Investigação de crimes dolosos contra a vida praticado por militar Estadual

27/07/2020 às 21:02

Resumo:


  • Crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares são de competência do Tribunal do Júri, da justiça comum.

  • Apesar do alargamento do conceito de crime militar por extensão, crimes contra a vida praticados por militares estaduais em serviço não devem ser considerados crimes militares.

  • A instauração de Inquérito Policial Militar para investigar crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares contra civis é inconstitucional e ilegal, devendo ser conduzida pela Polícia Judiciária Civil/Comum.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O texto tem por escopo mostrar que a atribuição para investigar crimes dolosos contra a vida praticado por militar Estadual é da Polícia Judiciária Civil.

       

        

      Não há dúvidas que os crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares, ainda que em serviço, são de competência do Tribunal do Júri, juízo colegiado da justiça comum.

   Ocorre que, com o alargamento do conceito de crime militar por extensão, encampado pela lei nº 13.491/2017, há vozes que defendem que até mesmo delitos contra a vida, praticados por militar Estadual em serviço, ostentam natureza de crime militar.

   Com a devida vênia, mas tal interpretação não deve prosperar, seja a argumentação tendente à transferência de competência para Justiça Militar, seja os seus reflexos no âmbito da investigação criminal presidida ou levada a cabo por autoridade civil.  

    O artigo 125, § 4º, da Constituição da República, estabelece que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

    Já de início, da leitura do final dessa norma constitucional, torna-se claro que resta apenas ao Tribunal Militar as atribuições administrativas quanto à perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação dos praças, em nítida revelação do seu poder disciplinar,  assim como qualquer mudança no desenho constituição de competências deveria advir através da força de uma emenda a constituição.

    As alterações trazidas pela lei 13.491/2017, não têm forças e nem é meio hábil a subtrair a competência para o processamento e julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares em detrimento de civis, competência esta atribuída pela Constituição Federal, a justiça comum.  

    Ademais, é cediço que a própria Constituição de República, estabelece competir ao Júri julgar os crimes dolosos contra a vida (Art. 5º, XXXVIII, “d”); logo, se não há competência da Justiça Militar, defendemos, por simetria, não haver atribuição investigava castrense, conclusão lógica simétrica que deriva do desenho constitucional entre binômio competência e atribuição inerente ao exercício da função de Polícia Judiciária.

    Inclusive, nesse sentido já se manifestou o PGR na ADI 5804 RJ, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o qual discute algumas alterações introduzidas pela lei 13.491/17,  nos seguintes termos:

(...) Crimes de competência da Justiça comum tem o inquérito policial – não militar – como instrumento investigatório.

Negada a natureza militar da infração e, consequentemente, afastada a competência da jurisdição castrense, incumbe à autoridade policial civil a instauração e a condução da investigação respectiva. Há repartição constitucional de competências que bem delimita as funções e atribuições de cada um dos órgãos integrantes do sistema judiciário brasileiro, havendo estrita correlação entre os órgãos julgador e apuratório de crimes. Causas que estejam sujeitas à competência da justiça comum, como aquelas alcançadas pelo preceito impugnado (Júri), tem o trabalho apuratório respectivo atribuído, no âmbito estadual, à autoridade policial civil, e, no âmbito federal, à polícia federal. (...)

(...) Não há espaço no texto constitucional para interpretação que permita a instauração e a tramitação de inquérito policial investigatório de crime comum (não-militar) no âmbito da Justiça Militar. (...)https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=315138716&ext=.pdf

    Contrariando o entendimento do PGR e de boa parte dos grupos de controle externo da atividade policial do M.P; mesmo cientes do óbice constitucional, algumas corporações passaram a adotar o argumento de que, muito embora o delito em testilha seja de competência do Tribunal do Júri, no que se refere a investigação criminal, não haveria impedimento da mesma ser encampado pela Polícia Judiciária Militar, passando com isso a adotar um entendimento temário de não colaborar ou submeter a apuração dos casos às instâncias civis de investigação; há relatos de que corporações tem se recusado à apresentação de policiais para serem ouvidos perante a Delegacia de Polícia, bem como à apresentação de armamentos relacionados aos fatos em apuração, o que pode gerar enormes prejuízos a busca da verdade juridicamente alcançável.

    Além do que já foi exposto, tal entendimento não é passível de acolhimento, conforme os argumentos abaixo.

    O próprio Código Penal Militar – CPM, em seu artigo 9°, § 1º, em sintonia com o texto constitucional, estabelece em síntese que os crimes praticados por militares Estaduais, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri, aliás, qualquer outra disposição seria inconstitucional.

    Ainda que o parágrafo 2º do mesmo artigo 9º traga algumas exceções, elas tratam apenas dos militares das Forças Armadas, o que não é objeto do nosso breve texto.

    Ora, se a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares é da justiça comum e não da militar, conclui-se que a atribuição para investigar tais crimes é da Polícia Judiciária Civil/Comum e não da Militar/especial.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

    Essa conclusão também decorre por força simétrica (Competência/Atribuição) do próprio conceito de Inquérito Policial Militar - IPM, trazido pelo Código de Processo Penal Militar – CPPM, senão veja:

Art. 9º O inquérito policial militar é a apuração sumária de fato, que, nos têrmos legais, configure crime militar, e de sua autoria. Tem o caráter de instrução provisória, cuja finalidade precípua é a de ministrar elementos necessários à propositura da ação penal.

    Dessa forma, se o fato é alheio à justiça militar, deve o presidente do IPM se abster de imiscuir-se em atribuições que não são sua, aliás, não cabe no bojo do IPM investigar crimes comuns/não militares, nos termos do que diz o próprio supracitado artigo 9º do CPPM.

    O IPM deve ser instaurado para apurar crime militar, esse é o seu objeto por expressa e literal disposição legal, não havendo margens de dúvidas quanto a isso.

    Os crimes dolosos contra a vida, praticados por militares do Estado tem natureza de crime comum e não militar; portanto, a instauração de IPM nesse caso está eivada de ilegalidade.

    E não somente isso, ao tomar conhecimento de delito que não seja de sua atribuição, deve o responsável por presidir o IPM, encaminhar imediatamente os autos à autoridade policial competente, ou seja, o delegado de polícia. Nesse sentido dispõe o artigo 10°, § 3º, do CPPM:

“Se a infração penal não fôr, evidentemente, de natureza militar, comunicará o fato à autoridade policial competente, a quem fará apresentar o infrator. Em se tratando de civil, menor de dezoito anos, a apresentação será feita ao Juiz de Menores.”

       Somos cientes que os fatos estão sob acalorado debate doutrinário e jurídico, todavia a apreensão de objetos e demais elementos de informações, bem como a realização de atos de natureza investigativa por quem não tenha atribuição legal, poderá dar ensejo aos delitos de usurpação de função pública e fraude processual, ainda que cometidos na forma de dolo eventual, sem prejuízo de responsabilização civil e administrativa do seu autor.

    No que se refere a atribuição investigativa há recomendação do Ministério Público do Estado de São Paulo no sentido de que as atribuições para conduzir as investigações, nos casos decorrentes de morte por intervenção policial, é exclusiva da Polícia Civil de São Paulo, sendo crime comum que será apreciado por um Promotor de Justiça oficiante no tribunal do Júri (http:// www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Noticias_CAO_Criminal/RECOMENDA %C3%87%C3%83O-PM-crime%20doloso%20contra%20a%20vida-vers%C3%A3o%20final.pdf)

     Além de inconstitucional e ilegal, atribuir a apuração de delitos dolosos contra vida cometidos contra civil e sua investigação ao rito castrense, contraria o controle de convencionalidade, tendo que em vista que a tendência da Corte Interamericana de Direitos Humanos é restringir o âmbito da Justiça Castrense em casos que envolvam civis; nesse sentido estão as decisões da Corte Interamerica de Direitos Humanos: Caso Durand e Ugarte vs Perú. Sentença de 16 de agosto de 2000, parágrafo 117. 6 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Cruz Sánchez e Outros vs. Perú. Sentença de 17 de abril de 2015, parágrafo 397. 7 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Nadege Dorzema vs. República Dominicana. Sentença de 24 de agosto de 2012, parágrafo 181.

       Pelo exposto se mostra inconstitucional, ilegal e ‘‘inconvencional’’, a instauração de um Inquérito Policial Militar e sua investigação,  para apurar crimes comuns, em especial delitos de competência do Tribunal do Júri cometidos contra civis. 

Sobre o autor
Arilson Veras Brandão

Delegado de Polícia do Estado de São Paulo

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos