colocar a saúde pública em risco. Importante observar que são condutas que a maior parte da doutrina classifica como de perigo abstrato, sendo necessário demonstrar a idoneidade da conduta do agente para produzir um potencial resultado ofensivo ao bem jurídico.

Em tempos de pandemia, em que os governos municipais, estaduais e federal se esforçam para conter o avanço de uma doença altamente transmissível, o Direito Penal se torna protagonista na tentativa de prevenir e coibir de condutas criminosas que possam prejudicar ainda mais a população.

Nesse sentido, nossa análise se inicia com os crimes de perigo comum, em que há a previsão no art. 257 CP do delito de subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento, com pena de reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Ao indicar como elemento do tipo penal que a subtração de aparelho ou material ocorra durante situação de calamidade, verifica-se sua aplicação na atual crise de saúde, no exemplo de uma pessoa que dolosamente subtraia um equipamento de respiração artificial de um hospital ou material de proteção ou higienização como máscaras, luvas e álcool das equipes que estão prestando atendimento médico aos doentes.

Na hipótese desta conduta resultar em uma vítima com lesão corporal de natureza grave, a pena privativa de liberdade é aumentada de metade; se resultar morte, é aplicada em dobro. Observe-se que a causa de aumento de pena incide por se tratar de crime preterdoloso, em que o resultado lesão grave ou morte é culposo. Havendo a intenção no resultado doloso, ou seja: subtraiu o respirador para que determinada vítima morresse, haverá concurso formal entre o crime de perigo comum e a lesão grave ou homicídio, nos termos do Art. 70, 2ª parte, CP.

Seguindo para os crimes contra a saúde pública, o primeiro prevê a conduta de causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos com pena de reclusão, de dez a quinze anos.

Epidemia define-se como surto de doença que surge rapidamente em determinado lugar e acomete simultaneamente grande número de pessoas. Difere de endemia, que se refere a enfermidades comuns em determinada área: ex. febre amarela na Amazônia. Já pandemia ocorre quando afeta grande número de indivíduos em extensa área geográfica: ex. H1N1 e Covid-19 em todo o mundo.

O Direito Penal terá aplicação nas epidemias causadas por ação voluntária do homem. Para tanto, seria necessário demonstrar o meio utilizado para propagação dos germes patogênicos (microorganismos capazes de produzir moléstias infecciosas como vírus, bacilos e protozoários), e se era idôneo para propagar a doença, ou seja, que não é consequência de um evento natural.

Assim, no caso da presente pandemia, somente será possível imputar a alguém a responsabilidade pelo crime de epidemia, se ficar provado que sabia que estava contaminado e, por dolo ou culpa, propagou a doença para número indeterminado de pessoas.

Lembrando que quando a doença chegou ao Brasil, já estava reconhecida uma situação de pandemia, o que a princípio não permite que se responsabilize um indivíduo por toda a situação caótica que vivemos.

Outro obstáculo à responsabilização dolosa no Brasil seria que a pandemia iniciou-se na China, aparentemente de causa natural e não há informações comprovadas de que os indivíduos estejam deliberadamente propagando uma doença patogênica.

Note-se que na hipótese de o agente querer contaminar pessoa determinada, caracteriza o delito do art.131 CP.

Por outro lado, seriam exemplos de epidemia na modalidade culposa, o médico imprudente que concede alta a paciente portador de doença contagiosa sem dar as orientações devidas, o profissional de enfermagem que não higieniza corretamente instrumentos e aparelhos médicos hospitalares após o tratamento de um doente ou a pessoa negligente que sabendo estar contaminada, não obedece as recomendações médicas e deixa de se resguardar ou permanecer em quarentena. Neste último exemplo cabe a discussão se não haveria dolo eventual na conduta do agente.

Outro delito passível de ocorrer é a infração de medida sanitária preventiva, que consiste em infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa.

Trata-se de crime de menor potencial ofensivo, que tem incidência sobre condutas mais leves. Por ser norma penal em branco, deve ser complementada por ato normativo do Ministério da Saúde ou Poder Executivo destinado a prevenir e controlar a propagação de doenças. Na situação atual do Coronavírus seria omitir que está com febre ou tosse durante a fiscalização sanitária nos aeroportos e rodoviárias, recusar-se ao fechamento do comércio ou promover eventos em que haja aglomeração de pessoas como cultos, shows ou festas.

É evidente que em todos os casos, a conduta do agente deve ser idônea a produzir um potencial resultado ofensivo.

Outra conduta criminosa é a omissão de notificação de doença, que é crime próprio, pois somente o médico pode deixar de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória, estando sujeito à pena de detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

É dever do médico comunicar à autoridade pública as doenças que são monitoradas pelo Ministério da Saúde, informando todos os dados para evitar a proliferação da doença. Trata-se de uma exceção ao segredo profissional posto que há justa causa para violação, não caracterizando o crime do art.154 CP.

Dentre todos os crimes contra a saúde pública, o de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art.273) é o que tem a maior gravidade, com previsão de pena de reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.

De acordo com os parágrafos, nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. Incluem-se entre os produtos os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos (ex. batom, talco, creme), os saneantes (limpeza) e os de uso em diagnóstico. Aqui podem ser enquadrados a falsificação de álcool em gel, bem como de outros produtos desinfetantes, tão procurados nesse momento.

Da mesma forma, está sujeito às mesmas penas quem vende produtos em qualquer das seguintes condições: sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;  em desacordo com a fórmula constante do registro; sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; de procedência ignorada; adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.

Verifica-se, portanto, que a alteração de álcool ou a venda de procedência ignorada, pode levar a uma condenação de no mínimo 10 anos de reclusão por crime hediondo. É evidente a desproporcionalidade da lei penal nessa hipótese, razão pela qual deve ser considerado um crime de perigo concreto, sendo necessário demonstrar o efetivo risco à saúde pública.

Importante notar que, nessa situação, o Superior Tribunal de Justiça tem se posicionado pela aplicação do preceito secundário do delito de tráfico de drogas ao crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:

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DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. INCONSTITUCIONALIDADE DO PRECEITO SECUNDÁRIO DO ART. 273, § 1º-B, V, DO CP. É inconstitucional o preceito secundário do art. 273, § 1º-B, V, do CP - "reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa" -, devendo-se considerar, no cálculo da reprimenda, a pena prevista no caput do art. 33 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), com possibilidade de incidência da causa de diminuição de pena do respectivo § 4º.[...] Tratando-se de crime hediondo, de perigo abstrato, que tem como bem jurídico tutelado a saúde pública, mostra-se razoável a aplicação do preceito secundário do delito de tráfico de drogas ao crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais". STJ. AI no HC 239.363-PR, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 26/2/2015.

 

O art. 273 CP tem previsão da modalidade culposa quando, por exemplo, ocorrer negliência na escolha dos ingredientes para fabricação do produto ou no processo de preparação, cabendo uma pena de detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Caso se verifique que a conduta não tem potencial de prejudicar a saúde, o bem jurídico ofendido não será a saúde pública, podendo ser tipificado como crime contra as relações de consumo (art. 66 da Lei 8078/90 e art. 7º VII ou IX da Lei 8137/90) ou contra a economia popular (art.2º V da Lei 1521), sendo que como os tipos penais são muito parecidos entre si, havendo conflito de normas, deve prevalecer o princípio da especialidade. Assim, havendo ofensa a saúde pública, aplica-se o CP.

Na hipótese da venda de máscaras e luvas hospitalares impróprias para o uso pode caracterizar o delito do art. 278 CP, que se refere a fabricar, vender ou, de qualquer forma, entregar a consumo coisa ou substância nociva à saúde, ainda que não destinada à alimentação ou a fim medicinal, com pena de detenção, de um a três anos, e multa.

Outro tema bastante noticiado recentemente é a procura por medicamentos utilizados para a cura de outras doenças e que seriam eficazes no combate a Covid-19. O art. 280 CP trata do delito de fornecer substância medicinal em desacordo com receita médica, cuja pena é de detenção, de um a três anos, ou multa. Caso o remédio vendido sem a receita possua alguma substância controlada pela Anvisa e que seja classificada como substância entorpecente, a conduta pode ser tipificada no art. 38 da Lei n. 11.343 (Lei de Drogas). Essas condutas seriam imputáveis ao farmacêutico ou balconista da farmácia que, dolosa ou culposamente, fornecesse tais remédios sem a prescrição escrita feita pelo médico identificado.

Registre-se que o farmacêutico que percebe erro na receita médica deve contatar o médico e caso não consiga, pode corrigir a receita, agindo em estado de necessidade.

Por fim, em situações de risco à saúde pública, as condutas mais perniciosas a serem praticadas individualmente são o Charlatanismo e o Curandeirismo.

O Art. 283 CP descreve o charlatanismo como a conduta de inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível, passível de pena de detenção, de três meses a um ano, e multa.

Charlatão pode ser definido como um vendedor de ilusões, que anuncia a cura para doenças que não exista tratamento próprio, propondo tratamento alternativo ou remédio com fórmula desconhecida ou não licenciada pela repartição competente.

É crime contra a saúde porque explora a boa-fé dos incautos, dos doentes desesperados por curas “milagrosas”, e que muitas vezes abandonam tratamentos convencionais.

O charlatão sabe que o tratamento é inócuo e age de má-fé, podendo inclusive ser médico.

Já o curandeirismo caracteriza-se com a conduta habitual de diagnosticar, prescrever, ministrar ou aplicar substância ou usar gestos, palavras ou qualquer outro meio no intuito de curar. A pena é de detenção, de seis meses a dois anos, sendo que se for praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

É um crime que pode ser praticado por qualquer pessoa, sendo comum a prática pelos chamados “pai de santo”, videntes, benzedeiros e feiticeiros, que exploram o lado místico e levam a vítima a acreditar que a doença será curada de forma sobrenatural aproveitando-se da boa-fé e, em muitos casos, do desespero.

O sujeito ativo deste crime normalmente não tem conhecimentos médicos e, ao contrário do charlatão, o curandeiro acredita que conseguirá curar.

Note-se que atos típicos de religião, usos e costumes indígenas e populares, como exorcismo e passes, desde que não ofendam a moral, bons costumes ou coloquem em risco a saúde pública não caracterizam o delito, fazem parte da livre manifestação religiosa.

A existência de tantos tipos penais para proteger esse bem jurídico se justifica pela maior vulnerabilidade e desproteção da vítima em situações dessa natureza, além do fato de que tais condutas tem o potencial de prejudicar o bem estar de toda a sociedade ou agravar uma crise da saúde pública, atingindo um número indeterminado de pessoas.

 

 

 

Sobre a autora
Fernanda Maria Alves Gomes

Mestre em Direito Pela UFPe. Pós graduada em Direito Tributário e Língua Portuguesa. Tabeliã e Registradora Civil em Fortaleza-CE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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