Morte emblemática e silêncio contundente

23/07/2020 às 01:35
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Não importa a quantidade de melanina. Existe igual proporção de humanidade que exige sempre a dignidade a ser respeitada.

Morte emblemática e silêncio contundente

 

 

 

Palavras-Chave: Racismo. Violência policial. Racismo Estrutural. Dignidade Humana. Desigualdade.

Os EUA vivenciam a mais forte onda de manifestações populares desde 1968, quando após o assassinato do líder em defesa dos direitos civis, reverendo Martin Luther King Junior.

 

O estopim dos presentes protestos foi a explícita asfixia letal de George Floyd, um afro-americano de quarenta e seis anos de idade que fora realizada por policial branco que se ajoelhara sobre seu pescoço, por mais de oito minutos.

 

O homicídio acarretou fortes manifestações populares em repúdio em mais de setenta e cinco cidades norte-americanas e, mesmo em outros países; como o Reino Unido, apesar de que em mais de quarenta cidades norte-americanas fora decretada pelas autoridades o toque de recolher.

 

Deu-se, igualmente, o uso da Guarda Nacional (que é a força militar para emergências) quando foi acionada mais de dezesseis mil soldados que foram distribuídos entre os vinte e quatro Estados e a capital Washington.

 

O infame assassinato de George foi chocante e os protestos ocorrem justamente em meio a pandemia do Covid-19 e, trouxeram os gritos uníssonos de multidões: - Black Lives Matter! (Vidas negras importam!) e I can’t breathe (Não consigo respirar).

 

A população de Minneapolis, em Minnesota, ocupou a rua em protesto e as imagens de delegacias, lojas e automóveis incendiados circulam pelas redes sociais e na imprensa internacional, retratando a intensa revolta de milhares de cidadãos com o mais brutal caso de violência policial no país, repudiado em todo o mundo.

 

O vídeo da morte de Floyd demonstra perfeitamente e fora realizado por uma testemunha ocular, mostrando que a vítima restava completamente imobilizada e, já deitada rente ao chão, e sua fala em agonia que anunciava que não conseguia respirar. O que representou poderoso gatilho para haver a presente e ruidosa indignação.

 

Os ativistas da causa negra contra o racismo nos EUA defendem-se que o protesto é pacífico e, não há incluem atos de vandalismo que quebram e incendeiam propriedades. Há oportunistas juntando-se aos ativistas para fins ilegais, infelizmente.

 

Mas, a morte do Floyd não é caso isolado nas comunidades pobres e negras norte-americanas que são submetidas a constante e excessiva vigilância policial.

 

O historiador Julian Zelizer da Universidade de Princeton assinala que os negros vivem com medo perante exatamente aqueles que deveriam protegê-los. Há estudos que apontam que os negros têm 3,5 vezes maiores chances de serem mortos por policiais, em comparação aos brancos. E, ainda, entre os adolescentes tal possibilidade é vinte e uma vezes maior. Estatísticas balizadas registram que a cada quarenta horas a polícia ianque mata uma pessoa negra.

 

O Jornal Extra, em 25.05.2015 apontou que o racismo e violência policial são as maiores causas de homicídios de jovens no Brasil. E, ainda, informa que a cada dez minutos, uma pessoa é assassinada no país. Meninos têm 12 vezes mais chances de fazer parte dessas estatísticas que meninas.

 

Meninos negros[1] têm três vezes mais chances de serem assassinados que os brancos. Se o garoto for negro e morar na Paraíba, a relação é 13 vezes maior. (In: https://extra.globo.com/noticias/brasil/racismo-violencia-policial-sao-as-maiores-causas-de-homicidios-de-jovens-no-brasil-16266973.html Acesso em 07.6.2020).

 

Aliás, os excessos da parte dos policiais não representam a única faceta do racismo dos EUA, nem foram o único motivo dos protestos atuais. É a profunda desigualdade que os afeta, bem como elevados níveis de mortalidade materna, além de serem os negros a maioria da população carcerária e, as contumazes vítimas fatais do Covid-19.

 

Até a pandemia dissemina-se com maior facilidade entre negros e mestiços que sofrem desproporcionalmente, seja em número de contaminados e, em número de óbitos.

 

Zelizer. ainda aponta. a resposta equivocada de Trump que só fez inflamar os ânimos, quando se precisava de líder apaziguador e, não mais, de um piromaníaco no cenário já conturbado. Outra infeliz coincidência com a triste realidade brasileira.

 

O racismo estrutural é a naturalização ou banalização de pensamentos e práticas de discriminação racial. E, nosso país carrega o pesado fardo de três séculos de escravidão, tendo sido o derradeiro país a aboli-la, pelo menos formalmente em 1888.

 

E, depois de mais meio século, restou então fixado no inconsciente coletivo brasileiro, a marginalização de pessoas negras e mestiças que deixam de exerce por direito sua cidadania plena.

 

É o caso da prática recorrente de piadas vexatórias abordando negros, indígenas, asiáticos, bem como, outras etnias que são expostas e ridicularizadas por práticas degradantes e criminosas. Aliás, entre nós, tem até sujeito ativo do crime, integrando o Ministério da Educação (o que por si só, parece ser outra piada ou ironia de gosto duvidoso).

 

O racismo estrutural é parte integrante do cotidiano brasileiro e, não é velado, apesar de vozes dissidentes. Por isso, existe o uso reiterado de eufemismos tais como “pessoa de cor”, “moreno”, “queimado” e “pardo[2]”, o que acentua o nítido desconforto em utilizar as palavras “negro”, “negra” ou “preto” e “preta”.

 

O racismo social igualmente já foi chamado de estrutural segundo Carl E. James[3] pois a sociedade é arquitetada de forma a excluir número expressivo de minorias da participação em instituições sociais, se bem, que no Brasil os negros e mestiços não representem minorias.

 

Recentemente, uma criança de apenas cinco anos de idade morreu após a queda do novo andar de edifício de luxo na capital pernambucana (35 metros de altura). A vítima da queda, era filho da empregada doméstica, e estava sob os cuidados de Sarí Mariana Corte Real, a primeira-dama da cidade de Tamandaré, qual fora solta após o pagamento de régia fiança de vinte mil reais, por homicídio culposo.

 

Convém frisar, oportunamente, que houve, in casu, o famoso dolo eventual, diante da comprovação cabal de filmagem[4] que viralizou tanto na mídia brasileira como em redes sociais, demonstrando o abandono da criança no elevador de serviço, tratando-se, portanto, de homicídio doloso.

 

Miguel, filho de Mirtes, na ocasião acompanhou a sua mãe ao trabalho, porque em face da presente pandemia não tinha a creche em razão de medidas de isolamento social e, não poderia ficar com sua avó materna, pois esta precisava ir ao médico.

 

Aliás, a mãe de Miguel, Mirtes, como empregada doméstica prosseguiu trabalhado, apesar de seu serviço não ser reconhecido e considerado como essencial pelas listas oficiais brasileiras.

 

Cumpre, ainda, sublinhar a responsabilidade civil do referido Condomínio de luxo remanesce, pois o lugar oferece explícita periculosidade factível de ser simplesmente evitada através de cuidados e providências mínimas.

 

Mirtes e a sua mãe trabalhavam para Sarí e Sérgio Hacker, o atual prefeito de Tamandaré, mas pediram demissão. A morte de Miguel, mais um arcanjo caído, credita-se provavelmente ao racismo estrutural brasileiro, onde vige a tolerância para atos tanto constrangedores como abandonos letais.

 

Há quem condene a mãe de Miguel. Há quem condena a patroa. Mas, não há quem condena a consciência sistemática de não se importar com a vida humana e, a urgente necessidade de se preservar sua dignidade.

 

Novamente, o Presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo alcunhou publicamente o movimento negro de “escória maldita”[5], além de manifestar rejeição às religiões de origem africana.

 

E, o fato de ser negro, não lhe confere imunidade, nem credenciamento para cometer o crime de racismo bem como promover a discriminação contra as religiões de cepa africana.

 

Não vige imunidade penal nem moral para quem comete crime imprescritível e inafiançável de racismo[6], ou ainda, de injúria racial[7].  Infelizmente, tudo ocorre mediante o desgoverno brasileiro atual que entoa o mais contundente silêncio[8].

 

Referências:

 

 

DORIGNY, Marcel. As abolições da escravatura no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2019.

FERREIRA, Antônio Honório. Classificação racial no Brasil, por aparência ou por origem? Disponível em: https://anpocs.com/index.php/papers-36-encontro/gt-2/gt30-2/8192-classificacao-racial-no-brasil-por-aparencia-ou-por-origem/file   Acesso em 07.06.2020.

FURTADO FILHO, Emmanuel Teófilo. Combate à Discriminação Racial no Brasil e na França: Estudo Comparado da Efetivação das Ações Afirmativas. São Paulo: LTr, 2013.

GOMES, Laurentino.  Escravidão. Vol.1 Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi de Palmares.  Rio de Janeiro: Editora GloboLivros, 2019.

HEYWOOD, Linda M. Diáspora Negra no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Contexto, 2008.

JORNAL EXTRA. Data: 25.05.2015 Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/racismo-violencia-policial-sao-as-maiores-causas-de-homicidios-de-jovens-no-brasil-16266973.html Acesso em 07.6.2020).

LEITE, Gisele. O que é preconceito? Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/374355 Acesso em 07.6.2020.

_____________. Ainda sobre o preconceito ... Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/2729962 Acesso em 07.6.2020.

______________. Constitucionalismo norte-americano e separação de poderes. Disponível em: https://juristas.com.br/2020/06/06/constitucionalismo-norte-americano-e-separacao-de-poderes/  Acesso em 7.6.2020.

_______________. Em um país chamado favela. Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/em-um-pais-chamado-favela  Acesso em 07.06.2020.

_______________. Considerações sobre a segregação racial nos Estados Unidos (EUA). Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/consideracoes-sobre-a-segregacao-racial-nos-estados-unidos-eua  Acesso em 07.06.2020.

PARDO - Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pardos  Acesso em 07.06.2020.

 


[1] O manual do IBGE define o significado atribuído ao termo “pardo” como pessoas com uma mistura de cores de pele, seja essa miscigenação mulata (descendentes de brancos e negros), cabocla (descendentes de brancos e ameríndios), cafuza (descendentes de negros e indígenas) ou mestiça. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2006, os pardos compõem 79,782 milhões de pessoas, ou 42,6% da população do Brasil. Estudos genéticos contemporâneos revelam que os pardos possuem ancestralidades europeia, indígena e africana, variando as proporções de acordo com o indivíduo e a região.

[2] O primeiro recenseamento geral da população, o de 1872, diferenciava as pessoas pela condição de serem livres ou escravas. As categorias de cor utilizadas foram aquelas que estavam mais disseminadas na população à época: preto, pardo, branco e caboclo. Preto e pardo eram as categorias de cor, reservadas aos escravos, mas também para as pessoas livres. O segundo censo geral, o de 1890, também adotou o critério misto para compor as categorias (preto, branco, caboclo e mestiço), de modo a referir-se, explicitamente, à ancestralidade ou ascendência das pessoas. Nota-se que o termo mestiço substituiu o

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termo “pardo” e deveria ser usado para se referir, exclusivamente, aos descendentes da união de pretos e brancos. O termo “mestiço” deu lugar ao termo “pardo” e criou-se a categoria amarelo para designar os imigrantes asiáticos, particularmente japoneses e seus descendentes, que ingressaram no país a partir de 1908. O Censo de 1950, segundo dos censos modernos, seguiu as cores do Censo de 1940 e explicitava que a categoria” pardo” deveria abranger os índios, mulatos, caboclos, cafuzos e outros, um amálgama de aparência e origem.

[3] Professor de Educação da Universidade de York onde é nomeado em programas de pós-graduação em Sociologia e na Escola de Serviço Social, e também atua como diretor do Centro de Educação e Comunidade de York. Ele é o autor de Race in Play: Entendendo os mundos socioculturais dos estudantes atletas (CSPI, 2005), coeditor da popular coleção Raça e racialização: leituras essenciais (CSPI, 2007) e autor de inúmeros livros e artigos acadêmicos, bem como um colaborador regular da mídia nacional.

[4]  In: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-miguel-video-mostra-caminho-percorrido-por-menino-antes-de-cair-do-9o-andar-e-morrer.ghtml

[5]  In: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/06/02/presidente-da-fundacao-palmares-chama-o-movimento-negro-de-escoria-maldita.ghtml Esta não é a primeira vez que Sérgio Camargo se envolve em polêmica. A nomeação dele, em novembro de 2019, pelo presidente Jair Bolsonaro chegou a ser suspensa na Justiça por declarações incompatíveis com o cargo.

[6] A prática de racismo ainda é uma realidade na sociedade brasileira. Por conta disso, ao formular a Constituição Cidadã de 1988, o constituinte se preocupou não somente em garantir direitos e liberdades individuais, mas também em assegurar que isso fosse concretizado por meio da punição a comportamentos que violem tais direitos. O crime de racismo é uma dessas formas de violação dos direitos e liberdades individuais e, dessa maneira, é por meio do Inciso XLII do Artigo 5º da Constituição Federal que ele é definido como crime.

[7] Ao contrário da injúria racial, cuja prescrição é de oito anos – antes de transitar em julgado a sentença final –, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, conforme determina o artigo 5º da Constituição Federal. Apesar disso, de acordo com o promotor Pierobom, na prática é difícil comprovar o crime quando os vestígios já desapareceram e a memória enfraqueceu. O promotor lembra de um caso em que foi possível reconhecer o crime de racismo após décadas do ato praticado, o Habeas Corpus 82.424, julgado em 2003 no Supremo Tribunal Federal (STF), em que a corte manteve a condenação de um livro publicado com ideias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade  judaica, considerando, por exemplo, que o holocausto não teria existido. A denúncia contra o livro foi feita em 1986 por movimentos populares de combate ao racismo e o STF manteve a condenação por considerar o crime de racismo imprescritível.

(In: https://www.politize.com.br/artigo-5/criminalizacao-do-racismo/).

 

[8] Segundo um levantamento feito pela “GloboNews”, do ano de 1988, até ano de 2017, apenas 244 processos de injúria racial e racismo foram finalizados no Estado do Rio de Janeiro. Isso demonstra que, apesar dessas práticas serem frequentes em nossa sociedade, ainda não conseguimos solucioná-las e puni-las devidamente, mesmo com as disposições constitucionais do inciso XLII.

 

Sobre a autora
Gisele Leite

Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores POA -RS.

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