A imposição do regime de separação de bens no casamento dos maiores de 70 anos

04/08/2020 às 22:04
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Analise da imposição do regime de separação de bens no casamento dos maiores de 70 anos

RESUMO: O presente artigo pretende abordar discussões acerca da imposição prevista no artigo 1.641 do Código Civil, quando põe em questionamento a capacidade plena dos cidadãos maiores de setenta anos exercerem atos da vida civil, dentre os quais está à obrigatoriedade de optar pelo regime de separação obrigatória de bens no caso de contrair matrimônio. Atualmente, vê-se que a população idosa brasileira tem estado mais integrada aos desafios da idade, e cada vez mais tem se adaptado às mudanças oriundas da sociedade contemporânea, apresentando-se mais capaz e sadia. Deste modo, mesmo percebendo que a intenção do ordenamento jurídico foi proteger o idoso e uma possível vulnerabilidade que ele apresente, questiona-se até que ponto tal medida fere os princípios constitucionais elencados na Constituição Federal de 1988, tendo em vista que isto pode estar ferindo os direitos dos idosos, principalmente no que concerne à autonomia da vontade.

PALAVRAS-CHAVE: Casamento. Regime de bens do casamento. Separação obrigatória de bens. Idoso. Código Civil.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Breve histórico do casamento; 3. Os regimes de bens no Código Civil; 3.1- Regime obrigatório de separação de bens; 4. O direito dos idosos na escolha do regime de bens; 5. O Regime de separação de bens no casamento dos maiores de 70 anos; 6. Considerações finais. 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos viu-se que a população brasileira passou a ser composta por um maior número de pessoas idosas. Acredita-se que isto se deve ao fato da medicina ter avançado e a qualidade de vida das pessoas foi melhorando com o tempo. Neste contexto, o Direito foi acompanhando tais mudanças, e proporcionando ao idoso a garantia e eficácia dos seus direitos.

O casamento entre pessoas idosas ou com ao menos uma das pessoas idosas, sempre foi visto de forma um tanto quanto preconceituosa pela sociedade, ainda mais quando um dos conjugues possui condições financeiras melhores do que seu oposto. Com isso, o ordenamento jurídico pátrio tratou de tentar proteger as pessoas maiores de 70 anos, a fim de que elas não fossem vítimas de nenhuma situação que lhes trouxesse prejuízo.

Conforme disposto no artigo 1.641, II, do Código Civil, o cidadão não poderá escolher o regime de bens que vigorará em seu casamento, ele será obrigado a optar pelo regime de separação de bens. Entretanto a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal traz em sua redação uma brecha que quebra o quanto disposto no referido artigo.

O tema mostra-se relevante frente à realidade encontrada em um Estado Democrático de Direito, que se fundamenta na dignidade da pessoa humana, mas que ao estabelecer uma obrigatoriedade para os septuagenários priva a liberdade de escolha do regime de bens no casamento.

Por conta disso, questiona-se a capacidade do idoso e acaba gerando uma situação discriminatória, ainda mais nos dias de hoje onde se vivencia uma evolução do conceito de família e o aumento da expectativa de vida da população brasileira. Isto sem contar com a existência do Estatuto do Idoso que tutela os direitos das pessoas idosas priorizando seu envelhecimento digno.

Diante disso, o presente artigo visa propiciar reflexões através da análise de doutrinas, legislações, artigos científicos e revistas jurídicas, com o objetivo de aclarar todas as dúvidas acerca deste tema sem esquecer a importância de serem garantidos os direitos dos idosos, já que eles representam uma grande parcela da população brasileira.

2. BREVE HISTÓRICO DO CASAMENTO

Acredita-se que o instituto do casamento surgiu no Brasil com a colonização portuguesa, sendo considerada a única forma de promover a união entre o homem e a mulher. Farias e Rosenvald explicam:

Compreendia-se a família como unidade de produção, realçados os laços patrimoniais. As pessoas se uniam em família com vistas à formação de patrimônio, para sua posterior transmissão aos herdeiros, pouco importando os laços afetivos. Daí a impossibilidade de dissolução do vínculo, pois a desagregação da família corresponderia à desagregação da própria sociedade. Era o modelo estatal de família, desenhado com os valores dominantes naquele período da revolução industrial.[1]

Naquela época não era aceito nenhum outro tipo de convívio de homem e mulher fora do casamento religioso, pois esta era a única forma de constituição de família, mesmo para os não católicos.

Somente 1891 surgiu o casamento civil, e desde então a instituição tem passado por várias transformações na tentativa de acompanhar as mudanças ocorridas na sociedade. A primeira mudança significativa ocorrida com o casamento foi à possibilidade de dissolução do vínculo conjugal, quando em 1977 a emenda constitucional de nº 9, estabeleceu pela primeira vez de forma clara o divórcio no casamento. Entretanto, havia alguns requisitos, como a exigência do casal estar separado judicialmente no mínimo há cinco anos ou de fato por mais de sete anos.

Cabe salientar que o Código Civil de 1916 indicava como requisito para a formação da família apenas o casamento civil, e só em 1988 foi que a Constituição Federal ampliou o conceito de família e reconheceu a união estável (artigo 226, parágrafo 3º) e a família monoparental (artigo 226, parágrafo 4º), como entidade familiar. Alem disso, posteriormente verificou-se tanto o reconhecimento da união entre homossexuais ou uniões homoafetivas como entidade familiar.

Segundo Dias, atualmente, o que identifica a família não é nem a celebração do casamento nem a diferença de sexo do par ou envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo.[2]

A Constituição Federal de 1988 representou grande marco na evolução do direito de família e, conseqüentemente, outras formas de entidade familiar. E com base no princípio da dignidade da pessoa humana, surge o reconhecimento da união estável como entidade familiar:

A Constituição Federal de 1988 “absorveu essa transformação e adotou uma nova ordem de valores, privilegiando a dignidade da pessoa humana, realizando verdadeira revolução no Direito de Família, a partir de três eixos básicos”. Assim, o art. 226 afirma que “a entidade familiar é plural e não mais singular, tendo várias formas de constituição”. (...)[3]

Assim, vale destacar outras duas importantes modificações, qual sejam, a igualdade entre homens e mulheres, conforme preceitua o artigo 5º, inciso I, CF/88 e a afetividade como princípio norteador do direito de família.

Apesar de toda evolução percebida, em dezembro de 2010 foi editada a lei 12.344 que alterou a redação do inciso II do artigo 1.641 do Código Civil, e a partir daí se tornou obrigatório o regime de separação de bens no casamento quando ambas ou uma das partes envolvidas tiver mais de setenta anos.

Neste contexto nota-se um retrocesso no ordenamento jurídico brasileiro, pois ao mesmo tempo em que casais do mesmo sexo e famílias monoparentais passaram a ser reconhecidas, vê-se a imposição de um certo regime nos casos em que o casamento envolva idosos, indo de encontro a liberdade de escolha e autonomia da vontade tão defendida na CF/88, mas precisamente no artigo 5º.

3. OS REGIMES DE BENS NO CÓDIGO CIVIL

Ao longo do tempo, com o reconhecimento da dignidade e direitos da mulher, viu-se a necessidade de legalizar a instituição casamento e desta forma fazer a escolha do regime de bens que guiará esta sociedade conjugal.

O Código Civil de 1916 trazia quatro regimes de bens, quais sejam: o regime dotal, a comunhão parcial de bens, a separação total de bens e a comunhão universal de bens. Sendo que este último considerado o regime de bens oficial, quando o casal não optar por escolher o regime de bens a seguir.

Venosa explica que o regime de bens disciplina as relações econômicas entre marido e mulher, envolvendo propriamente os efeitos dele em relação aos bens conjugais.[4]

Já Gonçalves ensina:

Regime de bens é o conjunto de regras que disciplina as relações econômicas dos cônjuges, quer entre si, quer no tocante a terceiros, durante o casamento. Regula especialmente o domínio e a administração de ambos ou de cada um sobre os bens anteriores e os adquiridos na constância da união conjugal. [5].

Dispõe o Código Civil no artigo 1.639 que “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”.[6]

Entretanto, com o surgimento da Lei do Divórcio, apesar dos contraentes poderem estipular o regime que melhor lhes convir desde que haja um pacto antenupcial lavrado por escritura pública, o regime de bens principal passou a ser o da comunhão parcial de bens.

Sabe-se que os regimes de bens encontram-se dispostos nos artigos 1.658 ao 1.688 do Código Civil Brasileiro, são eles: o regime de comunhão parcial, regime de comunhão universal, regime de participação final nos aquestos e regime de separação de bens.

Por ser considerado como o principal após o advento da Lei do divorcio, o regime da comunhão parcial de bens possui alguns pontos que merecem destaque, como a informação que os bens adquiridos durante o casamento são de ambos os cônjuges, enquanto aqueles adquiridos em data anterior ao casamento pertencem ao cônjuge que o houver adquirido. Assim, vê-se que os bens comuns e comunicáveis, aqueles adquiridos durante a constância do casamento, estão previstos no art. 1.659, I do Código Civil. Já os bens particulares e incomunicáveis, os que cada cônjuge possuía antes do casamento, são estabelecidos conforme o artigo 1.661 do mesmo diploma legal.

Cumpre ressaltar que esse tipo de regime também determina que não se comunicam os bens adquiridos por um dos cônjuges por doação ou sucessão, na comunhão os objetos advindos da sub-rogação dos bens particulares de ambos os cônjuges, bem como as dívidas particulares de cada um deles, exceto as adquiridas em prol do casal.

 No que concerne ao regime de comunhão universal de bens, este dispõe que todos os bens do casal vão se comunicar, independente que quando foram adquiridos. Desta forma, vê-se que na comunhão universal não importa quando os bens foram adquiridos, independente do momento todos os bens iram se comunicar, inclusive os que forem objetos de doação ou sucessão.

Insta salientar que existe uma possibilidade de constar uma cláusula de incompatibilidade, ou seja, uma forma de proteger os bens que foram adquiridos por doação, deste modo, evita que os mesmos sejam incorporados no patrimônio do casal.

O regime de comunhão universal de bens encontra-se amparo legal nos artigos 1.667 a 1.671 do Código Civil Brasileiro, e no que tange à sucessão, observa-se que o cônjuge supérstite não será herdeiro, pois a lei já o declara como meeiro de todo o montante de bens que ambos os cônjuges possuírem no momento da sucessão.

Sobre o regime de participação final nos aquestos, cumpre informar que este encontra-se disciplinado nos artigos 1.672 a 1.686 do Código Civil Brasileiro, e apresenta características semelhantes com o regime de separação total de bens. Nesta modalidade de regime cada cônjuge tem seu próprio patrimônio onde comunicam-se apenas os bens adquiridos pelo casal. Sendo assim, cada cônjuge tem autonomia para administrar seus bens, bem como para responder de forma individual pelas obrigações que sobrevierem.

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A palavra aquestos significa bens adquiridos durante a convivência conjugal, e para optar por esse regime faz-se necessária a celebração do pacto antenupcial. Neste regime haverá uma separação convencional, mas com a dissolução da sociedade conjugal, então será feita a apuração do patrimônio para que a partir daí comuniquem-se os bens adquiridos com recursos financeiros de ambos os cônjuges durante a constância do casamento. Feito isso haverá a partilha ao meio, e, caso não seja possível a divisão dos bens, haverá a compensação financeira correspondente para aquele que opte por não ficar com o bem de acordo com o que está previsto no parágrafo único do artigo 1.685 do Código Civil.

Por fim, tem-se o regime da separação de bens. Tal regime caracteriza-se pela distinção de patrimônio dos cônjuges, pois tanto antes quanto após o casamento cada um deles continua proprietário exclusivo de seus bens particulares. Neste regime os bens jamais se comunicam mesmo os adquiridos durante o casamento, podendo assim, cada cônjuge, fazer o que convier, conforme dispõe o artigo 1.688 do Código Civil.

3.1 REGIME OBRIGATÓRIO DE SEPARAÇÃO DE BENS

 Instituído na Lei 12.344/2010, o regime obrigatório de separação de bens está definido nos artigos 1.641, 1.687 e 1.688 do Código Civil de 2002, e traz como regra geral a incomunicabilidade de todo o patrimônio ativo e passivo do casal adquirido antes e durante a constância do casamento.

 Consta no Código Civil:

Art.1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III – de todos os que dependerem para casar, de suprimento judicial.[7]

 O disposto no inciso II do artigo supra mencionado estabelece que quando pessoas maiores de 70 anos forem casar, esses devem obrigatoriamente adotar o regime de separação obrigatória de bens. Independente se ambos ou apenas um dos nubentes tiver a idade superior a esta informada. Observa-se assim a clara intenção do legislador em proteger a pessoa idosa, haja vista que na maioria dos casos ocorre uma suposta vulnerabilidade.

No entanto, ao obrigar os noivos a optarem por um determinado regime, vê-se que a lei coloca em questionamento a capacidade da pessoa maior de 70 anos ter discernimento nas suas escolhas.

Analisando a letra da lei, bem como os casos recorrentes na sociedade, entende-se que a intenção foi de fato proteger a pessoa idosa de um problema futuro, pois no caso da sucessão, o cônjuge supérstite não concorrerá com os descendentes, porém não havendo descendentes, como nos demais regimes, haverá a concorrência com os ascendentes, e na falta deles o cônjuge supérstite herdará a totalidade dos bens.

Neste diapasão, resta claro que o regime obrigatório da separação de bens é uma autêntica exceção à autonomia da vontade e à livre escolha que permeiam o regime de bens porque se aplicam em situações que a lei impõe o respectivo regime, impedindo a manifestação dos contraentes.

Sabe-se que toda pessoa capaz é livre para fazer suas próprias escolhas, e a fazer vale seus direitos constitucionais, principalmente o direito à liberdade. Deste modo, esta imposição caracteriza as pessoas idosas as quais se refere a lei como incapazes para escolher qual regime deve adotar em seu casamento, o que na maioria das vezes configura discriminação e constrangimento para este cidadão.

Sobre esse tema Dias assevera:

Ao considerar que essa regra do artigo 1.641, II, do Código Civil estabelece restrições na esfera volitiva e patrimonial das pessoas idosas, onde presume a incapacidade dos mesmos, o que gera uma situação discriminatória, e da impressão que existe uma sanção administrativa, principalmente porque a sociedade atual vivencia uma evolução do conceito de família e o aumento da expectativa de vida da população, além da existência do Estatuto do Idoso que atribuí às pessoas a partir dos 70 anos proteção integral de seus direitos, objetivando seu envelhecimento digno. [8]

Ademais, os artigos 3º e 4º do Código Civil já trazem ponderações acerca da incapacidade e em nenhum momento cita os idosos como incapazes, além disso, o artigo 1.513 também do Código Civil, estabelece que não pode haver interferência no casamento por nenhuma entidade pública ou privada.

4. O DIREITO DOS IDOSOS NA ESCOLHA DE REGIME DE BENS

O Estatuto do Idoso, Lei 10.741/03, surgiu em 1º de outubro de 2003, como um importante instrumento de defesa do direitos das pessoas idosas, e dispõe sobre determinações específicas acerca da atuação do Estado e da sociedade.

Anteriormente a isto, a Constituição Federal de 1988 estabeleceram a defesa dos direitos dos idosos, fundamentados no princípio da dignidade da pessoa humana, aduzindo normas específicas de proteção nos artigos 229 e 230, instituindo que é dever da família da sociedade e do Estado amparar e defender sua dignidade. Além disso, previu também que os filhos maiores devem amparar os pais na velhice, na carência e na enfermidade.  

Em resumo, está tutelado na Carta Magna um conjunto de direitos e ações relacionadas ao bem estar das pessoas que estão na chamada “terceira idade”.

Nesta seara, Nalini opina:

Não basta existir o Estatuto do Idoso. É preciso que ele seja cumprido na íntegra. Não basta proclamar hipoteticamente a sabedoria dos velhos. É preciso criar estruturas apropriadas às limitações da idade - especialmente no espaço urbano - para que possamos exercer essa sabedoria. [...] Vivemos em sociedades industriais, caracterizadas por um consumo desvairado, poluídas desde o solo até a camada de ozônio, marcada pelo estresse das formas mais deletérias de sociabilidade, com predominância da competição. Nesse tipo de sociedade nem os jovens adultos conseguem ter saúde.[9]

Assim, é pertinente frisar que os idosos não desejam perder a sua autonomia, pois eles sabem que a vida não está restrita aos jovens, apesar das mudanças e dificuldades encontradas.

O fato de o idoso ser obrigado a aceitar o regime de bens imposto pela lei tendo em vista a idade em que se encontra, faz com que seja necessária uma análise baseada na Constituição Federal, pois é preciso saber até que ponto os princípios constitucionais não estão sendo violados.

O centro da discussão é a garantia da efetivação dos direitos fundamentais como finalidade de manter uma unidade no ordenamento jurídico baseado na dignidade da pessoa humana.

Analisando o que o inciso II do artigo 1.641 do Código Civil traz em sua redação, vê se que a argumentação do legislador se baseia na vulnerabilidade do idoso e na necessidade de proteção, ou seja, para que pessoas mal intencionadas não queiram contrair matrimônio com fins puramente patrimoniais.

Noutra quadra, o Estatuto do Idoso (Lei no 10.741, de 1º de outubro de 2003), em seu artigo 4º assegura: “Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei”.[10]

Diniz explica que:

Não se pode olvidar que o nubente, que sofre tal capitis diminutio imposta pelo Estado, tem maturidade suficiente para tomar uma decisão relativamente aos seus bens e é plenamente capaz de exercer atos na vida civil, logo, parece-nos que, juridicamente, não teria sentido essa restrição legal em função de idade do nubente.[11]

Assim, observa-se que, mesmo bastante contestada por algumas correntes doutrinárias, o referido artigo jamais foi declarado inconstitucional. Deste modo, tem-se que, em que pese a postura oposta aos princípios norteadores estabelecidos na Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade, a lei continua sendo cumprida, e o artigo continua sendo seguido à risca.

5. O REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS NO CASAMENTO DOS MAIORES DE 70 ANOS

O artigo 1º da Lei nº 10.741/2003, define o idoso como sendo as pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos. Ter essa idade não significa ser dependente ou se anular, pois a vida não está restrita a juventude, e sim composta de vários ciclos e fases. Todas as fases da vida são importantes e trazem modificações que devem ser respeitadas.

Conforme preceitua Lôbo (2009, p.302), querer impor e obrigar à pessoa idosa que somente case com determinado regime de bens, confronta o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana “por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-lo à tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz.”. [12]

Neste contexto, percebe-se que, à medida que o artigo 1641, II do Código Civil retira dos idosos com mais de setenta anos a possibilidade de decidir questões patrimoniais referentes ao seu casamento, entra em choque com o postulado da dignidade humana estabelecida no texto constitucional.

Insta salientar que a Carta Magna proíbe a discriminação em razão da idade e assegura proteção total e especial ao idoso, até porque idade não é causa natural de incapacidade civil, e, portanto não há justificativa para a limitação da capacidade de qualquer indivíduo.

Sarlet comenta que:

Cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda.[13]

Sabe-se que algumas pessoas da terceira idade não apresentam discernimento para expressar sua capacidade civil de modo pleno, porém para ter a certeza disso é preciso vários exames e depois deve-se passar por processo para tomada de decisão apoiada e, em casos severos e devidamente comprovada a necessidade, processo de interdição judicial, para que a partir daí possa restar configurada a incapacidade do indivíduo.

No que tange ao casamento em que um ou ambos os conjugues são idosos, percebe-se que a aplicação do artigo 1.641, II do Código Civil, onde não é possível a comunicação dos bens, pois determina a aplicação da separação obrigatória do patrimônio, traz um sentimento de injustiça por achar que alguém está pensando no enriquecimento ilícito.

Esta situação fez com que o Supremo Tribunal Federal editasse em 1964 a Súmula nº 377 que assim dispôs: “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.[14] Desta forma, restou alterado o regime imposto legalmente, pois passou a permitir a comunicação dos bens adquiridos durante a constância do casamento, assim, em outras palavras, tornou o regime da separação total de bens em regime da comunhão parcial de bens.

Analisando o texto da súmula citada acima, é nítido que os ministros do STF visaram garantir o direito de escolha do cidadão idoso já que uma pessoa com mais de setenta anos não pode ser tratada como insana ou incapaz se de fato não tiver algum problema que comprove, não havendo motivo algum para sua inaplicabilidade.

Essa discussão é recorrente no âmbito jurídico, haja vista que alguns doutrinadores afirmam que a súmula 377 estimula o enriquecimento ilícito, já que se mostra contrária o Código Civil e impõe a divisão dos bens adquiridos durante o casamento.

Outros doutrinadores acreditam que a súmula só pode ser aplicada se restar comprovado o esforço de ambos os cônjuges para a aquisição dos bens. Neste liame a partilha seria justa, mesmo no regime da separação de bens, quando houvesse a dissolução do casamento ou falecimento do cônjuge.

Assim, observa-se que com o advento do Código Civil de 2002, a aplicação da Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal passou a ser muito questionada, pois naquela época as normas eram mais rígidas e não existiam diálogos e discussões sobre temas no tocante à modelos de família, até porque não existia se quer a Lei do Divórcio.

Sobre esse tema Bonilha Filho explica:

Para o STJ, a Súmula 377/STF, isoladamente, não confere ao cônjuge o direito à meação dos bens adquiridos durante o casamento sem que seja demonstrado o esforço comum. A nova interpretação se consolida no fato de que o esforço comum antes presumido agora deverá ser necessariamente provado, pois aquele que alega haver contribuído para a aquisição do patrimônio deverá fazer comprovação de tal fato. A contribuição não necessita ser material, devendo ficar apenas demonstrado pela análise do caso concreto o auxílio que pode estar justificado até mesmo na comunhão plena de vida existente entre os cônjuges, tornando-se, assim, fundamento bastante para a comunicação, com fulcro em contribuição imaterial.[15]

Maia Júnior ainda vai mais longe em suas considerações e aponta que a Constituição Federal assegura ao maior de setenta anos a possibilidade de exercer qualquer profissão, de ser Ministro, Deputado, Senador, Vice-Presidente da República, Presidente da República, mas não lhe permite o direito de escolher o regime de bens de casamento.[16]

Tartuce expõe sua opinião para se considerar inconstitucional o artigo 1.641, II do Código Civil:

A primeira justificativa é que a norma discrimina o idoso, afrontando o artigo 5º da Constituição Federal. A segunda razão é que atenta contra a liberdade do indivíduo, fundada na sua dignidade humana (art. 1º, inc. III, da CF/88). A terceira é o desprezo ao afeto, fundado no princípio da solidariedade social e familiar (art. 3º, inc. I, da CF/88). A quarta justificativa é de que a norma protege excessivamente os herdeiros, sendo pertinente citar o dito popular que aduz: filho bom não precisa, filho ruim não merece. A quinta, e última, está relacionada à conclusão de que não se pode presumir a incapacidade de escolha de pessoa que tem mais do que essa idade.[17]

Assim, pelo prisma do doutrinador supracitado, resta claro que a obrigatoriedade do regime da separação de bens para as pessoas maiores de setenta anos pode ser considerada inconstitucional, cabendo assim afirmar que a Constituição Federal assegura direitos de foro íntimo que merecem ser garantidos. Impondo o regime de separação de bens aos idosos viola-se a autonomia da vontade, pois a pessoa idosa não pode optar pelo regime de bens que lhe é conveniente, mesmo sendo plenamente capaz para os atos da vida civel.

Nesta seara, vale ressaltar que o Código Civil traz em seu artigo 1.513, que: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”.[18] Por conta disso, afirma-se que houve um equívoco por parte do legislador quando deixou de observar o que diz a norma, já que o casamento preza pela vida em família, e neste caso o Estado intervém de forma arbitrária e estabelece um regime de bens que talvez não seja satisfatório para os cônjuges.

O Estatuto do Idoso, no seu artigo 2º, caput, dispõe que:

Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando--lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.[19]

Deste modo, percebe-se que os direitos dos idosos estão protegidos pela lei de forma clara, inclusive impondo sanções para quem descumpri-las. Entretanto, destaca-se que o ordenamento jurídico, ao dispor do artigo 1.641 do Código Civil deixou de observar o lado positivo dos septuagenários, especialmente no que se refere a sua experiência de vida e se deteve em olhar apenas para a vulnerabilidade proveniente da idade avançada.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As questões relativas à imposição ao regime de bens para pessoas maiores de setenta anos aqui elencadas basearam-se na necessidade de garantir o efetivo direito de escolha aos atingidos por tal lei.

Percebe-se que, a intenção do legislador, no que concerne à obrigação do regime de separação de bens para os maiores de setenta anos baseia-se no discurso de proteção ao idoso contra um possível interesse econômico de pessoas que busquem contrair núpcias a fim de auferir vantagens.

Entretanto, questiona-se até que ponto tal fundamento protege sem prejudicar, haja vista que apesar da preocupação com o lado patrimonial, deixou-se de lado a questão afetiva do idoso. Esta conduta acaba impossibilitando-o de vivenciar suas escolhas de vida, impedindo-o que possa escolher seu próprio regime de bens.

Neste diapasão, vê-se que a obrigatoriedade deste regime de casamento, afronta diretamente os princípios constitucionais, limitando a autonomia do indivíduo e principalmente ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana que dispõe que não deve haver nenhum tipo de distinção entre as pessoas.

Sabe-se que a Constituição Federal, em seu art. 5º, veda qualquer tipo de discriminação, seja por raça, sexo, cor e idade, enquanto o Estatuto do Idoso traz, além de instrumentos de proteção aos direitos dos idosos, diretrizes para a orientação da atividade do Estado, objetivando a implantação da política de atendimento ao idoso.

Ademais, o Direito Civil e as demais searas do Direito devem ser interpretados conforme a Constituição Federal de 1988, já que esta é o fundamento de validade de toda a ordem jurídica. Assim, uma lei que apresente divergências em relação à Constituição Federal não possui força obrigatória.

Tal exigência demonstra que existe uma discriminação instigada tão somente pela idade, mas, deve-se levar em consideração o que preceitua a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal para que com isso não haja uma diminuição na liberdade dos idosos.

Diante do exposto, importante salientar que o inciso II do art. 1.641 do Código Civil possui alguns vícios de inconstitucionalidade, e não reflete a atual realidade do Direito de Família. Acredita-se, contudo, que as reflexões aqui trazidas irão colaborar com a elucidação do tema, uma vez que este se mostrou um tanto quanto incompatível com a ordem jurídica vigente, bem como com o momento atual vivido pelas pessoas maiores de 70 anos.

7. REFERÊNCIAS

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Acesso em: 06 de maio de 2020.

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STF - Supremo Tribunal Federal. Súmula 377. Disponível em: www.stf.jus.br Acesso em 02 de julho 2020.

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TARTUCE, Flávio. Direito Civil 5 Direito de Família. São Paulo: 10ª edição. ed. Método, 2015.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil Interpretado. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2018.

NOTAS:

[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12. ed. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de família. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. Volume 6.

[4] VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2018.

[5] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de família. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. Volume 6.

[6] BRASIL. [Código Civil 2002]. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[7] BRASIL. [Código Civil 2002]. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[8] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12. ed. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

[9] NALINI, José Renato. A dignidade do idoso no Brasil. In.: Direito e dignidade da família. Do começo ao fim da vida. Org. Antônio Jorge Pereira Júnior...[et al.]. São Paulo: Almedina, 2012.

[10] Lei 10.741/03 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm Acesso em 30 junho 2020.

[11] DINIZ, Fernanda Paula. Direitos dos idosos na perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011.

[12] LÔBO, Paulo. Direito Civil – famílias. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

[13] SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 10ª Ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2015.

[14] STF - Supremo Tribunal Federal. Súmula 377. Disponível em: www.stf.jus.br

[15] BONILHA FILHO, Márcio Martins. O afastamento da aplicação da súmula 377, do STF para os casamentos a serem realizados com a imposição do regime de separação obrigatória de bens. 2020. Artigo. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1424/

[16] MAIA JÚNIOR, Mairan Gonçalves. O regime da comunhão parcial de bens no casamento e na união estável. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

[17] TARTUCE, Flávio. Direito Civil 5 - Direito de Família. São Paulo: 10ª edição. ed. Método, 2015.

[18] BRASIL. [Código Civil 2002]. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[19] Lei 10.741/03 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm Acesso em 30 junho 2020.

Sobre o autor
Luis Alberto Marques Pinheiro

Advogado, Pesquisador, Bacharel em Direito. Atualmente pós graduando em: Direito tributário e constitucional pela (UNIFACS), Direito processual Civil e Resoluções de conflitos também pela (UNIFACS) e Direito previdenciário e do Trabalho pela Faculdade Sao Salvador

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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