A inconstitucionalidade da eficácia vinculante atribuída ao julgamento do IRDR

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01/08/2020 às 09:54
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O presente artigo apresenta análise crítica da eficácia vinculante atribuída pelo CPC 2015 ao julgamento do IRDR, demonstrando, à luz da jurisprudência do STF, a inconstitucionalidade de lei ordinária que atribui tal eficácia a julgamentos de tribunais de

 

A INCONSTITUCIONALIDADE DA EFICÁCIA VINCULANTE ATRIBUÍDA AO JULGAMENTO DO IRDR

 

Daniel Carneiro Machado

 

[1]

 

 

Resumo: O presente artigo apresenta análise crítica da eficácia vinculante atribuída pelo CPC 2015 ao julgamento do IRDR, demonstrando, à luz da jurisprudência do STF, a inconstitucionalidade de lei ordinária que atribui tal eficácia a julgamentos de tribunais de instâncias ordinárias e em questões que fogem à jurisdição constitucional.

 

Palavras-chave: IRDR – precedente – eficácia vinculante – lei ordinária – inconstitucionalidade

 

Sumário: 1. Introdução; 2. O  IRDR no sistema de precedentes e sua eficácia vinculante; 3. A (in)constitucionalidade do efeito vinculante do IRDR: uma interpretação construída à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; 3.1 A inconstitucionalidade dos prejulgados vinculantes da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral; 3.2 A constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/93 que instituiu a ação declaratória de constitucionalidade e sua eficácia vinculante; 3.3 A constitucionalidade da Lei Ordinária n. 9.868/99 que atribuiu eficácia vinculante aos julgamentos de mérito da ADI: legitimidade da eficácia vinculante prevista para a jurisdição constitucional; 3.4 A polêmica sobre a ampliação dos efeitos da decisão proferida pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade: existe vinculação aos demais órgãos do Poder Judiciário?; 4. Conclusão

 

1. Introdução

É notório que o Sistema de Justiça do Brasil atravessa já há alguns anos uma grave crise institucional. A enorme quantidade de processos, o aumento da litigiosidade de massa, a demora e a burocracia processuais, além do alto grau de instabilidade jurídica provocada pelos acontecimentos políticos, sociais e econômicos, colocaram na ordem do dia a temática sobre a criação de técnicas processuais e outras medidas que pudessem assegurar a celeridade da uniformização jurisprudencial e, por conseguinte, uma maior previsibilidade decisória.

A tendência de se criar mecanismos de valorização dos julgamentos dos tribunais começou a se destacar nas reformas legislativas implementadas no direito processual brasileiro desde a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004. [2]

Cita-se, a propósito, a introdução da “súmula vinculante”, que, nas palavras de José Rogério Cruz e Tucci, foi “concebida como mecanismo de aceleração dos julgamentos, em decorrência do óbice a demandas fulcradas em teses jurídicas já pacificadas na jurisprudência dominante”[3].

A referida reforma constitucional introduziu, ainda, a “repercussão geral” como pressuposto de admissibilidade específico (filtro) para o recurso extraordinário, dando caráter mais objetivo e abstrato ao controle difuso de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, possibilitando que os efeitos do julgamento de alguns poucos recursos se irradiassem para outros casos concretos.  

A partir da introdução da repercussão geral, o simples pré-questionamento da questão constitucional não é mais suficiente para o cabimento do recurso extraordinário. O recorrente deverá demonstrar a relevância da matéria sob a ótica econômica, política, social ou jurídica, que transcende o mero interesse subjetivo das partes litigantes. Ao regulamentar o instituto, a Lei 11.418/2006 introduziu o § 5º ao art. 543-A do CPC de 1973, dispondo que, se negada a repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre a mesma matéria, que serão indeferidos liminarmente, ressalvada a hipótese de revisão da tese.

Destaca-se também a criação do regime de julgamento dos recursos especiais repetitivos pela Lei 11.672/2008, aperfeiçoada no CPC/2015, que implementou a técnica processual de “pinçamento” do caso modelo ou causa piloto para a resolução da questão de direito de maneira uniforme para todas as demandas repetitivas. Trata-se de uma técnica pela qual o tribunal de origem seleciona um ou mais recursos representativos da controvérsia e os encaminha ao Superior Tribunal de Justiça, sobrestando os demais recursos sobre a mesma questão jurídica até o pronunciamento da corte superior acerca da definição da tese jurídica.

Seguindo esse mesmo propósito, o legislador do CPC/2015 implementou um sistema próprio de precedentes para o direito processual civil.

A temática é relevante e causa preocupação quando, diante do modelo constitucional de processo, depara-se com o status de precedente vinculante atribuído ao julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR de competência de tribunal local de segunda instância, corte de mera revisão, cujo papel não se confunde com o dos tribunais superiores, os quais possuem a competência constitucional de definição de teses jurídicas e uniformização da interpretação do direito.

Ressalta-se, ademais, o grave risco de engessamento da interpretação do direito em uma sociedade plural em constante modificação e, ainda, de esvaziamento do papel do juiz da primeira instância no debate processual.

Em prol de estatísticas e da celeridade processual, o julgador poderá se tornar um “juiz eletrônico” que apenas reproduz, de maneira quase que automatizada, a tese jurídica (de caráter vinculante) já definida pelo tribunal local. Sob o mito da igualdade, corre-se extremado risco de asseverar as desigualdades considerando a heterogeneidade existente no Brasil, país de dimensão continental, com nuances regionais acentuadas.

Com efeito, o juiz de primeiro grau da jurisdição é, em regra, aquele que realiza o primeiro contato direto com as particularidades do conflito vivenciado pelas partes, participando efetivamente do debate processual. A verticalização e a vinculação pura e simples aos julgamentos dos tribunais, especialmente dos de segundo grau como ocorre no caso do incidente de resolução de demandas repetitivas - IRDR, podem acarretar precipitação, reduzindo o espaço cognitivo do processo, espaço essencial ao debate público dos fundamentos aduzidos pelas partes.

Assim, diante dessa rígida verticalização do Sistema de Justiça e do risco de esvaziamento do papel do juiz de primeiro grau na interpretação jurídica, propõe-se uma análise crítica do efeito vinculante atribuído por mera lei ordinária ao julgamento do IRDR pelos tribunais de segunda instância, demonstrando sua incompatibilidade com a Constituição.

2. O  IRDR no sistema de precedentes e sua eficácia vinculante

Trata-se o IRDR, em essência, de um incidente de coletivização dos denominados litígios de massa, com o propósito de evitar a multiplicação de demandas, resolvendo, em bloco, causas que versam sobre as mesmas questões jurídicas.[4]

A sua instauração se dará a partir de um ou vários casos modelo[5] representativos de uma pluralidade de outras causas idênticas quanto à matéria de direito, ficando o tribunal local habilitado a proferir uma decisão com largo espectro, definindo, com eficácia vinculante, o direito controvertido de tantos quantos se encontrarem na mesma situação jurídica.

Humberto Theodoro Jr.[6] esclarece que o IRDR não reúne ações singulares para julgamento único. O objetivo do incidente é apenas estabelecer a tese de direito a ser aplicada em outros processos, cuja existência não desaparece, visto que apenas se suspendem temporariamente e, após, haverão de ser julgados pelos respectivos juízes. O que aproxima as diferentes ações é apenas a necessidade de aguardar o estabelecimento da tese de direito de aplicação comum e obrigatória a todas elas. O julgamento de cada uma das demandas continuará ocorrendo em sentenças próprias, que poderão, inclusive, ser de sentido diverso em razão do quadro fático distinto. De forma alguma, entretanto, os julgadores das referidas demandas poderão ignorar a tese de direito uniformizada pelo tribunal no incidente coletivo, se o conflito se situar na área de incidência da referida tese.

É por isso que o referido incidente é, sem dúvida alguma, a mais impactante modificação surgida desde o início das discussões da elaboração do CPC/2015, sendo que a sua inclusão no novel sistema de precedentes vinculantes instituído pelo CPC/2015 não pode ficar incólume a uma análise critica da adequação e dos riscos que isso pode acarretar. [7]

De acordo com a novel legislação, a tese jurídica[8] firmada no julgamento do IRDR possui status de precedente, adquirindo, por previsão expressa do art. 927 do CPC/2015, caráter normativo dotado de eficácia prospectiva, como uma verdadeira súmula vinculante, pois deverá ser adotada obrigatoriamente pelos tribunais locais e pelos juízes de primeira instância em relação aos casos em tramitação e também aos futuros.

O juiz de primeira instância deverá observá-la, sob pena de manejo de ação de reclamação ao tribunal local ou regional do qual emanou a tese vinculante, o qual poderá, conhecendo da via impugnativa, cassar o ato decisório e determinar que o julgador profira novo julgamento em consonância com o precedente vinculante formado no incidente coletivo.

Júlio Rossi adverte que, a pretexto de intentar resolver o problema da litigiosidade relevante e de massa (constitucional e infraconstitucional), corre-se o risco de se alcançar uma solução meramente estatística e funcionalmente conveniente, em detrimento de “decisões qualitativamente satisfatórias sob o ponto de vista de uma prestação jurisdicional absolutamente legítima e eficiente” [9].

Isso porque, segundo o referido processualista, a prática dos juízes e tribunais no Brasil carece de uma teorização ou de uma doutrina da utilização dos precedentes, na medida em que reprisam, de forma mecanizada, os julgados do Poder Judiciário em casos semelhantes ou mesmo as meras ementas de acórdãos como se fossem “precedentes”, interpretando-os e aplicando-os sem fazer a análise pormenorizada da causa da qual se originaram a partir dos debates processuais.

Nessa perspectiva, Dierle Nunes defende o delineamento de uma teoria de precedentes para o Brasil, que respeite o “processualismo constitucional democrático”, sem a perniciosa padronização decisória superficial que restringe a análise e a reconstrução interpretativa do direito. [10]

O IRDR tem o principal objetivo de acelerar a resolução das causas repetitivas e o seu julgamento é considerado um precedente em razão de mera ficção legal de que abordará a integralidade dos argumentos objetos da controvérsia jurídica, podendo ser instaurado, de acordo com o CPC/2015, a partir de alguns poucos processos repetitivos, o que potencializa o risco de uma padronização superficial e indesejável da interpretação do direito.

Com efeito, a vinculação ao julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas traz “o risco de que o entendimento jurisprudencial venha a ser fixado de forma prematura, ensejando novos dissensos, num curto lapso temporal, tendo em vista o surgimento de novos argumentos não imaginados ou não trazidos à discussão na época do incidente”[11].

A propósito desse ponto, merece destaque a crítica apresentada por Júlio Rossi:

 

Parece que o Código projetado, ao criar o IRDR, fincou esforços para re­solver apenas questões antecipadas de forma, ao invés de estabelecer os con­tornos necessários a uma adequada decisão judicial e uma maneira efetiva de controlá-la em nível recursal. Preferiu-se impor apenas a força da autoridade do órgão prolator da decisão, projetando a reclamação como o único meio adequado de atacá-la, inviabilizando a “oxigenação do direito” e a maturação necessária para a decisão (conteúdo), e impedindo que os órgãos judiciais in­feriores tenham contato com a causa e contribuam para uma jurisprudência firme; estrangulou-se o sistema recursal, inviabilizando o efetivo e democráti­co debate no âmbito do Poder Judiciário. [12]

 

Evaristo Aragão Santos[13] também critica o status de precedente vinculante conferido ao IRDR, em razão da previsão da possibilidade de uma única pessoa requerer ao STF ou ao STJ (a depender da controvérsia em jogo) a suspensão dos processos individuais sobre a matéria objeto do incidente, restringindo a diversidade e a possibilidade de se ampliar a discussão da causa.

Daí a relevância da análise crítica, que ora se propõe, sobre a constitucionalidade da eficácia vinculante conferida por lei ordinária ao referido incidente.

3. A (in)constitucionalidade do efeito vinculante do IRDR: uma interpretação construída à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

A lei ordinária nº 13.105/2015, que instituiu o CPC/2015, atribuiu eficácia vinculante ao julgamento dos tribunais de 2º grau ao definirem as teses jurídicas no julgamento do IRDR, inclusive com a possibilidade de utilização da ação de reclamação.

A questão é polêmica e sua compreensão perpassa pela análise da evolução do entendimento jurisprudencial, especialmente do Supremo Tribunal Federal, relativo a alguns temas semelhantes, quais sejam: os prejulgados vinculantes da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral; a eficácia vinculante da ação declaratória de constitucionalidade introduzida pela Emenda Constitucional n. 03/93; e da ação direta de inconstitucionalidade prevista pela lei ordinária nº 9.868/99; e, por fim, o tema da ampliação dos efeitos da decisão proferida pela Corte Suprema em sede de controle difuso de constitucionalidade, independentemente da intervenção do Senado da República.

Ainda que não tenha o propósito de esgotar a temática, o estudo crítico do tema, a partir da interpretação do Supremo Tribunal Federal, revelará que a atribuição de eficácia vinculante para a interpretação judicial somente se mostra compatível com a Constituição em hipóteses restritas e para de julgamentos de determinados tribunais, que não se amoldam aos requisitos do IRDR.

3.1 A inconstitucionalidade dos prejulgados vinculantes da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral

Ainda na vigência da Constituição de 1946, restou assentado no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Representação de Inconstitucionalidade n. 946/ DF[14] que o art. 902, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho, ao conferir força vinculante aos prejulgados do Tribunal Superior do Trabalho, não seria compatível com a ordem constitucional. A lei ordinária não poderia conferir força normativa vinculante aos prejulgados trabalhistas.

De acordo com texto legal do art. 902, “é facultado ao Tribunal Superior do Trabalho estabelecer prejulgados, na forma que prescrever o seu Regimento Interno”. O § 1º do art. 902 da CLT dispunha que “uma vez estabelecido o prejulgado, os Tribunais Regionais do Trabalho, as Juntas de Conciliação e Julgamento e os juízes de Direito investidos na jurisdição da Justiça do Trabalho ficarão obrigados a respeitá-lo”.

O prejulgado resultava de pronunciamento do Tribunal Superior do Trabalho, em reunião plenária, por ocasião de julgamento de ação originária ou de recurso de sua competência, ou independentemente desses procedimentos, sobre interpretação de norma jurídica, dotado de caráter geral e vinculante.

O instituto tinha o objetivo de dar padrão decisório, coerência, estabilidade e uniformidade à interpretação do direito trabalhista. Não por mera coincidência o mesmo objetivo é previsto nos artigos 926 e 927 do CPC/2015, para também se conferir eficácia vinculante ao julgamento do IRDR pelos tribunais de segundo grau.

Importante destacar trecho do voto do eminente ministro Eloy da Rocha:

 

O prejulgado, com força vinculativa dos parágrafos do art. 902, da Consolidação das Leis do Trabalho, consubstancia, desde 18.9.1946, contrariedade à Constituição. Somente o Supremo Tribunal Federal, em virtude da Emenda Constitucional n. 7, de 13.4.1977 (...), pode, mediante representação do Procurador-Geral da República, dar a interpretação, em tese, de lei ou ato normativo federal ou estadual.

Não se confunde o prejulgado, do Tribunal Superior do Trabalho, com a súmula de jurisprudência dominante, prevista no art. 479 do Código de Processo Civil, ou nos arts. 894, b, e 896, a, da Consolidação das Leis do Trabalho, combinados com art. 168 do Regimento Interno.

Ainda posteriormente à Constituição de 1946, o Regimento Interno autorizou o Tribunal Superior do Trabalho a estabelecer prejulgado (...), mesmo independentemente de ação originária ou recurso, sempre que ocorra ou possa ocorrer discrepância de interpretação na aplicação da norma legal. Estes prejulgados são impostos aos Tribunais Regionais do Trabalho, às Juntas de Conciliação de Julgamento e aos Juízes de Direito investidos da jurisdição trabalhista. [15]

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Ficou definido pela Suprema Corte que seria inconstitucional qualquer ato normativo que dissesse que os prejulgados daquele tribunal superior deveriam necessariamente ser observados pelos juízes das instâncias inferiores. Ou seja, não caberia ao Tribunal Superior do Trabalho formular teses jurídicas de caráter normativo, geral e vinculante para as instâncias inferiores da justiça laboral.

Oportuno ressaltar que, após o julgamento pelo STF, foi editada a Lei 7.033, de 05/10/1982, que revogou o instituto. O TST, em seguida, transformou os seus antigos prejulgados em enunciados da sua jurisprudência dominante, mas sem eficácia vinculante.

Noutra oportunidade, já na vigência da Constituição da República de 1988, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE adotou o referido precedente da Suprema Corte para reconhecer, em julgamento relatado pelo então ministro Sepúlveda Pertence, a inconstitucionalidade dos “prejulgados vinculantes” previstos no Código Eleitoral. [16]

Dispõe o art. 263 do Código Eleitoral: “no julgamento de um mesmo pleito eleitoral, as decisões anteriores sobre questões de direito constituem prejulgados para os demais casos, salvo se contra a tese votarem dois terços dos membros do Tribunal”.

Entendeu o TSE que o texto legal positivo não pode emprestar força normativa vinculante à interpretação judicial do direito no âmbito da Justiça Eleitoral.

Nesse sentido, o voto do relator ministro Sepúlveda Pertence proferido no TSE, no qual foram feitos apontamentos sobre as semelhanças entre o “prejulgado eleitoral” e o “prejulgado trabalhista”, além da inconstitucionalidade do efeito vinculante atribuído pela lei a ambos:

 

É óbvio que a hipótese é um pouco diversa da do prejulgado trabalhista que é significativamente mais rígido; primeiro porque, o trabalhista, se impunha diretamente aos órgãos inferiores da estrutura da Justiça do Trabalho, enquanto o prejulgado eleitoral tem eficácia restrita a cada Tribunal; no tempo, enquanto o prejulgado trabalhista é de duração indeterminada, o eleitoral só vige no mesmo período eleitoral em que assentado.

Dois, porém, são os pontos em que me parece haver o choque com a Constituição.

O primeiro é idêntico ao do prejulgado trabalhista. Apesar das diferenças notadas, a menor extensão orgânica, a temporariedade e a maior flexibilidade – porque ainda neste período se permite a revisão por um quórum qualificado – o que é certo é que também o prejulgado trabalhista faz de um precedente jurisprudencial como norma vinculante da decisão do Tribunal. Logo, dá ao precedente judicial força de lei, o que viola o princípio da separação funcional aos poderes. (...) Ocorre-me, afinal, mais uma consideração. É tão violenta a força vinculante que o prejulgado pretende, que ele é maior do que a força obrigatória da lei. Veja V. Exa.: se nesta votação, tivermos quatro votos pela inconstitucionalidade de uma lei, podemos deixar de aplicá-la; mas teríamos que ter cinco votos para deixar de aplicar o critério de um precedente que, ao ver da maioria do Tribunal, não interpretou bem a lei.

De tal modo, Senhor Presidente, que meu voto incidentemente declara inconstitucional o art. 263 desde a Constituição de 46, sob a qual foi editado.[17]

 

Os referidos julgados sinalizam inequivocamente que, ao atribuir eficácia vinculante à interpretação judicial do direito pelos tribunais especializados da Justiça do Trabalho e Eleitoral, a lei ordinária viola a ordem constitucional.

A inconstitucionalidade decorre da ofensa à separação dos poderes, em razão da atribuição de poder normativo aos referidos julgados, e, ainda, ofensa à independência judicial, garantia do Estado Democrático, na medida em que impede o julgamento da causa a partir do debate em contraditório e do livre convencimento motivado do julgador.

3.2 A constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 03/93 que instituiu a ação declaratória de constitucionalidade e sua eficácia vinculante

Alguns anos depois, o Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 03/93, que instituiu a chamada ação declaratória de constitucionalidade (ADC), um novo instrumento processual do controle concentrado. A controvérsia residia justamente em relação à eficácia erga omnes e vinculante do julgamento da referida ação pela Suprema Corte. [18]

Nos termos do § 2º do art. 102 da Constituição de 1988, com redação dada pela referida emenda, “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade (...), produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”.

Impende advertir, inicialmente, que o conceito de “eficácia erga omnes” não se confunde com o de “efeito vinculante”, sob pena de se admitir a utilização de palavras inúteis no texto constitucional. [19]

A eficácia erga omnes ou “eficácia contra todos” se restringe à parte dispositiva do julgamento da Suprema Corte e alcança a própria eficácia geral e abstrata da norma objeto do controle, atingindo, por conseguinte, a todos.[20] O efeito vinculante é, nas palavras de Marcelo Alves Dias de Souza, “um plus em relação à eficácia erga omnes e significa a obrigatoriedade da administração pública e dos órgãos do Poder Judiciário, excluindo o Supremo Tribunal Federal, de submeter-se à decisão proferida na ação direta” [21].

O objetivo da modificação da Carta de 1988 pela Emenda Constitucional nº 03 foi criar um instrumento processual capaz de uniformizar de forma célere o entendimento sobre a constitucionalidade de determinada norma, em contrapartida à força outorgada aos juízes de primeira instância no controle difuso. Ou seja, era necessário criar um mecanismo alternativo ao controle difuso de constitucionalidade, para que a Suprema Corte pudesse intervir de forma rápida, direta e vinculante sobre eventual controvérsia acerca da validade de uma lei ou ato normativo federal.

Considerou, assim, o legislador constituinte, a partir de um juízo de valoração jurídica e política, que seria preponderante o interesse geral na solução imediata pela Suprema Corte da controvérsia sobre a legitimidade constitucional de uma determinada lei, em prol da defesa da integridade da ordem jurídica, impedindo a ocorrência de julgamentos discrepantes que poderiam acarretar danos irreversíveis em função do transcurso do tempo, além de assegurar o mesmo tratamento jurídico a situações idênticas.

O STF entendeu, nesse contexto, que os efeitos da ação declaratória de constitucionalidade eram compatíveis com a ordem constitucional vigente. A eficácia erga omnes não seria uma característica exclusiva da ADC, mas da própria natureza do processo objetivo de controle abstrato das normas, sendo também inerente à ação direta de inconstitucionalidade.

A eficácia vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, por sua vez, redundaria em importante consequência de ordem processual. Isso porque a inobservância do julgamento da ação declaratória de constitucionalidade configurará afronta à autoridade da Suprema Corte, dando ensejo à ação constitucional de reclamação.

O referido efeito também foi considerado compatível com a Constituição e suas cláusulas pétreas na medida em que o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, ao qual se atribuiu o papel de guardião da Constituição e, por conseguinte, a atribuição do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Se a observância de seus julgados nesta seara não fosse obrigatória, haveria o total esvaziamento do seu papel constitucional e do próprio controle concentrado de constitucionalidade.

Nessa perspectiva, a emenda constitucional apenas explicitou um poder que a Suprema Corte já detinha. Nas palavras do relator Ministro Moreira Alves,

 

(...) é o efeito vinculante da decisão de mérito na ação declaratória de constitucionalidade que lhe permite, prontamente, defender a segurança jurídica com o respeito da ordem constitucional assegurado por esse meio de controle. Mesmo nos países em que só se admite o controle concentrado de constitucionalidade exercido por Corte Constitucional, nunca se sustentou que, com ele, se retirou a independência da magistratura. Essa crítica – que não decorreria da criação da ação declaratória de constitucionalidade, mas que poderia ser feita quanto à ação direta de inconstitucionalidade – é tanto mais improcedente que é certo que, no Brasil, o órgão que exercita esse controle concentrado, em face da Constituição Federal, é, por força dela mesma, o Supremo Tribunal Federal, que não apenas integra o Poder Judiciário, mas se encontra no ápice de sua hierarquia. [22]

 

Merecem destaque também as indagações do Ministro Francisco Rezek em seu voto proferido naquele julgamento:

 

(...) faz sentido não ser vinculante uma decisão da Suprema corte do país? Não estou falando, naturalmente, de fatos concretos, cada um com seu perfil, reclamando esforço hermenêutico da lei pelo juiz que conhece as características próprias do caso. Estou me referindo a hipóteses de pura análise jurídica. Tem alguma seriedade a ideia de que se devam fomentar decisões expressivas de rebeldia? A que serve isso? Onde está o interesse público em que esse tipo de política prospere? [23]

 

O efeito vinculante é uma medida de utilidade que o legislador constituinte entendeu oportuno adotar no Brasil no âmbito do controle de constitucionalidade pela Suprema Corte. É medida necessária para que uma decisão da Corte Superior se faça respeitada e obrigatória.

O fundamento determinante para o reconhecimento da constitucionalidade da ADC e da sua eficácia vinculante relaciona-se, portanto, com o papel constitucional da Suprema Corte e o princípio da supremacia da Constituição para assegurar a uniformidade da interpretação e segurança jurídica ao ordenamento. 

Desse modo, é possível concluir, a partir da interpretação da STF no caso em questão, que a eficácia vinculante de determinado pronunciamento do Poder Judiciário não corresponde à regra do sistema de Justiça e não pode ser outorgada aos julgamentos de qualquer órgão jurisdicional, mas daqueles que estejam no vértice da estrutura hierárquica e que desempenham papel fundamental na uniformização da interpretação do direito e no exercício de jurisdição constitucional.

3.3 A constitucionalidade da Lei Ordinária n. 9.868/99 que atribuiu eficácia vinculante aos julgamentos de mérito da ADI: legitimidade da eficácia vinculante prevista para a jurisdição constitucional

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal também reconheceu, por maioria de votos, a constitucionalidade do art. 28, parágrafo único, da lei ordinária nº 9.868, de 1999, que atribuiu eficácia vinculante aos julgamentos definitivos de mérito proferidos pela Corte Suprema em ação direta de inconstitucionalidade (ADI). [24]

Para efeito de controle abstrato de constitucionalidade de lei ou ato normativo, entendeu-se que havia similitude substancial de objetos entre a ação declaratória de constitucionalidade, criada pela Emenda Constitucional nº 03/93, e a ação direta de inconstitucionalidade. Enquanto a primeira se destina à aferição positiva de constitucionalidade, a segunda possui pretensão de caráter negativo.

Ambas as ações são, portanto, de natureza dúplice ou ambivalente, de modo que a eficácia do julgamento se equivaleria nas hipóteses de procedência ou de improcedência.

Assim, a eficácia vinculante da ação declaratória de constitucionalidade conferida pelo § 2º do art. 102 da Constituição não deve se distinguir, na essência, dos efeitos das decisões de mérito proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade, o que assegura a compatibilidade constitucional ao dispositivo legal que apenas confirmou a mesma eficácia das referidas ações.

Com efeito, a lei ordinária não teria inovado o ordenamento jurídico em relação ao tema, mas apenas explicitado a inteligência da disposição constitucional, visando conferir mais força ao controle concentrado de constitucionalidade.

O ministro Gilmar Mendes defendeu em seu voto que o efeito vinculante está intimamente relacionado à própria natureza da jurisdição constitucional, no Estado Democrático, e à função de guardião da Constituição desempenhada pela Suprema Corte.

Nesse contexto, o legislador ordinário não estaria impedido de atribuir essa proteção processual especial a outras decisões de controvérsias constitucionais proferidas pelo STF, como teria sido reconhecido, inclusive, em relação à ação de descumprimento de preceito fundamental [25].

A validade da lei ordinária para estabelecer a eficácia vinculante estaria circunscrita, a toda evidência, aos julgamentos da Suprema Corte no controle de constitucionalidade e para concretização do papel fundamental a ela atribuído de guardiã da Constituição.

Para o Ministro Gilmar Mendes:

 

Na verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte, ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais. Foi exatamente esse o entendimento que imperou na Alemanha. O efeito vinculante não está previsto na Constituição, ao contrário da “força de lei” (...), ou da chamada “eficácia erga omnes”. Não obstante, o efeito vinculante foi imposto por lei. (...) Esse foi o entendimento adotado por este Tribunal na Ação Declaratória n. 04, ao reconhecer efeito vinculante à decisão proferida em sede de cautelar, a despeito do silêncio do texto constitucional e da ausência à época de disposição legal sobre o texto.[26]

 

Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004, constou expressamente na Constituição a eficácia vinculante ao julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, terminando com qualquer controvérsia.

O professor Humberto Theodoro Jr. sustenta que a constitucionalidade da referida lei ordinária nº 9.868/1999 reconhecida pelo STF corroboraria a legitimidade da lei ordinária 13.105/2015, que instituiu o CPC/2015, para atribuir eficácia vinculante também a outros julgamentos do Poder Judiciário, inclusive de tribunal de segundo grau, como no caso do IRDR. [27]

A referida interpretação não convence, porquanto a Suprema Corte não reconheceu naquele julgamento a legitimidade da lei ordinária para conferir eficácia vinculante a qualquer julgamento ou em relação a qualquer órgão do Poder Judiciário.

Ao contrário, para o reconhecimento excepcional da constitucionalidade da referida lei ordinária, os fundamentos determinantes adotados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Reclamação n. 1880-6 repousaram na simetria de objetos das ações pertinentes à jurisdição constitucional e, outrossim, na relevância do papel constitucional daquele Tribunal Superior como guardião da Constituição. 

Portanto, os fundamentos da inconstitucionalidade dos prejulgados vinculantes da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral previstos por legislação ordinária, já citados nesta análise, não foram infirmados pelo posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação à lei ordinária 9.868/1999, ao contrário, foram corroborados.

3.4 A polêmica sobre a ampliação dos efeitos da decisão proferida pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade: existe vinculação aos demais órgãos do Poder Judiciário?

O tema da ampliação dos efeitos da decisão proferida em sede de controle de difuso de constitucionalidade – chamado de “abstrativização” do controle difuso – foi tratado no caso emblemático da Reclamação Constitucional n. 4.335. [28]

Discutiu-se a possibilidade de utilização da ação de reclamação para assegurar a vinculação vertical dos efeitos das decisões proferidas pela Suprema Corte em sede de controle difuso de constitucionalidade.

No caso analisado, o juízo de primeiro grau da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, indeferiu a concessão do benefício de progressão de regime nos casos de crime hediondos, não obstante o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido incidentalmente, no julgamento do Habeas Corpus 82.959, a inconstitucionalidade (por seis votos a cinco) do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/1990, que vedava a progressão de regime de cumprimento de pena para tais crimes. O habeas corpus não havia sido concedido em favor do mesmo condenado que teve o benefício de progressão de regime negado pelo juízo de primeira instância.

O relator ministro Gilmar Mendes, acompanhado pelo então ministro Eros Grau, entendeu que a recusa do juiz da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco em conceder a progressão do regime nos casos de crime hediondos desrespeitaria a eficácia erga omnes e vinculante que também deveria ser atribuída à decisão proferida pela Suprema Corte no julgamento do Habeas Corpus 82.959, tal como sucede no controle concentrado de constitucionalidade, independentemente da manifestação do Senado Federal. Sustentou-se ter havido uma mutação constitucional no art. 52, inciso X, da Constituição Federal, na medida em que o papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade teria se restringido apenas a dar publicidade às decisões proferidas pela Suprema Corte.

Conforme destacou o ministro Gilmar Mendes em seu voto:

 

Vê-se, assim, que a Constituição de 1988 modificou de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, especialmente da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. O Supremo Tribunal Federal percebeu que não poderia deixar de atribuir significado jurídico à declaração de inconstitucionalidade proferida em sede de controle incidental, ficando o órgão fracionário de outras Cortes exonerado do dever de submeter a declaração de inconstitucionalidade ao plenário ou ao órgão especial, na forma do art. 97 da Constituição. Não há dúvida de que o Tribunal, nessa hipótese, acabou por reconhecer efeito jurídico transcendente à sua decisão. Embora na fundamentação desse entendimento fale-se em quebra da presunção de constitucionalidade, é certo que, em verdade, a orientação do Supremo acabou por conferir à sua decisão algo assemelhado a um efeito vinculante, independentemente da intervenção do Senado. Esse entendimento está hoje consagrado na própria legislação processual civil (...)

Portanto, é outro o contexto normativo que se coloca para a suspensão da execução pelo Senado Federal no âmbito da Constituição de 1988. Ao se entender que a eficácia ampliada da decisão está ligada ao papel especial da jurisdição constitucional, e, especialmente, se considerarmos que o texto constitucional de 1988 alterou substancialmente o papel desta Corte, que passou a ter uma função preeminente na guarda da Constituição a partir do controle direto exercido na ADI, na ADC e na ADPF, não há como deixar de reconhecer a necessidade de uma nova compreensão do tema. (...)

De fato, é difícil admitir que a decisão proferida em ADI ou ADC e na ADPF possa ser dotada de eficácia geral e a decisão proferida no âmbito do controle incidental - esta muito mais morosa porque em geral tomada após tramitação da questão por todas as instâncias - continue a ter eficácia restrita entre as partes.[29]

 

E, logo a seguir, conclui o ilustre julgador, citando o direito comparado:

 

Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140,5 - publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art.31, (2), publicação a cargo do Ministro da Justiça). [30]

 

Ou seja, a própria decisão da Suprema Corte, no controle difuso ou incidental de constitucionalidade das leis, conteria força normativa bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional, possuindo eficácia erga omnes e vinculante, e não apenas eficácia inter partes.

Naquela assentada, porém, os Ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski divergiram do relator e reafirmaram o papel do Senado Federal para conferir a eficácia erga omnes à decisão proferida no controle difuso de constitucionalidade, destacando, no entanto, o instrumento da Súmula Vinculante como alternativa processual para se obter a pretendida eficácia normativa aos julgamentos da Suprema Corte no controle incidental. Nas palavras do ministro Sepúlveda Pertence, o efeito vinculante “ou decorre, no nosso sistema, de decisões nos processos objetivos de controle direto, ou decorrerá da adoção solene, pelo Tribunal, da súmula vinculante”.

O papel do Senado, no art. 52, inciso X da Constituição, sempre foi a de ampliar a força vinculativa das decisões de declaração de inconstitucionalidade tomadas pelo STF em controle difuso, conferindo-lhes, assim, eficácia erga omnes semelhante à do instituto do stare decisis. Trata-se de opção do legislador constituinte que se mantém hígida no sistema de controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil.

A polêmica sobre o tema ainda persiste, uma vez que, em 14 de março de 2014, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a referida Reclamação n. 4.335, mas por fundamento determinante diverso, qual seja, a violação à Súmula Vinculante n. 26, editada três anos após o ajuizamento daquela ação. Entendeu-se que a aprovação do enunciado da súmula vinculante sobre o mesmo tema (inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime em relação aos crimes hediondos) constituiria fato superveniente que não poderia ser desconsiderado pelos julgadores.

Nos debates travados no julgamento da referida reclamação constitucional, ficou claro que a preocupação com o tema de fundo se deu em razão da importância das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na qualidade de guardião da Constituição. Mais uma vez se evidencia que a força de um precedente depende da Corte da qual ele emana e do papel constitucional desse tribunal no Sistema de Justiça.

Nesse contexto de valorização dos julgamentos da corte superior, vale destacar que a Emenda Constitucional 45, de 2004, expandiu a eficácia das decisões do STF proferidas no controle difuso, ao instituir como novo requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, a demonstração da “repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei” (art. 102, § 3.º da CF, regulamentado nos arts. 543-A e 543-B do CPC de 1973). A norma regulamentadora, também reproduzida no CPC/2015, considerou como indispensável à caracterização da repercussão geral que as questões discutidas sejam relevantes sob dois distintos aspectos: o material (relevantes do ponto de vista econômico, político, social e jurídico) e o subjetivo (que ultrapassem o interesse subjetivo da causa).

Esse segundo requisito evidencia o caráter mais objetivo de que se reveste atualmente a formação do precedente da Suprema Corte também em relação ao controle difuso ou incidental de constitucionalidade. Justamente com base nessa circunstância, o STF, ao examinar a natureza e o alcance do novo regime, deixou inequivocamente acentuado o efeito expansivo das decisões dele decorrentes para os demais recursos, já interpostos ou que vierem a sê-lo.

O sistema atual não apenas confere especial força expansiva aos julgamentos do STF na jurisdição constitucional, com amparo na própria Constituição, mas também institui fórmulas procedimentais para tornar concreta e objetiva a sua aplicação aos casos pendentes de julgamento. [31] 

Não há que se cogitar na violação ao papel do Senado Federal já que a previsão da repercussão geral também foi prevista por norma constitucional, introduzida pela Emenda Constitucional 45. As duas regras coexistem e se complementam. A repercussão geral permite a expansão objetiva da eficácia do julgado no âmbito interno do Poder Judiciário com o propósito de assegurar o respeito do precedente pelas demais instâncias e a sua reprodução nos recursos sobrestados sobre a mesma temática. A atuação do Senado Federal servirá para expandir a eficácia do julgamento também para o âmbito da Administração Pública.

Dentro dessa polêmica acerca da tendência[32] de objetivação dos efeitos do controle difuso e da constatação de que a expansão da eficácia normativa dos julgados do STF se deu a partir de reformas constitucionais, sobretudo a partir da Emenda Constitucional 45, que introduziu a súmula vinculante e a repercussão geral, outra não pode ser a conclusão senão a de que constitui flagrante ofensa à Constituição a previsão por mera lei ordinária de eficácia vinculante e erga omnes ao julgamento do IRDR, já que se trata de incidente processual de competência dos tribunais ordinários de segundo grau, os quais não desempenham a função de Corte Suprema para uniformização do direito.

Fazendo uma comparação entre os temas, Júlio Rossi também aponta a inconstitucionalidade da eficácia vinculante atribuída ao IRDR por lei ordinária, in verbis:

 

(...) a decisão firmada no IRDR possui a mesma carga de eficácia das súmulas vinculantes, com um agravante: não há amparo constitucional, o que nos leva arriscar a afirmação que o art. 941 do PLS 166/2010 (art. 980 do PLC 8.046/2010) é inconstitucional. A subversão gerada nos processos subjetivos (com a força vinculante da decisão-quadro tomada em IRDR) importaria no acesso direto aos Tribunais por meio de reclamação, colocando em cheque a estrutura judiciária escalona­da, principalmente no que se refere aos meios ordinários de impugnação.

Salienta-se que, nem mesmo em processos incidentais de constitucionali­dade, há objetividade automática dos efeitos das decisões judiciais para ou­tros processos, sendo necessário o reconhecimento de repercussão geral pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário e aplicação do disposto no art. 52, X, da CF/1988, em ato privativo do Senado Federal (somente assim seria atribuído efeito erga omnes à decisão). [33]

 

Assim, à luz de alguns casos emblemáticos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, dessume-se que a expansão normativa dos efeitos do julgamento de um determinado tribunal depende, antes de tudo, de sua posição na organização hierárquica do Poder Judiciário e, outrossim, da previsão no texto da própria Constituição da função daquela corte de assegurar a unidade do direito, definindo teses jurídicas e uniformizando a interpretação, o que não é o caso dos tribunais locais e regionais.

 

4. Conclusão

 

A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal revela que o efeito vinculante não pode ser atribuído por lei ordinária a julgamentos de tribunais da instância ordinária.

No julgamento de questão de ordem na ADC n. 01, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 03/93 – a qual instituiu a ação declaratória de constitucionalidade com eficácia vinculante – ao entendimento de que a eficácia obrigatória dos julgamentos no controle concentrado é indispensável à garantia do papel do Supremo como guardião da Constituição.

A emenda apenas teria explicitado um poder que a Corte Suprema já detinha para assegurar a unidade do direito e a segurança jurídica ao ordenamento.

Motivação semelhante foi apresentada no julgamento da constitucionalidade do art. 28, parágrafo único, da lei ordinária nº 9.868, de 1999, que atribuiu eficácia vinculante aos julgamentos definitivos de mérito proferidos pela Corte Suprema em ação direta de inconstitucionalidade (ADI).

A lei ordinária somente foi considerada constitucional para veicular a imposição de força obrigatória ao julgamento da ADI em razão da similitude substancial do seu objeto com a ação declaratória de constitucionalidade, criada pela Emenda Constitucional nº 03/93. São ações dúplices. Desse modo, a referida lei não teria inovado o ordenamento jurídico em relação ao tema, mas apenas explicitado a inteligência da disposição constitucional, visando conferir mais força ao controle concentrado de constitucionalidade.

A validade da lei ordinária para estabelecer a eficácia vinculante estaria circunscrita aos julgamentos da Suprema Corte no controle de constitucionalidade e para concretização do papel fundamental a ela atribuído de guardiã da Constituição.

Corrobora, ainda, o referido entendimento a expansão da eficácia normativa dos julgados do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade a partir de reformas constitucionais, sobretudo a partir da Emenda Constitucional 45, que introduziu a súmula vinculante e a repercussão geral. Tais reformas permitiram que os efeitos do controle difuso se estendessem para além das partes do caso concreto.

A impossibilidade de uma mera lei ordinária atribuir força obrigatória a julgamento de qualquer tribunal tem respaldo igualmente no entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal em relação à inconstitucionalidade da eficácia vinculante atribuída pela CLT aos prejulgados trabalhistas. A lei infraconstitucional não pode atribuir tal força aos julgamentos estranhos à Suprema Corte e, principalmente, estranhos à jurisdição constitucional.

O prejulgado era previsto pelo § 1º do art. 902 da CLT e resultava de pronunciamento do Tribunal Superior do Trabalho, em reunião plenária, por ocasião de julgamento de ação originária ou de recurso de sua competência, ou independentemente desses procedimentos, sobre interpretação de norma jurídica, dotado de caráter geral e vinculante.

Ficou definido pela Suprema Corte, ainda sob a vigência da Constituição de 1946, que seria inconstitucional qualquer ato normativo que dissesse que os prejulgados do Tribunal Superior do Trabalho deveriam necessariamente ser observados pelos juízes das instâncias inferiores. Ou seja, não caberia ao Tribunal Superior Trabalho formular teses jurídicas de caráter normativo, geral e vinculante para as instâncias inferiores da justiça laboral.

Já na vigência da Constituição da República de 1988, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE adotou o referido entendimento da Suprema Corte para reconhecer, em julgamento relatado pelo então ministro Sepúlveda Pertence, a inconstitucionalidade também dos “prejulgados vinculantes” previstos no Código Eleitoral.

A inconstitucionalidade decorre da ofensa à separação dos poderes, em razão da atribuição de poder normativo aos referidos julgados, e, ainda, ofensa à independência judicial, garantia do Estado Democrático, na medida em que impede o julgamento da causa a partir do debate em contraditório e do livre convencimento motivado do julgador.

Não se defende a rebeldia judicial e a chamada “jurisprudência lotérica”, mas sim o respeito indispensável ao protagonismo legítimo do juiz na interpretação do direito para a construção do provimento jurisdicional no espaço público discursivo do processo democrático.

Defende-se, por outro lado, a valorização da primeira instância, compreendendo sua participação e autoridade como necessárias para moldar o direito ao caso concreto, gerenciando os litígios para que se preze por uma prestação jurisdicional qualificada e não padronizada.

O IRDR concentra no tribunal de segundo grau muitas vezes de forma precipitada o desate da controvérsia jurídica, produzindo enunciado normativo genérico como se tratasse de uma súmula vinculante, o que mecanizará a atividade dos demais magistrados.

Haveria, assim, dois tipos de juízes: aqueles que interpretam a questão de direito, definindo tese jurídica de caráter erga omnes e vinculante, que são os julgadores do incidente; e aqueles que se limitam a aplicar a decisão padronizada às demandas individuais, repetindo as anteriores, tornando o precedente judicial para as demandas repetitivas algo estático e acabado.

Com efeito, o juiz de primeiro grau não pode ser visto como um mero aplicador mecânico da letra da lei ou do enunciado da jurisprudência, um computador programado para apenas processar a tese jurídica definida pelo tribunal, extraindo uma solução automática ao caso concreto.

No processo democrático, o juiz deve ser comprometido, antes de tudo, com a completude da decisão do conflito, vista não como ato processual isolado, mas como resultado da cooperação e do debate processual desenvolvido em contraditório pelas partes.

Esse papel fundamental do magistrado, especialmente daquele atuante no primeiro grau, somente poderá se efetivar se for respeitada a garantia constitucional da independência judicial, restringida de maneira inconstitucional pelo CPC/2015 ao atribuir força normativa e vinculante ao julgamento do IRDR pelo tribunal da instância ordinária.

Enfim, muito longe da pretensão de esgotar o tema, o objeto do presente artigo foi apenas o de instigar o debate, demonstrando que a lei ordinária não pode tudo em matéria processual, sob pena de deturpar o papel dos tribunais no sistema de justiça, transformado as partes e os julgadores da primeira instância em meros robôs repetidores de enunciados normativos fechados.

 

 

Sobre o autor
Daniel Carneiro Machado

Juiz Federal da 21ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais. Doutor em Direito Processual pela UFMG (2016) e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas (2004). Professor titular do curso de graduação em direito do Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte, além de professor de cursos de pós-graduação e preparação para concursos públicos na área jurídica. Ex-Advogado da União e ex-Procurador da Fazenda Nacional em Minas Gerais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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