A psicografia como meio de prova

24/07/2020 às 09:46
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A redação trazida pelo novo CPC acolheu o princípio do livre convencimento do juiz e os modernos sistemas probatórios, em geral, dispõem que outros meios de provas além daqueles tipificados são passíveis de utilização no processo,

 

Nos últimos anos, ainda que a grande mídia não tenha noticiado, importante e acalorada discussão surgiu no meio jurídico: pode, ou não, ser a psicografia utilizada como meio de prova? Seria legal, aplicável ou não?

Sem a pretensão de adentrar no tema com o rigor científico ou acadêmico, que não é o nosso objetivo, destacamos aqui alguns aspectos que denotam o interesse acerca dos fenômenos mediúnicos pelos operadores do direito, profitentes ou não da Doutrina Espírita.

Como todo debate, abstraindo-se do caso concreto – o processo judicial – observa-se uma corrente favorável e outra contrária.

A corrente contrária se mobilizava e tentava proibir o uso da prova psicografada, através do Projeto de Lei n.º 1.705/2007 [1], que felizmente fora arquivado em 31 de janeiro de 2011 pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Os argumentos dos que são contrários são relativamente simples e não fogem ao lugar-comum: as possíveis fraudes ou erros na captação da mensagem. A este acrescentam que o Estado brasileiro é laico, que a existência da pessoa natural se extingue com a morte e que a sua admissão violaria as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

O Código de Processo Civil de 1973 estabelecia, em seu artigo 332, que todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados, eram hábeis para provar a verdade dos fatos, tanto no aspecto em que se fundava a ação ou a defesa.

Mudança sutil, mas não menos importante, foi trazida pelo novo Código (2015) que em seu Art. 369 estabeleceu: “As partes têm o direito de empregar os meios legais, bem como moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.”

Destacamos os seguintes pontos: “(…) As partes têm o direito de empregar os meios legais, bem como moralmente aceitos para provar a verdade dos fatos (…) e influir eficazmente na convicção do juiz”. (g. n.)

Por sua vez, aqueles que são favoráveis à utilização da psicografia como meio de prova lícita ou moralmente aceita, valem-se de argumento muito mais robusto e factível, quais sejam, a cientificidade e comprovação do fenômeno espírita.

Os juristas que defendem a utilização da psicografia como meio de prova, sustentam que ela, em nada, contraria o dispositivo de regência das fontes de prova, o Código Processual, visto que é moralmente legítima, não é ilícita e pode, eficazmente, influir na convicção do juiz.

A redação trazida pelo Novo Código de Processual Civil acolheu o princípio do livre convencimento do juiz. Ademais, os modernos sistemas probatórios em geral dispõem que outros meios de provas além daqueles tipificados (catalogados) são passíveis de utilização no processo, tendo em vista a necessidade de uma aproximação mais efetiva da verdade material e, por conseguinte, ao justo no caso concreto.

Advém deste entendimento, o conceito de prova atípica (ou inominada), na qual se insere a psicografia, como toda fonte de prova que não está prevista no ordenamento, mas pode ser admitida como meio probante a servir de elemento/motivo para a formação da convicção do juiz.

O mais célebre caso de admissão da psicografia em nossos tribunais ainda é o da 6.ª Vara Criminal de Goiás, que, em 1979, inocentou o réu, amigo íntimo da vítima, da acusação de homicídio, concluindo ter se tratado de mero acidente com arma de fogo, valendo-se, como prova acessória, de mensagem, psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.

A jurista Kátia de Souza Moura, em seu artigo A psicografia como meio de prova [2] ocupou-se do tema:

“Não olvidando o caráter religioso, mas também não desprezando o científico, Hippolyte Léon Denizard Rivail, conhecido como Allan Kardec, estabeleceu o aspecto tríplice da doutrina espírita: ciência, filosofia e religião. Apesar da incredulidade de muitos, pode-se afirmar categoricamente que o espiritismo é uma ciência. Como objeto, tem a existência de vida após a morte e a existência da alma e de sua imortalidade, e disso cuida todo o seu estudo. Grandes nomes, tais como Camille Flammarion (astrônomo francês, importante cientista do final do século dezenove e início do século vinte), Paul Gabier (cientista da área da microbiologia, reconhecido como gênio por Pasteur), Charles Richet (fisiologista renomado internacionalmente, fundador da metapsíquica e descobridor da soroterapia), entre outros, desenvolveram estudos sobre o assunto. Citem-se, ainda, os trabalhos, de valor inestimável, de William Crookes a esse respeito”. [3]

Como se afere, os fenômenos espíritas, a cada dia, adquirem contornos mais amplos e se incorpora, ainda que indiretamente, às discussões e debates científicos no terreno da ciência do direito, sobretudo em nosso país e vários magistrados têm admitido a psicografia como meio de prova.

A mesma autora reporta à recente caso de admissão da psicografia em nossos tribunais:

“Casos de utilização de mensagens psicografadas já bateram às portas dos Tribunais, porém, sem a análise jurídica técnica, devidamente fundamentada, para fazer valer o emprego mais concreto desse meio de prova. Recentemente, no Rio Grande do Sul, a 1.ª Vara do Júri da cidade de Viamão, região metropolitana de Porto Alegre, absolveu, por cinco votos contra dois, a ré acusada de prática de crime. O Jornal Correio da Bahia, na matéria ‘Carta Psicografada ajuda a absolver acusada de crime’, publicada na coluna Brasil, em 31 de maio de 2006, noticiou que o advogado de defesa da ré utilizou-se, dentre outros meios e argumentos, de uma carta supostamente ditada pelo morto em um centro espírita da capital. Embora tenha ocorrido absolvição da acusada, nota-se que a utilização de material psicografado foi empregado como método psicológico eficiente para impressionar os jurados”. [4]

Outro célebre caso foi o da viúva de Humberto de Campos em face de Francisco Cândido Xavier, cuja peça de defesa está transcrita em A psicografia ante os tribunais, de Miguel Timponi. [5]

Outros casos poderiam ser citados, contudo, não é o nosso objetivo discutir o aspecto legal da psicografia como meio de prova hábil e legítimo, mas apenas e tão somente, destacar a penetração do tema em nosso ordenamento jurídico.

Mas, voltemos às objeções daqueles que são contrários à utilização da psicografia como meio de prova. Dissemos, acima, que a possibilidade de fraude, o Estado laico, a extinção da pessoa natural com a morte e a violação de garantias constitucionais (ampla defesa e contraditório) são os principais argumentos nesse sentido.

Primeiro, sobre a possibilidade fraude, lembraremos que mesmo as chamadas provas lícitas são suscetíveis de fraude, o que enfraquece tal posicionamento.

Segundo, quanto ao fato de ser o Estado brasileiro laico e que por essa razão não pode referir-se normativamente à validade ou não de material psicografado como meio de prova, ou seja, que não se pode aceitar como meio de prova o fruto de determinada doutrina religiosa, em detrimento de toda uma diversidade de concepções religiosas ou não, diremos, contrapondo-nos, que o fenômeno de psicografia é real ele não integra nenhuma doutrina religiosa. Psicografar, por si só, não faz parte de culto religioso, muito embora segmentos religiosos supostamente afirmem que alguns de seus membros psicografem. A psicografia, se realmente trouxer notas verificáveis, sugerindo alguma forma de obtenção de informação por via anômala, é mais que um mero movimento cultural, do que um dogma ou uma crença, e merece, na realidade, tratamento científico para se perquirir a origem da mensagem, se de um morto, de outros vivos ou do próprio psíquico.

O terceiro argumento que objetamos é o de que a existência da pessoa natural extingue-se com a morte, objeção fundamentada no Art. 6.º do Código Civil. A morte é causa extintiva da personalidade humana, quando o sujeito não pode ser mais titular de direitos e obrigações. Mesmo que a vida continue além da morte corporal, para o direito, essa existência não seria reconhecida, portanto, existe morte jurídica, embora de fato possa haver sobrevivência. Em todo caso, mesmo que não seja permitido o reconhecimento judicial de permanência da personalidade após a morte física, isso não exclui o conteúdo do documento que por ventura traga informações cuja obtenção não seja explicável por meios normais. A norma legal em comento não tem repercussão em aspecto processual penal e eventual aceitação de prova obtida por psicografia não interfere na transmissão de direitos e obrigações relativos ao de cujus. Por último, repete-se o argumento de que existem interpretações não espiritualistas para o fenômeno e que o escopo da discussão deve ser referente ao meio anormal de obtenção de uma evidência física, notadamente, em crimes transeuntes, que deixam vestígios.

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E, por último à objeção de que a psicografia, se empregada como meio de prova, feriria os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório; que o direito à prova encontra limites tanto nas exigências das normas legais e principalmente nas garantias constitucionais; que no Estado Democrático de Direito, os fins não justificam os meios; que a prova obtida por meio ilícito é espécie de prova vedada, assim como a ilegítima, que fere aspectos processuais. Nesse sentido, já se alegou que a psicografia violaria as garantias constitucionais do contraditório, diretamente, e da ampla defesa, reflexamente. Contrapondo-nos a essas teses, diremos que às partes são garantidas, tanto as informações de todos os atos que lhes sejam articulados no processo, como a presença de meios que possibilitem condições concretas para poderem atuar na instrução processual em simetria de paridade de acordo com suas respectivas posições, autor ou réu. Entendemos que não há por que se cogitar de quebra de paridade por uma evidência descoberta através de informação obtida por psicografia tendo em vista haver possibilidade de refutação, em sede judicial, da própria prova material encontrada, sem violação de nenhum dos pressupostos principiológicos.

Diremos mais.

Ainda que esparsos, temos alguns casos, além dos julgados que citamos, em que a norma positiva se curva à realidade do mundo espiritual.

É assim que a Constituição do Estado de Pernambuco, promulgada em 5 de outubro de 1989, dispõe, em seu Art. 174, que: “O Estado e os Municípios, diretamente ou através de auxílio de entidades privadas de caráter assistencial, regularmente constituídas, em funcionamento e sem fins lucrativos, prestarão assistência ao superdotado, ao paranormal, o que inclui sensibilidades que extrapolam os sentidos orgânicos”. (g. n.)

O debate apenas se inicia e, felizmente, os argumentos levantados pelos que admitem a psicografia como meio de prova em nosso ordenamento jurídico são robustos e consubstanciados por amplo substrato doutrinário-jurisprudencial.

É a Doutrina Espírita, mais uma vez e efusivamente, emprestando ao Direito, elementos que corroboram com o fundamento e com a busca da verdadeira e efetiva justiça.

Referências:

[1] PL 1705/2007. Ementa: Altera o caput do Art. 232 do Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal. Apresentação: 07/08/2007. Explicação da Ementa: Desconsidera como documento o texto resultante de psicografia – documento psicografado, no âmbito do processo penal. Última Ação Legislativa: 31/01/2011. Arquivado nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Publicação no DCD do dia 01/02/2011 – Suplemento ao nº 14.

[2] MOURA, Kátia de Souza. A Psicografia Como Meio de Prova. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/8941/a-psicografia-como-meio-de-prova/2.

[3] Idem, Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] É um livro considerado como parte da história do espiritismo no Brasil. Nele o eminente jurista Miguel Timponi relata todo o processo de que foi defensor (da FEB e de Chico Xavier) perante os tribunais, na rumorosa questão movida pela viúva e herdeiros de Humberto de Campos. A decisão final da justiça deu ganho de causa aos réus (FEB e Chico Xavier), tornando-se o processo um documento de alto valor para o Movimento Espírita, estabelecendo que, para fins legais, os direitos autorais não podem ser atribuídos a um Espírito desencarnado e sim ao psicógrafo.

Sobre o autor
José Márcio de Almeida

Advogado. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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