Não há dúvidas que os crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares, ainda que em serviço, são de competência do Tribunal do Júri, juízo colegiado da justiça comum.
Ocorre que, com o alargamento do conceito de crime militar por extensão, encampado pela lei nº 13.491/2017, há vozes que defendem que até mesmo delitos contra a vida, praticados por militar Estadual em serviço, ostentam natureza de crime militar.
Com a devida vênia, mas tal interpretação não deve prosperar, seja a argumentação tendente à transferência de competência para Justiça Militar, seja os seus reflexos no âmbito da investigação criminal presidida ou levada a cabo por autoridade civil.
O artigo 125, § 4º, da Constituição da República, estabelece que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
Já de início, da leitura do final dessa norma constitucional, torna-se claro que resta apenas ao Tribunal Militar as atribuições administrativas quanto à perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação dos praças, em nítida revelação do seu poder disciplinar, assim como qualquer mudança no desenho constituição de competências deveria advir através da força de uma emenda a constituição.
As alterações trazidas pela lei 13.491/2017, não têm forças e nem é meio hábil a subtrair a competência para o processamento e julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares em detrimento de civis, competência esta atribuída pela Constituição Federal, a justiça comum.
Ademais, é cediço que a própria Constituição de República, estabelece competir ao Júri julgar os crimes dolosos contra a vida (Art. 5º, XXXVIII, “d”); logo, se não há competência da Justiça Militar, defendemos, por simetria, não haver atribuição investigava castrense, conclusão lógica simétrica que deriva do desenho constitucional entre binômio competência e atribuição inerente ao exercício da função de Polícia Judiciária.
Inclusive, nesse sentido já se manifestou o PGR na ADI 5804 RJ, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o qual discute algumas alterações introduzidas pela lei 13.491/17, nos seguintes termos:
(...) Crimes de competência da Justiça comum tem o inquérito policial – não militar – como instrumento investigatório.
Negada a natureza militar da infração e, consequentemente, afastada a competência da jurisdição castrense, incumbe à autoridade policial civil a instauração e a condução da investigação respectiva. Há repartição constitucional de competências que bem delimita as funções e atribuições de cada um dos órgãos integrantes do sistema judiciário brasileiro, havendo estrita correlação entre os órgãos julgador e apuratório de crimes. Causas que estejam sujeitas à competência da justiça comum, como aquelas alcançadas pelo preceito impugnado (Júri), tem o trabalho apuratório respectivo atribuído, no âmbito estadual, à autoridade policial civil, e, no âmbito federal, à polícia federal. (...)
(...) Não há espaço no texto constitucional para interpretação que permita a instauração e a tramitação de inquérito policial investigatório de crime comum (não-militar) no âmbito da Justiça Militar. (...)https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=315138716&ext=.pdf
Contrariando o entendimento do PGR e de boa parte dos grupos de controle externo da atividade policial do M.P; mesmo cientes do óbice constitucional, algumas corporações passaram a adotar o argumento de que, muito embora o delito em testilha seja de competência do Tribunal do Júri, no que se refere a investigação criminal, não haveria impedimento da mesma ser encampado pela Polícia Judiciária Militar, passando com isso a adotar um entendimento temário de não colaborar ou submeter a apuração dos casos às instâncias civis de investigação; há relatos de que corporações tem se recusado à apresentação de policiais para serem ouvidos perante a Delegacia de Polícia, bem como à apresentação de armamentos relacionados aos fatos em apuração, o que pode gerar enormes prejuízos a busca da verdade juridicamente alcançável.
Além do que já foi exposto, tal entendimento não é passível de acolhimento, conforme os argumentos abaixo.
O próprio Código Penal Militar – CPM, em seu artigo 9°, § 1º, em sintonia com o texto constitucional, estabelece em síntese que os crimes praticados por militares Estaduais, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri, aliás, qualquer outra disposição seria inconstitucional.
Ainda que o parágrafo 2º do mesmo artigo 9º traga algumas exceções, elas tratam apenas dos militares das Forças Armadas, o que não é objeto do nosso breve texto.
Ora, se a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares é da justiça comum e não da militar, conclui-se que a atribuição para investigar tais crimes é da Polícia Judiciária Civil/Comum e não da Militar/especial.
Essa conclusão também decorre por força simétrica (Competência/Atribuição) do próprio conceito de Inquérito Policial Militar - IPM, trazido pelo Código de Processo Penal Militar – CPPM, senão veja:
Art. 9º O inquérito policial militar é a apuração sumária de fato, que, nos têrmos legais, configure crime militar, e de sua autoria. Tem o caráter de instrução provisória, cuja finalidade precípua é a de ministrar elementos necessários à propositura da ação penal.
Dessa forma, se o fato é alheio à justiça militar, deve o presidente do IPM se abster de imiscuir-se em atribuições que não são sua, aliás, não cabe no bojo do IPM investigar crimes comuns/não militares, nos termos do que diz o próprio supracitado artigo 9º do CPPM.
O IPM deve ser instaurado para apurar crime militar, esse é o seu objeto por expressa e literal disposição legal, não havendo margens de dúvidas quanto a isso.
Os crimes dolosos contra a vida, praticados por militares do Estado tem natureza de crime comum e não militar; portanto, a instauração de IPM nesse caso está eivada de ilegalidade.
E não somente isso, ao tomar conhecimento de delito que não seja de sua atribuição, deve o responsável por presidir o IPM, encaminhar imediatamente os autos à autoridade policial competente, ou seja, o delegado de polícia. Nesse sentido dispõe o artigo 10°, § 3º, do CPPM:
“Se a infração penal não fôr, evidentemente, de natureza militar, comunicará o fato à autoridade policial competente, a quem fará apresentar o infrator. Em se tratando de civil, menor de dezoito anos, a apresentação será feita ao Juiz de Menores.”
Somos cientes que os fatos estão sob acalorado debate doutrinário e jurídico, todavia a apreensão de objetos e demais elementos de informações, bem como a realização de atos de natureza investigativa por quem não tenha atribuição legal, poderá dar ensejo aos delitos de usurpação de função pública e fraude processual, ainda que cometidos na forma de dolo eventual, sem prejuízo de responsabilização civil e administrativa do seu autor.
No que se refere a atribuição investigativa há recomendação do Ministério Público do Estado de São Paulo no sentido de que as atribuições para conduzir as investigações, nos casos decorrentes de morte por intervenção policial, é exclusiva da Polícia Civil de São Paulo, sendo crime comum que será apreciado por um Promotor de Justiça oficiante no tribunal do Júri (http:// www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Noticias_CAO_Criminal/RECOMENDA %C3%87%C3%83O-PM-crime%20doloso%20contra%20a%20vida-vers%C3%A3o%20final.pdf)
Além de inconstitucional e ilegal, atribuir a apuração de delitos dolosos contra vida cometidos contra civil e sua investigação ao rito castrense, contraria o controle de convencionalidade, tendo que em vista que a tendência da Corte Interamericana de Direitos Humanos é restringir o âmbito da Justiça Castrense em casos que envolvam civis; nesse sentido estão as decisões da Corte Interamerica de Direitos Humanos: Caso Durand e Ugarte vs Perú. Sentença de 16 de agosto de 2000, parágrafo 117. 6 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Cruz Sánchez e Outros vs. Perú. Sentença de 17 de abril de 2015, parágrafo 397. 7 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Nadege Dorzema vs. República Dominicana. Sentença de 24 de agosto de 2012, parágrafo 181.
Pelo exposto se mostra inconstitucional, ilegal e ‘‘inconvencional’’, a instauração de um Inquérito Policial Militar e sua investigação, para apurar crimes comuns, em especial delitos de competência do Tribunal do Júri cometidos contra civis.