A TV e o futebol nos tribunais

24/07/2020 às 13:04
Leia nesta página:

MP 984/2020 é inconstitucional e afronta o ato jurídico perfeito, afetando contratos sob a Lei Pelé. TV Globo buscará impedir transmissões.

1. O FATO

Segundo o Estadão, em sua edição de 23 de julho do corrente ano, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) divulgou a tabela detalhada das 10 primeiras rodadas do Campeonato Brasileiro. A competição terá início no dia 8 de agosto, um sábado, e os efeitos da Medida Provisória 984/2020 ficaram evidentes. Assim, mais um imbróglio está estabelecido – depois dos problemas na final do Campeonato Carioca, agora é a vez do torneio nacional.

Junto com a divulgação das dez primeiras rodadas, a CBF detalhou quais emissoras de TV transmitirão as partidas em canais abertos, fechados e payper-view. Já na primeira rodada tem a transmissão do duelo entre Palmeiras e Vasco pelo canal TNT, em TV fechada. Este jogo não teria exibição na televisão fechada, pois o clube paulista assinou contrato com a Turner, enquanto o carioca está vinculado à Globo. Mas a publicação da MP 984/2020 pelo presidente Jair Bolsonaro, em junho, mudou regras sobre direitos.

Nas dez primeiras rodadas, 13 jogos que não poderiam ter transmissão na televisão fechada, agora poderão por causa da MP 984. A TV Globo, por intermédio de uma nota, informou que vai tentar impedir as transmissões com a ajuda de medidas legais cabíveis.

Sem dúvida, está por vir uma verdadeiro pandemônio que deverá levar a ações perante o Poder Judiciário, objetivando a solução dessa contenda.


2. O NÃO CUMPRIMENTO DE NORMA FLAGRANTEMENTE INCONSTITUCIONAL

Aplicar a lei inconstitucional é negar aplicação à Constituição. Em sendo assim até mesmo o particular pode recusar cumprimento à lei que considere inconstitucional, sujeitando-se a defender sua convicção caso venha a ser demandado.

Deve-se entender, não será demais acentuá-lo, que inconstitucionalidade que de chofre, por mera tomada de contato com problema se imponha ao espírito do intérprete: o vício não raro se evidencia graças a um trabalho sutil de exegese, pois não há como confundir “vontade evidente” com “vontade intuitiva”. O essencial é que do cotejo dos textos normativos resulte, claramente delineado, o conflito entre a norma legal ordinária e o superior mandamento constitucional que deve prevalecer”.

Assim o próprio particular pode recusar cumprimento a uma determinação legal eivada de inconstitucionalidade.

Assim é o caso da Medida Provisória 984/2020.

O presidente da República Jair Bolsonaro assinou no dia 18 de junho do corrente ano a Medida Provisória 984/2020 que, dentre outros pontos, altera a forma de negociação dos clubes com as emissoras de TV sobre os direitos de transmissão das partidas.

A MP não tem validade sobre os contratos já em vigência, ou seja, campeonatos estaduais e nacionais não deverão sofrer mudanças em relação aos direitos de transmissão até que o atual contrato se encerre - a maioria deles vai até 2024.

Pela MP referenciada diz que a partir de agora, os clubes mandantes terão o direito de transmissão da partida. Antes, seguindo a Lei Pelé, uma emissora de TV só poderia passar um jogo caso tivesse acordo com as duas equipes.

Para um jogo ser transmitido, não é mais preciso que haja concordância contratual dos dois clubes envolvidos, como determinava a Lei Pelé.

Se não houver mandante terá de haver acordo entre os dois clubes.

O direito de imagem de um clube é do mandante do jogo.

A MP referenciada suspende os efeitos da Lei Pelé quanto a matéria que trata.


3. A AFRONTA AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO

No caso a MP 984/2020 atinge em cheio os contratos formulados sob a órbita da Lei Pelé e tem efeito retroativo.

Afronta, pois, direitos adquiridos e atos jurídicos perfeitos efetuados na vigência da Lei Pelé.

Independentemente da discussão sobre se a MP referenciada possui os necessários pressupostos de urgência e relevância, o que entendo questionáveis, passo a discussão sobre a evidente afronta ao ato jurídico perfeito atingido.

Passo a questão da afronta ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido.

O ato jurídico perfeito ao lado do direito adquirido visa à forma do ato e não à sua substância.

O ato jurídico perfeito é o ato regular, quanto à forma, suscetível de gerar, substancialmente, direito adquirido.

Destaco a opinião de Serpa Lopes (Comentário Teórico-Prático da Lei de Introdução ao Código Civil, volume I, 1943, pág. 127 e seguintes) para quem “afigura-se redundante a inclusão destacada da execução do ato jurídico perfeito, porque a expressão – situação jurídica definitivamente constituída – implica, logicamente, a compreensibilidade da execução do ato jurídico”.

Determina a Lei de Introdução às Normas Jurídicas:

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela Lei nº 3.238, de 1957)

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957).

O ministro Carlos Maximiliano explanou sua doutrina sobre o tema no célebre Direito Intertemporal ou Teoria da Retroatividade das Leis, 2ª edição, 1955, pág. 24 e seguintes).

Sua explanação partiu das lições de Savigny, ao distinguir a aquisição e a existência dos direitos. Explicou que aquisição de direito é o vínculo que une um direito a um indivíduo, ou a transformação de uma instituição de direito (abstrata) em uma relação de direito (pessoal). Observou que a existência dos direitos não se confunde com a aquisição; esta abrange o direito no sentido subjetivo; aquela, no objetivo; uma versa a respeito do elemento permanente e imutável das relações de direito; a outra, sobre o elemento móvel.

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Segundo Savigny, se a irretroatividade é a regra no que tange à aquisição do direito, tal princípio não tem aplicação quanto às regras que têm por objeto a existência dos direitos. Como tais considera-se as leis relativas ao contraste entre a existência ou a não-existência de uma instituição de direito (por exemplo, a lei que aboliu a servidão à gleba). Daí os princípios: as leis novas pertencentes a esta segunda classe têm efeito retroativo; as leis novas pertencentes a esta classe não devem manter os direitos adquiridos.

Savigny pretendeu dar aos conflitos de leis no tempo solução análoga à dos conflitos de leis no espaço, partindo, na observação de Pacchioni (Delle Leggi in Generale, pág. 251 e seguintes), do princípio segundo o qual, como não se deve admitir que o juiz deva sempre e em qualquer aso aplicar o seu próprio direito (lex fori – princípio da territorialidade), assim também não se pode admitir que ele deve, em qualquer caso, aplicar a lei mais recente às relações nascidas sob o império da lei mais antiga) princípio da irretroatividade ou do respeito aos chamados direitos adquiridos).

Ninguém pode negar, como disse Savigny, que nesse princípio se encontra verdade importantíssima; entretanto, não se pode seguir a doutrina dominante no considerar a irretroatividade (o chamado respeito aos direitos adquiridos) como um princípio único e absoluto, salvo admitindo-se que tal princípio tolera exceções necessárias para evitar algumas consequências absolutamente iníquas e inaceitáveis.

Segundo Savigny, na exposição de Pacchionni (obra citadas), deve-se afastar a ideia de que a irretroatividade das leis ou – o que para ele era idêntico – o respeito aos direitos adquiridos seja um princípio ou uma regra absoluta. Antes o problema da retroatividade da lei consiste apenas em determinar quais sejam verdadeiramente as leis que retroagem e quais sejam as leis que não retroagem.

Para Savigny (Traité de droit romain, Paris, tomo VIII, 1851, pág. 363 e seguintes), leis relativas à aquisição e à perda dos direitos eram consideradas as regras concernentes ao vinculo que liga um direito a um indivíduo, ou a transformação de uma instituição de direito abstrata em uma relação de direito concreto.

Por sua vez, as leis relativas à existência, ou modo de existência dos direitos eram definidas por Savigny como aquelas leis que têm por objeto o reconhecimento de uma instituição em geral ou seu reconhecimento sob tal ou tal forma.

Assim relativas à existência, inexistência, ao modo de existência dos direitos eram definidas por Savigny como aquelas leis, que têm por objeto o reconhecimento de uma instituição em geral, ou seu reconhecimento sob tal ou tal forma, antes que se coloque a questão de sua aplicação a determinado indivíduo, isto é, antes da criação de uma relação jurídica concreta.

Para Savigny, repita-se, as leis do primeiro grupo, isto é, as relativas a aquisição e a perda de direitos e à perda dos direitos, não poderiam ser retroativas. As leis do segundo grupo, isto é, as relativas à existência, ou inexistência, ou ao modo de existência dos direitos, teriam efeito retroativo, de acordo com a doutrina de Savigny. Para tais leis, asseverava ele, a regra da não-retroatividade, ou da manutenção dos direitos adquiridos, não tem sentido.

Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, 1971, volume V, pág. 51), na mesma linha de Reynaldo Porchat (Da retroatividade das leis civis, 1909, pág. 59 e seguintes), assim disse:

¨Partiu ele da afirmação da equivalência das duas fórmulas, a que corresponde ao critério objetivo (as leis novas não têm efeito retroativo) e a que corresponde ao critério subjetivo (as leis novas não devem atingir os direitos adquiridos) e assentar que somente a certas categorias de regras – as relativas a aquisição de direitos, à vida deles, escapam à duas expressões da mesma norma de direito intertemporal. E.g, a lei que decide se a tradição é necessária para a transferência da propriedade, ou se o não é, pertence àquela espécie; bem assim, a que exige às doações entre vivos certas formalidades, ou que as dispensa. De ordinário, na regra de aquisição está implícita a de perda. A não retroatividade é de mister em tais casos, quer as consequências sejam anteriores, quer posteriores ao novo estatuto”.

Exemplo: os interesses produzidos antes ou depois da derrogação da lei, se concernentes a contrato regido pela lei derrogada. Ao direito adquirido exige ele a correspondência com uma relação jurídica concreta.

Na hipótese, há regras de aquisição de direitos, dispostos na Lei Pelé, que não podem ser objeto de nova regra de direito, vindos pela Medida Provisória nª 984/2020. Esta não retroage com relação aos contratos que foram elaborados segundo a chamada Lei Pelé, cujos efeitos não ficariam suspensos por ela. Em sede de controle difuso esta matéria em foco deve ser objeto da devida indagação ao Poder Judiciário.

Sendo assim a referenciada MP não tem incidência sobre os contratos em vigência.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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