Pelo Direito de Errar em Primeiro Lugar

30/07/2020 às 17:30
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Sancionada pelo Presidente JAIR BOLSONARO no dia 24 de dezembro de 2019 e publicada na mesma data, a Lei nº 13.964, conhecida como “Pacote Anticrime”, veio operar uma autêntica reforma na legislação penal e processual penal. E já não era sem tempo.

Nas últimas décadas, a criminalidade evoluiu para formas cada mais violentas, insidiosas e socialmente danosas, instilando medo e desesperança na população. A legislação penal e processual penal estabelecida para enfrentá-la, contudo, permaneceu virtualmente estanque, com exceção de eventuais e pontuais modificações empreendidas nos Códigos de 1940 e 1941, respectivamente.

A criminalidade agravou-se, ultrapassando o limite do suportável, tanto quando se fala daquela que assoma nas ruas quanto da que se infiltra nas instituições estatais, minando recursos dos brasileiros por meio de fraudes e corrupção.

Necessitava-se, portanto, inexorável e urgentemente, da reforma substancial nos modelos e conceitos da persecução penal que hoje se vê concretizada nos avanços da Lei nº 13.964, de 2019, a qual traz nova orientação jurídica em temas centrais como organizações criminosas, crimes hediondos, lavagem de dinheiro, legítima defesa, livramento condicional, cumprimento da pena e prescrição, dentre outros.

Feitas essas ponderações, cabe, entretanto, apontar uma inovação da novíssima lei que, se mantida, benefício algum trará para o povo. Pelo contrário, porá em risco fatal o processo penal que, paradoxalmente, deseja aperfeiçoar.

Trata-se do instituto do juiz das garantias, que será responsável, nos termos do novo comando legal, por presidir todas as fases do inquérito criminal, até o recebimento da denúncia, momento em que o processo passará à relatoria do juiz que então realizará a instrução e o julgamento de mérito.

O juiz das garantias, assim, terá a atribuição de autorizar ou não atos das autoridades de investigação, tais como interceptações telefônicas e quebras de sigilos bancário e fiscal, e, ainda, de decidir acerca de prisões provisórias e medidas alternativas à restrição da liberdade, podendo também determinar o arquivamento do inquérito, se entender pela insuficiência de motivos para o seu prosseguimento.

É preciso esclarecer que figuras análogas ao juiz das garantias brasileiro existem em países como a França – onde é sugestivamente chamado de juge des libertés et de la détention (juiz das liberdades e da detenção) –, Alemanha, Chile, Espanha, Itália, México, Panamá, Portugal e Uruguai.

Não é este instituto, portanto, uma “jabuticaba brasileira”. Mas ele certamente é fruto de uma desconfiança descabida sobre a higidez do inquérito policial e do processo penal, e de uma sanha garantista que será de difícil, senão impossível, digestão.

Em tese, esta novidade jurídica propõe um deslocamento do procedimento penal de um paradigma inquisitório para um viés acusatório, assegurando um supostamente benéfico distanciamento do juiz responsável pelo julgamento de mérito, em relação à produção dos elementos de convicção pelos órgãos de apuração e acusação.

Entretanto, tal proposição é equivocada em essência. A começar porque, privilegiando os direitos e interesses do réu em detrimento daqueles da sociedade, da vítima e de sua família, subverte a própria concepção da finalidade da Justiça Criminal, que é a de restabelecer a paz e a ordem jurídica e social e reparar danos.

Assim é que a instituição do juiz das garantias desprestigia o princípio mais fundamental da imparcialidade no processo, o do juiz natural, e põe sob suspeita a lisura ou, ao menos, a eficácia de todo o sistema judicial, desde a primeira instância até os tribunais superiores.

Isso porque as garantias que se alega proteger com o novo instituto são as mesmas que defesa e acusação obtêm em recursos interlocutórios – pedidos de habeas corpus, principalmente – desde o primeiro até o último ato processual, junto às segundas instâncias e às Cortes superiores. Em outras palavras, o juiz das garantias pretende garantir o que garantido sempre foi.

Mas, além de sua patente inutilidade e de prejudicar a confiança da sociedade na instituição jurisdicional, há duas outras questões cuja compreensão torna inderrogável a inviabilidade do juiz das garantias.

A primeira delas envolve o fato de que a sua existência tornará o processo ainda mais moroso e as decisões ainda mais imprevisíveis do que são, visto que, na prática, cria-se uma nova instância, com a possibilidade de uma pletora de novos recursos, a repetir argumentos e a rediscutir matérias de fato e de direito. Isso sem mencionar as potenciais nulidades processuais, que ocorrerão cada vez que, por exemplo, o juiz das garantias proferir decisão que se entenda invadir o mérito da causa.

A segunda questão imbrica no já elevadíssimo custo da máquina judicial brasileira. O Brasil gasta anualmente com ela cerca de 1,4 por cento do produto interno bruto (PIB), ou cerca de R$ 90 bilhões. Difícil é imaginar como, em tal cenário e com as crescentes contingências orçamentárias dos tribunais, dar-se-á o milagre que lhes possibilitará elevar os gastos com folha de pagamento para incorporar os novos cargos de juiz das garantias e, forçosamente, de servidores para auxiliá-los.

Em suma, tem-se aqui mais um exemplo histórico de falta de pragmatismo que gera soluções utópicas para problemas em que a urgência da realidade, contudo, exige respostas factíveis.

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Na sessão do Senado de 29 de dezembro de 1914, o então congressista Rui Barbosa, em discurso sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal, lembrou que “em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar”.

O juiz penal erra e errará tanto quanto for fragilizado por sua humanidade. Os desembargadores e ministros, que julgam os recursos criminais, erram e errarão pela mesma razão. O juiz das garantias, porém, retirando do juiz natural o direito de errar em primeiro lugar, não será, em absoluto, a resposta para o processo penal célere, seguro, justo e transparente de que o Brasil precisa.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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