O DIREITO DE FAMÍLIA, A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A DESCONSTRUÇÃO DA IDEOLOGIA DA FAMÍLIA PATRIARCAL

O afeto como protagonista para caracterização da família

21/07/2020 às 09:24
Leia nesta página:

O artigo trata da evolução do direito de família ao considerar a existência de afeto para caracterização das famílias, priorizando a pessoa humana, seu bem-estar e o pleno desenvolvimento das virtudes e aptidões de seus componentes.

            O direito de família é uma das áreas mais complexas do universo jurídico, pois lida, diretamente, com as emoções, por vezes convertidas em ódio, mágoas e disputa por patrimônios construídos quando da existência de amor.

            Em regra, as demandas sequer resolvem de fato o problema que ocasionou a ação, estando a figura do magistrado ou da magistrada em constante intervenção em assuntos da esfera doméstica, mas que, diante da problemática existente, tiveram de ser levadas à esfera pública, ainda que em segredo de justiça.

            Nesse cenário é fato que não é possível dar conta do problema se a legislação não se atualizar, ou seja, não se coadunar com a realidade das famílias e suas demandas passíveis de judicialização. Um grande exemplo dessa necessária adaptação é a evolução legislativa do próprio conceito de família já que, por questões históricas, tornou-se inviável estabelecer um modelo familiar uniforme, havendo a necessidade de traduzi-la em conformidade com as transformações sociais no decorrer do tempo (NORONHA E PARRON, 2017 apud FARIAS E REOSENVALD, 2011).

            Nesse contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana passou a protagonizar o conceito de família, de modo que:

Na medida em que a ordem constitucional elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento da ordem jurídica, houve uma opção expressa pela pessoa, ligando todos os institutos a realização de sua personalidade. Tal fenômeno provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos, de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do direito (DIAS, 2009).

 

            A elevação da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, CF 88) como ponto central no direito de família, especialmente no tocante ao conceito de família, evidenciou a necessidade de compreensão conquanto à pluralidade das entidades familiares e suas variadas organizações que, a partir do vínculo da afetividade, surgem de forma cada vez mais intensa no meio social, não podendo este ser ignoradas pela legislação. Além do matrimônio, no que tange à estrutura família; a união estável (art. 226, §3º) e a família monoparental (art. 226, §4º) receberam expresso amparo constitucional, em que pese não ser um rol taxativo.

            Com a centralização da ideia de afeto outros paradigmas puderam ser quebrados, a exemplo da estrutura patriarcalista e heteronormativa, denotando um importante progresso no Direito de Família, vez que se tratou do reconhecimento da própria realidade em contraponto ao conservadorismo hipócrita.

 

A DESCONSTRUÇÃO DA IDEOLOGIA DA FAMÍLIA PATRIARCAL

Conforme preceitua o artigo 226 da Constituição Federal, a família é a base da sociedade e por essa razão tem especial proteção do Estado. A convivência humana está estruturada a partir de cada uma das diversas células familiares que compõem a comunidade social e política do Estado, que assim se encarrega de amparar e aprimorar a família, como forma de fortalecer a sua própria instituição política (MADALENO, 2018).

Ocorre que com o advento da Constituição Federal de 1988, passou a ser descontruída a ideia de família patriarcal, monogâmica, parental, centralizada na família paterna e patrimonial que asfixiava o afeto. Ainda, nas palavras de Sérgio de Barros Resende:

“O afeto é que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal – tão forte e estreito, tão nítido e persistente – que hoje independe do sexo e até das relações sexuais, ainda que na origem histórica não tenha sido assim. Ao mundo atual, tão absurdo é negar que, mortos os pais, continua existindo entre os irmãos o afeto que define a família, quão absurdo seria exigir a prática de relações sexuais como condição sine qua non para existir a família. Portanto, é preciso corrigir ou, dizendo com eufemismo, atualizar o texto da Constituição brasileira vigente, começando por excluir do conceito de entidade familiar o parentalismo: a exigência de existir um dos pais” (BARROS, 2006)

 

Cristiano Chaves de Farias também preleciona que:

“A entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão não se pode chegar à luz do Texto Constitucional, especialmente do artigo 1º, III, que preconiza a dignidade da pessoa humana como princípio vetor da República Federativa do Brasil (FARIAS, 2004)

 

            Sendo o afeto o critério determinante para a caracterização das famílias, afastou-se uma série de preconceitos constitucionalizados associados a ideias machistas, heteronormativas e homofóbicas, possibilitando que de fato as famílias, vinculadas por laços que transcendem o sangue, tivessem direitos reconhecidos, sendo este um fato extremamente relevante já que o não reconhecimento desses laços era um grande fator de produção de injustiças e violências institucionalizadas.

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Um dos exemplos de configuração familiar que tiveram sua existência reconhecida foi a homoafetiva que, por sua vez, refere-se à união entre pessoas do mesmo sexo. Assim:

Primeiro a jurisprudência e depois o Direito atribuiu efeitos jurídicos aos comportamentos dos pares afetivos, renunciando o privilégio até pouco tempo vigente, de exaltação jurídica reservada exclusivamente ao casamento civil, passando a aceitar, em um primeiro momento, que apenas pessoas de sexos distintos pudessem se associar em um projeto de vida em comum, mas que não passava pelo matrimônio civil. Vínculos forjados em foro íntimo precisam ser oficialmente reconhecidos, pois seus integrantes desejam organizar socialmente suas vidas e fortalecer, sob os auspícios legais e jurídicos, os seus laços homoafetivos, que sempre estiveram presentes na sociedade, contudo só não eram reconhecidos pela lei, não obstante a natureza não se cansasse de contrariar o legislador, que ainda reluta em reconhecer entidade familiar que não seja formada por um homem e uma mulher. (MADALENO, 2018)

 

            Importante rememorar que no passado os casais homoafetivos enfrentavam grave resistência, inclusive dos Tribunais, quando da busca pelo reconhecimento de suas uniões e os respectivos efeitos jurídicos. Porém, este cenário foi alterado especialmente com o advento dos julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF 132/2008 (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) e na ADI 4.277/2009 (Ação Direta de Inconstitucionalidade), que pediam a validade das decisões administrativas que equiparavam as uniões homoafetivas às uniões estáveis, como também requeriam a suspensão dos processos e dos efeitos de todas as decisões judiciais em sentido oposto.

            No julgamento das ações acima a procedência foi conferida por unanimidade, ao passo em que definiu ao artigo1.723 do Código Civil interpretação nos termos da Constituição, excluindo qualquer significado que impedisse o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família (MADALENO, 2018).

            Tal decisão, para além da superação de um preconceito antes institucionalizado, representou, novamente, o protagonismo do afeto como critério determinante para configuração das famílias, possibilitando o reconhecimento do conteúdo em detrimento da forma, do amor em detrimento das convenções sociais.

            O reconhecimento desta configuração familiar é, sem dúvida, a demonstração de que se passou, de fato, a priorizar a pessoa humana, seu bem-estar e o pleno desenvolvimento das virtudes e aptidões de seus componentes, dando ênfase à realização pessoal e não a uma pseudo-estrutura arcaica e opressora.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARROS, Sérgio Resende de. A tutela constitucional do afeto. In: Família e dignidade humana. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Belo Horizonte: IBDFAM. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2006

 

DIAS. Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

 

FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Constitucional à família (ou famílias sociológicas x famílias reconhecidas pelo Direito: Um bosquejo para uma aproximação conceitual à luz da legalidade Constitucional. In: Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese e IBDFAM, v. 23, p. 15, 2004.

 

FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias.3. ed., rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011.

 

MADALENO, Rolf. Direito de família / Rolf Madaleno. - 8. ed., rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2018.

 

NORONHA, Maressa Maelly Soares; PARRON, Stênio Ferreira. A Evolução do Conceito de Família. Artigo realizado no Curso de Direito da Faculdade de Ciências Contábeis de Nova Andradina – FACINAN, 2017.

 

 

Sobre a autora
Anne Caroline Fidelis de Lima

Advogada, bacharela em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, professora universitária, mestra em sociologia pela Universidade Federal de Alagoas, pós-graduada em direito civil, processo civil pela Escola Superior de Advocacia da OAB/AL e em gestão pública municipal pela Universidade Federal de Alagoas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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