Aplicação da teoria da “Actio libera in causa”

Acerca da embriaguez voluntária ou culposa

22/07/2020 às 15:21
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Este artigo vem trazer uma discussão, dentro do âmbito jurídico penal, acerca da aplicação da Teoria da "Actio Libera in causa" no ordenamento jurídico brasileiro, no que tange à embriaguez voluntária ou culposa do agente do crime.

O Código Penal em seu art. 28 inciso II, reza de forma expressa a não exclusão da imputabilidade penal, dos casos de embriaguez voluntária ou culposa ocorrida pelo álcool ou por substâncias de efeitos análogos.

Consubstanciada também no princípio de que “a causa da causa também é a causa do que foi causado” e de acordo com a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, no seu item 21, o qual foi mantido pela lei 7.209 de 1984, que diz:

ao resolver o problema da embriaguez (pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos), do ponto de vista da responsabilidade penal, o projeto aceitou em toda a sua plenitude a teoria da ‘Actio Libera em Causa ad libertatem’, relata que, modernamente, não se limita ao estado de inconsciência preordenado, mas se estende a todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estado de inconsciência.

Desta forma, surge o acolhimento da Teoria da “Actio Libera in Causa”, que é oriunda do Direito Italiano e que sua tradução é “Ação Livre na causa”.

A teoria da “Actio libera em causa” considera para fins de análise de entendimento e autoterminação do agente, o momento do consumo do álcool ou de outras substâncias de efeitos análogos, e não o momento da prática do ato criminoso em que ele encontrava-se em estado de inconsciência. Assim, o que será levado em consideração por essa teoria é se o agente era livre para entender e decidir se se embriaga ou não, ou seja, se ele possuía todo entendimento e autodeterminação neste momento. Se a resposta for sim, aplica-se a teoria da “Actio Libera in Causa” a esse agente o qual deverá responder pelo delito que cometeu por ter se colocado livremente em estado de inconsciência e praticado uma ação criminosa.

Embriaguez Preordenada é aquela em que o agente se embriaga com intenção de praticar um delito. Assim, para encorajar-se ou para gerar uma adrenalina maior, ele consome a substância de forma demasiada e coloca-se em estado de inconsciência para produzir seu intento criminoso. A esta espécie de embriaguez, será aplicada a teoria da “Actio Libera in Causa” com a finalidade de responsabilizar o agente embriagado que se colocou, voluntariamente, em estado de inconsciência para praticar a conduta criminosa.

Vale a pena consignar que, se não fosse aplicada a teoria da “Actio Libera in Causa”, o Direito Penal não poderia punir o agente do fato criminoso, pois, se ele não tinha capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento no momento da ação criminosa, ele teria que ser considerado inimputável, fato que geraria um grande risco para proteção dos bens jurídicos tutelados e para a convivência social, obrigando assim, a sociedade conviver e suportar um risco não permitido.

Há uma celeuma na doutrina penalista quanto à aplicação da teoria da “Actio Libera in Causa” nos casos de embriaguez voluntária e culposa, visto que, nestes casos, o agente se embriaga colocando-se em estado de inconsciência sem qualquer intensão de cometer crimes.

A lei penal conforme o art. 28 II, não exclui a imputabilidade penal do agente pela embriaguez voluntária ou culposa, independentemente de sua intensão de cometer crime ou não, conforme também exposto na Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal, o que autoriza a aplicação da teoria da “Actio Libera in Causa” não só na embriaguez preordenada, como também, na embriaguez voluntária ou culposa.

Parte da doutrina, neste ponto, critica a lei dizendo que o legislador criou uma “responsabilidade penal objetiva” que é inadmissível no Direito Penal Moderno, quando autorizou a aplicação da “Actio libera in Causa” na embriaguez voluntária ou culposa, ou seja, embriaguez sem a intensão de cometer crimes.

Alguns doutrinadores dentro dessa temática falam que há a chamada “Teoria da Vontade Residual”, onde, mesmo o agente embriagado, nos casos de embriaguez voluntária ou culposa, gerando um estado de inconsciência, resta ainda, um mínimo de entendimento e vontade na conduta dele.

Ora, se há algum entendimento e capacidade de vontade por parte do agente embriagado, não há que se falar mais na aplicação da “Actio libera in Causa”, e sim, na punibilidade da conduta do autor que não era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Fernando Galvão acerca da vontade residual, relata que essa posição não teve aceitação, visto que, não se consegue provar cientificamente, que pode-se haver uma consciência residual em uma pessoa que se encontra completamente embriagada.

O doutrinador Nelson Hungria entende ser aplicável plenamente a “Actio Libera in Causa” tanto para embriaguez preordenada como para voluntária e culposa, citando que:  

mesmo quando não haja preordenação, não fica excluída, nos crimes comissivos, a responsabilidade a título de dolo, desde que, ao colocar-se voluntariamente em estado de conturbação psíquica, o indivíduo soube que estava o risco, que acertou de ocasionar resultados antijurídicos. Posto que haja relação causal entre o voluntário estado de consciência e a conduta produtiva do evento lesivo, não há porque desconhecer a culpabilidade.

Preleciona também sobre a aplicação plena da teoria da “Actio Libera in Causa” o autor Narcélio de Queiroz dizendo que entende-se por “Actio Libera in Causa”:

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os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intensão de produzir o resultado lesivo (embriaguez preordenada), ou sem essa intensão, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou ainda, quando a podia ou devia prever.

Também corroborando do mesmo entendimento, os autores Eugênio Pacelli e André Calegari asseveram que, não há qualquer problema na aplicação da Teoria da “Actio Libera in causa” quando ocorrerem casos de embriaguez preordenada, voluntária ou culposa, pois, nas três situações, o agente assume o risco de praticar algum delito, ou no mínimo, lhe era previsível, tornando-se desta forma, responsável pelo seu ato.

Contra a aplicação plena da teoria da “Actio Libera in Causa”, afirma o autor Fernando Capez que essa aplicação demonstra que ainda existe a presença resquiciosa da responsabilidade objetiva no nosso Direito Penal. Também o professor Roberto Bitencourt criticando a aplicação da teoria da “Actio Libera in Causa” nos casos de embriaguez voluntária e culposa, afirma que:  

A “Actio Libera in Causa” fundamenta a punibilidade de ações praticadas em estado de embriaguez não acidental. No entanto, não abrange aquelas situações em que o agente quer ou imprudentemente se embriaga sem prever ou poder prever a ocorrência de um fato delituoso. Nelas, o que é livre na causa não é a ação criminosa, mas somente a embriaguez. Poderá o agente praticar um ilícito penal em estado de embriaguez, que era absolutamente imprevisível, no momento ou antes da embriaguez. E quando há imprevisibilidade, não se pode falar em “Actio Libera in Causa”, diante da impossibilidade de relacionar esse fato a uma formação de vontade contrária ao direito.

Respeitando as posições contrárias, nossa posição é que a “Actio Libera in Causa” deve ser aplicada de forma plena, ou seja, sua aplicação deverá abarcar tanto os casos de embriaguez preordenada, com intensão de praticar crime, quanto nos casos de embriaguez voluntária ou culposa, sem intensão de praticar crime, visto que, o agente, no momento de decidir se embriaga-se ou não pelo uso de bebidas ou substâncias de efeitos análogos, ele detinha todo entendimento de sua conduta de embriagar-se e era livre na causa, ou seja, podia agir por sua própria vontade.

Destarte, não poderá o agente que, voluntariamente ou de forma culposa, coloca-se em estado de inconsciência, alegar a exclusão da imputabilidade porque simplesmente, no ato do consumo da substância entorpecente, não tinha intensão de praticar um crime. Ora, e o crime que o agente cometeu ficará sem punição? Ou seja, o bem jurídico não será protegido quando alguém se colocar na posição de inimputável por sua vontade ou culpa? Ademais, toda pessoa que se colocar na posição de inconsciência de forma dolosa ou culposa, terá carta branca para cometer crime só porque quando ingeriu a substância entorpecente, não tinha intensão de praticar tal delito? E outra pergunta: o bem jurídico e a sociedade é obrigada a suportar um risco não permitido?

Se o Direito Penal tem como uma de suas funções mais importantes à proteção do bem jurídico, ele não poderá abrir mão da aplicação da teoria da “Actio Libera in Causa” nos casos supracitados.

O assunto é de suma importância, visto que, devido ao elevado número de pessoas que ingerem bebidas desregradamente, e outros, que utilizam-se de drogas lícitas e ilícitas, acabam por colocar em um risco não permitido os bens jurídicos alheios e a própria sociedade, quando, ao se comportarem dessa forma, colocam-se voluntariamente ou culposamente em estado de inconsciência.

Por tais razões, a teoria da “Actio Libera in Causa” deverá ser aplicada além dos casos de embriaguez preordenada, também aos casos de embriaguez voluntária ou culposa, com o objetivo de punir na medida de sua culpabilidade as pessoas que, por suas condutas desregradas e irresponsáveis no consumo de substâncias entorpecentes – entendido aqui álcool, drogas e outras de efeitos análogos – colocam-se em estado de inconsciência e praticam atos criminosos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral – vol. 1 – 25. ed., rev., atual e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2019.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, vol. 1: parte geral: (arts. 1º a 120) / Fernando Capez. – 22. ed. – São Paulo: Saraiva, 2018.

GALVÃO, Fernando. Direito Penal: Parte Geral – 4. ed., rev., atual. E ampliada. – Rio de Janeiro: Lumes Juris, 2011.

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1949. v. I, p. 262.

PACELLI, Eugênio. Manual de Direito Penal: Parte Geral/ Eugênio Pacelli, André Callegari. – 2. ed., rev. E atual. – São Paulo: Atlas, 2016.

QUEIROZ, Narcélio de. Teoria da “actio libera in causa” e outras teses. Rio de Janeiro: Forense, 1963.

Sobre o autor
Luciano Costa Felix

Graduado em Direito. Pós-graduado em Direito Judiciário pela Escola da Magistratura do Estado do Espirito Santo (EMES). Mestre em Segurança Pública. Aprovado na OAB. Professor Universitário da Graduação e Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal. Professor da Academia da Policia Militar do Estado do Espírito Santo. Autor de Obra Jurídica de Direito Penal - Parte Geral. Oficial da ativa da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Tem o objetivo de esclarecer à comunidade jurídica, sobretudo, os que labutam no Direito Penal, acerca da aplicabilidade dessa Teoria tão importante para as Ciências Criminais e para promoção da justiça no caso concreto.

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