SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Execução fiscal - 3. Lei 8.009/90 e a exceção do artigo 3, IV - 3.1. Taxatividade do art. 3, IV, da Lei 8.009/90 – 4. Bem de família - 4.1. Proteção ao mínimo vital – 4.2. Ônus excessivo aos devedores e o princípio da menor onerosidade da execução - 5. Possibilidade de Substituição de Bens - 6. Conclusão
1. Introdução
A Fazenda Pública, em geral, possui diversas barreiras para viabilizar a arrecadação de seus créditos tributários, seja pela ausência dos contribuintes ou pela quantidade de devedores, uma vez que uma boa parte não faz o recolhimento/pagamento do tributo dentro do prazo estipulado pelas Secretarias de Fazenda Municipais.
Deste modo, às Fazendas Públicas para receberem seus créditos tributários ajuízam execuções fiscais instituídos pela Lei 6.830/1980. Caso o executado não realize o pagamento voluntário, poderá este, ter sua esfera patrimonial atacada pela penhora e que acarreta alto valor de onerosidade para os devedores.
Neste artigo, iremos desenvolver, criticar e discutir sobre a hipótese de penhora de bem de família consagrada no art. 3, IV, da Lei 8.009/90, embora já exista julgamentos do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a possibilidade de penhora em bem de família sobre dívidas fiscais de IPTU e ainda analisaremos o interesse público do Fisco em receber seus créditos tributários através das cobranças judiciais e por outro lado o reconhecimento do mínimo vital de um bem de família dos devedores
2. Execução Fiscal
O processo de execução fiscal está disciplinado pela Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980 (LEF – Lei de Execução Fiscal), que dispõe sobre a possiblidade da Fazenda Pública (em todos seus âmbitos territoriais ou seja, federal, estadual, distrital e municipal), proceder a cobrança judicial da dívida ativa, “abrangendo não apenas as dívidas de natureza tributária, mas as de natureza não tributária, como as multas” [1].
“O objeto da execução fiscal, assim, não é a constituição nem a declaração do direito, mas a efetivação deste, que se presume, por foça da lei, líquido e certo”[2], mas, pode ser afastada, desde que o executado apresente provas concretas, uma vez que a presunção de liquidez e certeza (e os elementos necessários do art. 2ª, §5º, da LEF) são relativos, podendo ser revertido e extinto a execução.
Deste modo, após protocolo da inicial de execução fiscal pela Fazenda Pública, e realizado o despacho do juiz, será realizado a citação do executado, conforme determina o art. 8 e seguintes da LEF, para realizar o pagamento em 5 dias.
Assim, caso o contribuinte não realize o pagamento de forma voluntária; ou garanta o juízo; ou suspenda a exigibilidade do crédito tributário, nos termos do art. 151, da CTN, a execução fiscal prosseguirá, sendo que será determinado a penhora dos bens localizados do autor, nos termos do art. 10, da LEF e observado a ordem disposta no art. 11 da LEF.
Logicamente, conforme preceitua o art. 16, da LEF, o executado poderá se defender com embargos à execução, no prazo de 30 dias, observando o início da contagem nos incisos do mesmo dispositivo.
O executado poderá se valer ainda do pedido de suspensão da execução fiscal, com a utilização do art. 919, §1º, do CPC (art. 739-A, §1, do CPC/73), ficando como condição os requisitos: a) apresentação de garantia; b) “fumus boni iuris” e “periculum in mora”. E assim se posicionou o Superior Tribunal de Justiça:
TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. APLICABILIDADE DO ART. 739-A, § 1º, DO CPC/73 ÀS EXECUÇÕES FISCAIS. EFICÁCIA VINCULATIVA DO ACÓRDÃO PROFERIDO NO RESP N. 1.272.827/PE, JULGADO SOB O RITO DO ART. 543-C, CPC/73. TEMA N. 526/STJ. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS ENSEJADORES DO EFEITO SUSPENSIVO PRETENDIDO. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO [...]
I - A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Tema n. 526, nos autos do REsp repetitivo n. 1.272.827/PE de relatoria do ministro Mauro Campbell, firmou entendimento no sentido de que o art. 739-A do CPC/73 (art. 919 do CPC/2015) aplica-se às execuções fiscais e que atribuição de efeito suspensivo aos embargos do devedor "fica condicionada" ao cumprimento de três requisitos: apresentação de garantia; verificação pelo juiz da relevância da fundamentação (fumus boni juris) e do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora).
(STJ – AgInt no Agravo em Resp n° 1.182.681-SP (2017/0257735-3), Relator: Min. Francisco Falcão, julgado em 16/08/2018)
Ao observar esses simples requisitos, me questiono como um contribuinte poderá realizar garantia e até mesmo pagar uma parcela do IPTU, vivendo em muita das vezes no aperto da extrema pobreza, causando uma barreira ao acesso à justiça e ao direito de defesa. Uma pesquisa realizada pelo “Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2016 e 2017, a pobreza no Brasil passou de 25,7% para 26,5% da população. O número dos extremamente pobres, aqueles que vivem com menos de R$ 140 mensais, saltou, no período, de 6,6% para 7,4% dos brasileiros.”[3]
E ainda, nos tempos atuais ‘de pandemia pelo COVID-19, “o grupo de pessoas em pobreza extrema no Brasil, que inclui os que vivem com menos de 1,9 dólar por dia, ganhou cerca de 170 mil novos integrantes em 2019 e encerrou o ano passado com 13,8 milhões de pessoas, o equivalente a 6,7% da população do país. É o quinto ano seguido no qual o número de brasileiros na miséria cresce” [4]
E assim sempre me perguntarei sobre a (im)possibilidade de penhora em um bem de família poderá ser “salvo”, uma vez que o artigo 3, IV, da Lei 8.009/90, preceitua às exceções do bem de família, exclusivamente sobre os débitos de IPTU.
3. Lei 8.009/90 e a exceção do artigo 3, IV
Conforme bem sabemos, a Lei 8.009/90, especificamente pela regra do art. 1, veio para proteger os devedores de possíveis penhoras a serem realizada pelos credores, sejam eles decorrentes de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outras naturezas.
Porém, conforme art. 3, IV, do mesmo dispositivo legal, existe a exceção à regra de impenhorabilidade do bem de família quando se tratar de cobrança de IPTU, do qual são devidas em razão da função do imóvel familiar. Nesse sentido já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. EXCEÇÃO. DÉBITO PROVENIENTE DO PRÓPRIO IMÓVEL. IPTU. INTELIGÊNCIA DO INCISO IV DO ART. 3º DA LEI 8.009/90. 1. O inciso IV do art. 3º da Lei 8.009/1990 foi redigido nos seguintes termos: "Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;" 2. A penhorabilidade por despesas provenientes de imposto, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar tem assento exatamente no referido dispositivo, como se colhe nos seguintes precedentes: no STF, RE 439.003/SP, Rel. Min. EROS GRAU, 06.02.2007; no STJ e REsp. 160.928/SP, Rel. Min. ARI PARGENDLER, DJU 25.06.01. 3. O raciocínio analógico que se impõe é o assentado pela Quarta Turma que alterou o seu posicionamento anterior para passar a admitir a penhora de imóvel residencial na execução promovida pelo condomínio para a cobrança de quotas condominiais sobre ele incidentes, inserindo a hipótese nas exceções contempladas pelo inciso IV do art. 3º, da Lei 8.009/90. Precedentes. (REsp. 203.629/SP, Rel. Min. CESAR ROCHA, DJU 21.06.1999.) 4. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1100087/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/05/2009, DJe 03/06/2009)
E também o Tribunal de Justiça de São Paulo, com entendimentos recentes:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO FISCAL – IPTU – Insurgência do executado contra a decisão de primeiro grau que indeferiu o pedido de anulação da carta de arrematação lavrada – Descabimento – Atos de citação e intimação regularmente realizados - Ausência da alegada impenhorabilidade do imóvel arrematado - Exceção ao bem de família prevista no inciso IV do artigo 3º da Lei Federal nº 8.009/90 – Decisão mantida - Recurso desprovido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2007775-37.2020.8.26.0000; Relator (a): Wanderley José Federighi; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Público; Foro de Artur Nogueira - Vara Única; Data do Julgamento: 19/02/2020; Data de Registro: 19/02/2020)
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AGRAVO INTERNO - AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO FISCAL - IPTU - Exercícios de 2005 a 2007 - Município de Araçatuba - Rejeição da exceção apresentada - Interposição de recurso de agravo de instrumento - Decisão monocrática indeferindo o pretendido efeito suspensivo - Interposição de recurso de agravo interno almejando a reconsideração da decisão monocrática - Impossibilidade - Penhorabilidade do bem imóvel da entidade familiar quando a cobrança decorrer do IPTU do próprio imóvel - Exceção à impenhorabilidade do bem de família prevista no artigo 3º, IV, da Lei nº 8.009/90 - Cônjuge do proprietário do bem penhorado devidamente intimado sobre a designação do leilão - Cumprimento da determinação inserta no artigo 843 do CPC - Obediência ao devido processo legal - Decisão mantida - Agravo interno improvido.
(TJSP; Agravo Interno Cível 2152080-51.2019.8.26.0000; Relator (a): Silva Russo; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Araçatuba - Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 20/09/2019; Data de Registro: 20/09/2019)
Nesses moldes, “considerando que o IPTU é obrigação em função do imóvel - propter rem-, a sua dívida aplicar-se-á a penhora sobre bem de família.”[5]
E no mesmo sentido posicionou-se o Tribunal de Justiça de São Paulo:
TRIBUTÁRIO EXECUÇÃO FISCAL IPTU E TAXAS Ausência de interesse processual da exequente Inocorrência Impossibilidade de extinção da execução fiscal em razão de seu valor, por ausência de previsão legal Decisão de mérito administrativo, não passível de apreciação pelo Poder Judiciário Penhora do imóvel gerador da obrigação Possibilidade Débito "propter rem" Penhora do bem de família autorizada pelo art. 3, IV, da Lei nº 8.009/90 Possibilidade de substituição do bem penhorado, nos termos do art. 15, I, da LEF Apelo improvido.
(TJSP; Apelação Cível 0004279-57.2012.8.26.0180; Relator (a): Nuncio Theophilo Neto; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Espírito Santo do Pinhal - 1ª Vara; Data do Julgamento: 24/04/2014; Data de Registro: 26/05/2014)
3.1. Taxatividade do artigo 3, da Lei 8.009/1990
O Superior Tribunal de Justiça já proferiu decisões informando que as exceções trazidas pelos art. 3º, da lei 8.009/90 são taxativas, não podendo serem interpretadas de forma extensiva para que os credores realizem execuções nos únicos imóveis dos devedores.
Recurso Especial. EXECUÇÃO. EXECUÇÃO. EMPRÉSTIMO. BEM DE EMPRESA OFERECIDO LIVREMENTE POR ELA, EM GARANTIA REAL HIPOTECÁRIA DE OUTRA PESSOA JURÍDICA. PENHORA DO IMÓVEL. VALIDADE DA HIPOTECA. EXCEÇÃO À REGRA DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. IMÓVEL DE PROPRIEDADE DE PESSOA JURÍDICA QUE NUNCA FOI SEDE DE EMPRESA FAMILIAR. PENHORABILIDADE DO BEM. VALIDADE DA HIPOTECA OFERECIDA LIVREMENTE POR EMPRESA PARA GARANTIR MÚTUO DE OUTRA PESSOA JURÍDICA. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/1990, ao instituir a sua impenhorabilidade, objetiva a proteção da própria família ou da entidade familiar, de modo a tutelar o direito constitucional fundamental da moradia e assegurar um mínimo para uma vida com dignidade dos seus componentes. 2. A lei estabelece, de forma expressa, as hipóteses de exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família, o que reflete o seu caráter excepcional, evidenciando que ela é insuscetível de interpretação extensiva. [...] 6. Recurso especial não provido. (STJ, Recurso Especial nº. 1.422.466/DF, Terceira Turma, Rel. Ministro Moura Ribeiro, j. 17/05/2016, V. U.)
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PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ART 462 DO CPC. DIREITO SUPERVENIENTE. ERROR IN PROCEDENDO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL CIVIL DECORRENTE DA PRÁTICA DE ATO ILÍCITO. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA. LEI 8.009/1990. INTERPRETAÇÃO ESTRITA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. [...].5. Ademais, a Lei 8.009/1990 ostenta natureza excepcional, de modo que as exceções à regra geral da impenhorabilidade do bem de família são previstas de forma taxativa, sendo insuscetíveis de interpretação extensiva. Precedentes. 6. Recurso especial provido. (STJ, Recurso Especial nº. 1.074.838/SP, Quarta Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, j. 23/10/2012, V. U.)
E no mesmo sentido posicionou-se o Tribunal de Justiça de São Paulo:
[...] DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA A Lei Federal nº. 8.009/90 prevê que o bem de família, em regra, é impenhorável (art. 1º), e que referida impenhorabilidade pode ser alegada em qualquer processo de execução, inclusive fiscal (art. 3º, “caput”), salvo as hipóteses expressamente previstas nos incisos do artigo 3º - Hipóteses previstas nos incisos do artigo 3º da Lei Federal nº. 8.009/90 que não admitem interpretação extensiva, ou seja, trata-se de rol taxativo Precedentes do C. Superior Tribunal de Justiça e deste E. Tribunal de Justiça. No caso dos autos, não há discussão de que o imóvel sirva de moradia para o embargante, bem como se verifica que a cobrança visa ao recebimento de IPTU e Taxas referentes ao imóvel, enquadrando-se na exceção prevista no inciso IV do artigo 3º da Lei Federal nº. 8.009/90, não estando protegido, portanto, pela impenhorabilidade [...]
(TJSP; Apelação Cível 1000281-08.2018.8.26.0648; Relator (a): Eurípedes Faim; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Urupês - Vara Única; Data do Julgamento: 22/11/2018; Data de Registro: 22/11/2018)
4. Bem de Família
Como sabemos, a proteção da família é assegurada pelo Estado, nos termos do artigo 226, da Constituição Federal/88. E ainda, “[...] no Brasil, a Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, alterou o artigo 6º da CF/88, para ali incluir o direito à moradia. A partir daí, parte da doutrina passou a fazer menção ao direito à moradia como princípio constitucional que se relaciona ao bem de família[...]”[6] . E assim, conforme os pensamentos da Dra. Maria Berenice Dias:
“O direito de moradia é considerado um dos direitos da personalidade inerente à pessoa humana, quer como pressuposto do direito a integridade física, quer como elemento da estrutura moral da pessoa.”[7]
Nestes moldes, quando realmente é salvaguardado este direito, a facilidade da convivência, da organização e da estruturação familiar otimiza a relações sociais e econômicas de um país.
Assim, a instituição do bem de família, em regra geral, garante a impenhorabilidade de determinado bem, visando, desta forma a proteção do eixo familiar. “É possível dizer que se trata de uma qualidade que se agrega a um bem imóvel e seus móveis, imunizando-os em relação a credores [...], a Justiça a reconhece que é um instrumento de proteção à pessoa do devedor, tendo ele ou não família, morando ou não sozinho. O objetivo é garantir a cada indivíduo – quando nada tem – um teto onde morar, mesmo que em detrimento dos credores[...].”[8]
E por fim, segundo o entendimento de Álvaro Villaça Azevedo, “[...] a violação do lar é a quebra da última proteção humana, o aniquilamento de uma família é a incineração do próprio amor: amor da casa, amor da rua, amor de um semelhante por outro; em uma palavra: amor.”[9]
4.1 Proteção ao mínimo vital
O objetivo principal do legislador ao aprovar tal instituto foi no sentido de fortificar os mecanismos de proteção ao direito à moradia.
O princípio do mínimo vital ou patrimônio mínimo, conforme entendimento do Ministro Luiz Edson Fachin – “é valor, e não metrificação, conceito aberto, cuja presença não viola a ideia de um sistema jurídico axiológico. Mínimo não é menos, nem é ínfimo. É um conceito apto a construção do razoável e do justo ao caso concreto, plural e poroso ao mundo contemporâneo. É um direito instrumental, um direito complementar, sobretudo, de garantir a dignidade do devedor de boa-fé que lutou sua vida inteira para adquirir patrimônio suficiente ao seu amparo e ao de sua família. Todo cidadão tem o direito fundamental à própria vida e, para isso, necessita de um mínimo para garantir a sua subsistência [...].”[10]
E assim, segue o entendimento da Dra. Ana Marta Cattani de Barros Zilveti:
“A ideia não é nova e pode ser observada ao longo dos séculos, em grande parte das legislações que dispuseram a respeito do processo executivo. Em cada país, em cada momento histórico, os povos têm encontrado maneiras diversas de garantir a dignidade do devedor, principalmente assegurando bens essenciais à sobrevivência [...] Os romanos, como se viu, possuíam ideias concretas a esse respeito, consubstanciadas por meio da condenação em “id quod reus facere potest” e da preservação do “modicum aliquid ne egeat.”[11]
O primeiro, conforme bem explica o Dr. Ignácio Maria Poveda Velasco, “a condemnatio in id quod réus facere potest é "modalidade" do processo formular de composição de litígios, cujas primeiras manifestações remontam ao séc. II a.C.”[12]
O segundo, segundo pensamentos da Dra. Ana Lucia Villela, “a antiga ideia de “mínimo vital” chamada pelos romanos de modicum aliquid ne egeat também foi incorporada por este projeto no sentido de fornecer ao fiador, que assume o papel de devedor no caso de inadimplemento do locatário, o direito ao mínimo necessário para sua sobrevivência, ou seja, o imóvel em que reside.”[13]
Por fim, correto afirmar que “o princípio da dignidade humana leva o Estado a garantir o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. A tendência é encontrar instrumentos hábeis que preservem o devedor e que, ao mesmo tempo, não frustrem a garantia do credo.r”[14]
4.2. Ônus excessivo aos devedores e o princípio da menor onerosidade da execução
O princípio da menor onerosidade da execução ou da menor gravosidade ao executado foi contemplado e codificado no art. 805, do CPC/2015, dispondo o caput do sobredito dispositivo que “quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”. E assim entendeu a Dra. Teresa Arruda Alvim Wambier:
“[…] O princípio da menor onerosidade não pode ser analisado isoladamente. Ao lado dele, há outros princípios informativos do processo de execução, dentre eles, o da máxima utilidade da execução, que visa à plena satisfação do exequente. Cumpre, portanto, encontrar um equilíbrio entre essas forças, aplicandose o princípio da proporcionalidade, com vistas a buscar uma execução equilibrada, proporcional.”[15]
E o Dr. Nelson Nery Junior e Dra. Rosa Maria de Andrade Nery:
“O poder de execução do credor sobre o patrimônio do devedor sofre temperamento. Em primeiro lugar a lei aponta quais sejam os bens impenhoráveis e, por isso, insusceptíveis de serem atingidos pelo poder do credor. Depois, como consequência desse temperamento da situação de vantagem que o credor tem sobre o patrimônio do devedor, traça limites para a atuação do credor, impedindo-lhe de escolher o meio mais gravoso para o devedor para a satisfação do seu crédito. Ao juiz a lei comina o dever de dirigir o processo para que a execução se faça de maneira menos gravosos para o devedor.”[16]
Porém, esse entendimento não é adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo quando há exceções ao bem de família por débito de IPTU: PENHORA - EXECUÇÃO FISCAL – IPTU - Exercícios de 2013 e 2014
PENHORA - EXECUÇÃO FISCAL – IPTU - Exercícios de 2013 e 2014 – Insurgência contra decisão que indeferiu a nomeação à penhora do imóvel sobre o qual incide a cobrança, ante a necessidade de esgotamento das tentativas de recebimento do crédito - Inaplicabilidade da proteção ao bem de família na espécie – Ressalva do art. 3º, IV, da Lei nº 8.009/90 – Inocorrência de afronta ao art. 805 do NCPC - Recurso provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2121205-98.2019.8.26.0000; Relator (a): Erbetta Filho; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Espírito Santo do Pinhal - 2ª Vara; Data do Julgamento: 26/07/2019; Data de Registro: 26/07/2019)
E, no entendimento do Desembargador Erbetta Filho, ao proferir o julgado negativo ao devedor acima mencionado:
“Nos termos do artigo 805 do Código de Processo Civil, o exequente deve sempre promover a execução de modo menos gravoso ao executado. Ademais, ainda que o Estado possua privilégios para cobrança de seu crédito ante o princípio da primazia do interesse público sobre o interesse privado, é certo que no presente caso encontra-se em voga também o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que o imóvel que a exequente pretende penhorar se trata da residência do executado, consoante se verifica da certidão do oficial de justiça no que tange à citação deste. Desse modo, ainda que a dívida de IPTU seja propter rem e o bem de família, nesse caso, possa ser penhorado ante o quanto disposto no artigo 3º, IV, da Lei nº 8.009/90, evidente que tal somente deve se dar quando esgotadas todas as tentativas de recebimento do crédito, especialmente considerando o valor do débito exequendo (R$5.646,29).
Por outro lado, não se enxerga ofensa ao estatuído no art. 805 do NCPC, pois que, de um lado, a execução realiza-se invariavelmente no interesse do credor (art. 797 do mesmo diploma), e, de outro, não se pode vislumbrar imposição de ônus excessivo à devedora a pretensão a que a penhora recaia sobre bens que possam melhor garantir a satisfação do crédito. Bem por isso, deve ter lugar a reforma do decisum impugnado para que tenha lugar o regular prosseguimento da cobrança para a satisfação do débito do executado.”
5. Possibilidade de substituição de bens
Evidentemente, que a Fazenda Pública, em relação de preferência a penhora ou constrições, prefere o dinheiro, porém, como é sabido, muitos dos devedores não tem nem o mínimo vital para sobrevivência do dia a dia.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo já proferiu sentença, reconhecendo a substituição da penhora do bem de família pelo devedor:
Agravo de Instrumento – Execução Fiscal – IPTU - Imóvel levado a leilão em hasta pública – Alegação de ser o imóvel único bem de família – Pedido de Substituição indeferido, na medida em que, segundo a decisão agravada, o imóvel indicado em substituição pertencente ao agravante e também pertence a APARECIDO FRANCISCO DE OLIVEIRA, de modo que se torna inviável a substituição sem a concordância de todos os proprietários – Circunstâncias em que o imóvel a ser substituído não pertence mais ao Sr. Aparecido desde 1988, conforme demonstra o documento de fls. (48) – Documentos apresentados que são suficientes para comprovar a alegada impenhorabilidade de tal imóvel, por ser único bem de família – Possibilidade do agravante oferecer outro bem em substituição à penhora – Recurso provido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2187927-56.2015.8.26.0000; Relator (a): Burza Neto; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Público; Foro de Novo Horizonte - 2ª Vara; Data do Julgamento: 12/11/2015; Data de Registro: 14/11/2015)
E ainda, em um caso diferente, houve posicionamento do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a impossibilidade dá Exequente exigir depósito em dinheiro quando já houve tentativas de bens à penhoras em face dos devedores, uma vez que não foram arrematados em leilão
EXECUÇÃO FISCAL - Substituição de bens penhorados, diante da ocorrência de leilões negativos - Exequente que, recusando o novo bem oferecido à constrição pela executada, exige depósito em dinheiro - Rejeição fundada no artigo 15, II, da Lei 6.830/80 - Inadmissibilidade - Aplicação do princípio contido no artigo 620 do CPC - Imóvel ofertado, ademais, que se afigura útil ao processo executivo - Inconveniência da oferta não demonstrada - Precedentes jurisprudenciais - Recurso provido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 9037560-18.2003.8.26.0000; Relator (a): Enrique Ricardo Lewandowski; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Público; Foro de Santos - 1. VARA FAZ PUBL; Data do Julgamento: N/A; Data de Registro: 16/06/2003)
6. Conclusão
Por todo exposto, realmente existe a possibilidade de um trabalhador perder seu único bem de família por dívidas provenientes de IPTU, nos termos do art. 3, IV, da Lei 8.009/90 e pela jurisprudência majoritária.
Por muitas vezes às dívidas por débitos de IPTU realmente são legitimas, exigíveis e líquidas, porém, os Julgadores não podem deixar de observar a carga e o ônus aos devedores, tendo que priorizar o princípio da menor onerosidade da execução.
Entendo que há outras maneiras mais viáveis aos devedores no caso de haver apenas um imóvel como bem de família, como por exemplo, a possibilidade de substituição de por qualquer bem, independente da lista de preferência acostada pelo art. 11, da LEF, mas que satisfaça o crédito tributário do Fisco da mesma forma. Ou ainda, o devedor poderá realizar junto a Fazenda Municipal, os parcelamentos da dívida.
Porém, a Fazenda Pública e os Julgadores, não podem ter a mentalidade e observação da única solução possível em satisfazer o crédito tributário, seja qual, em penhorar o único imóvel dos contribuintes, pois, assim, provavelmente em muito dos casos, o remanejo dessas pessoas será em morar de baixo da ponte, não resolvendo, dessa forma, os poucos problemas sociais que já ocorrem no Brasil.
Por fim, penso que o legislador, juntamente com o povo, pode analisar e buscar um meio termo em busca da boa-fé dos contribuintes que não possuem o mínimo para o dia a dia, pois, as poucas esperanças das pessoas que sofrem com desigualdades sociais no Brasil, vem das pequenas conquistas, com o trabalho duro, assim, tirar o ínfimo é impossibilitar o desenvolvimento social brasileiro.
[1] KFOURI JR, Anis – Curso de Direito Tributário, 2ªEd, Saraiva, São Paulo, 2012, p.550
[2] MACHADO, Hugo de Brito – Curso de Direito Tributário, 29ªEd, Editora Malheiros, 2008, p.464
[3] Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/08/14/interna-brasil,777032/miseria-extrema-no-pais-cresce-e-atinge-13-2-milhoes-de-brasileiros.shtml#:~:text=Segundo%20o%20Instituto%20Brasileiro%20de,7%2C4%25%20dos%20brasilei> Publicado em 14/08/2019.
[4] Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/18/mais-170-mil-brasileiros-entraram-para-a-pobreza-extrema-em-2019.htm> Publicado em 18/05/2020.
[5] FREIRE, Silvio Ricardo Maciel Quennehen – Dívida de IPTU pode Levar a Penhora Bem de Família – Disponível em: <https://silvioricardomacielfreire.jusbrasil.com.br/artigos/648653912/divida-de-iptu-pode-levar-a-penhora-bem-de-familia>
[6] ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros – Bem de Família, São Paulo, 2006, p.294;
[7] DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias, 10ªEd, Revista dos Tribunais, 2015, p.361;
[8] DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias, 10ªEd, Revista dos Tribunais, 2015, p.361;
[9] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família: com comentários à Lei 8.009/90. p. 245;
[10] FACHIN, Luiz Edson – Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, p. 301
[11] ZILVETI, Ana Marta Cattani de Barros – Bem de Família, São Paulo, 2006, p.314.
[12] VELASCO, Ignácio Maria Poveda, Algumas Considerações à Respetio do Beneficium Competentiae, disponível em: <https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/download/67328/69938/>
[13] VILLELA, Ana Lucia – A Impenhorabilidade do Bem de Família do Fiador Locatício, disponível em: <http://www.pnst.com.br/newsletter/PNST_Newsletter31.html>
[14] DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias, 10ªEd, Revista dos Tribunais, 2015, p.362;
[15] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil: Artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1159
[16] NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade – Código de Processo Civil Comentado, 16ºEd, Revista dos Tribunais, 2016, p.1797