O objetivo deste artigo é propor debate sobre a atualização trazida pelo Decreto Federal 10.173/2019, que alterou aos parágrafos 1º e 2º do artigo 40 do Decreto nº 1.800/1996, que regulamenta a Lei 8.934/94.
O Decreto em questão deu nova redação aos parágrafos, os quais iremos comparar à frente com a redação antiga apontando as principais diferenças.
Preliminarmente, contudo, vale trazer à baila, de forma resumida, os conceitos dos seguintes institutos jurídicos: sustação, cancelamento e desarquivamento.
Os três institutos geram consequências bastante diferentes no mundo jurídico. A sustação enseja a suspensão dos efeitos do ato desde o momento da sua decretação até decisão em definitivo sobre a matéria. A sustação é, portanto, precária.
Importante destacar que a sustação opera efeitos ex nunc, ou seja, conserva todos os efeitos passados.
Já o cancelamento, que somente podia ser decretado após decisão judicial, é ato mais gravoso e pode operar efeitos ex tunc, ou seja, anula todos os efeitos do ato desde o seu nascimento.
É verdade que a doutrina comercialista, em função da segurança jurídica dos atos societários, tem posições específicas sobre os efeitos ex tunc do cancelamento, no entanto, essa é uma discussão que me parece ultrapassada diante da nova redação do dispositivo.
Por fim, o desarquivamento enseja o desentranhamento do ato do prontuário físico da empresa. Mais do que o cancelamento, o desarquivamento faz com que o ato passe a não mais existir no mundo jurídico, implicando, por exemplo, para efeitos operacionais, a impossibilidade de expedição de certidão daquele ato.
Estabelecidas essas diferenças passamos à análise dos textos do Decreto.
Redação antiga:
§ 1º Verificada, a qualquer tempo, a falsificação em instrumento ou documento público ou particular, o órgão do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins dará conhecimento do fato à autoridade competente, para as providências legais cabíveis, sustando-se os efeitos do ato na esfera administrativa, até que seja resolvido o incidente de falsidade documental.
§ 2º Comprovada, a qualquer tempo, falsificação em instrumento ou documento arquivado na Junta Comercial, por iniciativa de parte ou de terceiro interessado, em petição instruída com a decisão judicial pertinente, o arquivamento do ato será cancelado administrativamente.
Do texto antigo podemos extrair que verificada a falsificação em ato arquivado a Junta Comercial sustará os seus efeitos até solução do incidente, ou seja, até a decretação em definitivo da falsidade; que, pelo parágrafo 2º, somente pode ser decretada pelo Poder Judiciário. Nesse caso teríamos a comprovação da falsidade.
Portanto, decretada em definitivo a falsidade e, trazida a sentença à Junta Comercial, será tomada nova providência administrativa, chamada de cancelamento.
Dos termos utilizados nos parágrafos do artigo 40 do Decreto a palavra “Verificada” poderia trazer dúvidas quanto à sua interpretação.
Nessa lacuna, algumas Juntas editaram ato normativo estabelecendo necessária a apresentação de Boletim de Ocorrência e Laudo Pericial.
Da nova redação extraímos diferenças que impactam diretamente no fluxo que se deve percorrer até a sustação dos efeitos do ato e, agora, o seu desarquivamento.
Redação Nova:
§ 2º Quando houver indícios substanciais da falsificação, o Presidente da Junta Comercial deverá suspender os efeitos do ato até a comprovação da veracidade da assinatura. (Redação dada pelo Decreto nº 10.173, de 2019)
§ 1º Sempre que for devidamente comprovada a falsificação da assinatura constante de ato arquivado, o Presidente da Junta Comercial deverá, após intimação dos interessados, garantidos a ampla defesa e o contraditório aos envolvidos, desarquivar o ato viciado e comunicar o fato à Polícia Civil, ao Ministério Público e às autoridades fazendárias, para que sejam tomadas as medidas cabíveis. (Redação dada pelo Decreto nº 10.173, de 2019)
O parágrafo 2º determina que havendo indícios substanciais da falsificação o Presidente deverá suspender os efeitos do ato, até que seja comprovada a veracidade da assinatura.
Portanto, cotejando esse parágrafo com o 1º da redação antiga conseguimos perceber que o regulamento optou por conceder mais poder decisório aos Presidentes das Juntas Comerciais.
Agora, não é mais necessário que a falsidade seja verificada; mas sim, que sejam identificados indícios substanciais.
O termo “indícios substanciais” é subjetivo justamente para trazer maior poder de decisão ao agente público.
Todavia, considerados substanciais os indícios o texto impõe ao Presidente, a obrigação de sustar. Neste momento estamos diante de um ato vinculado, onde não cabe discricionariedade do agente público.
Outro ponto menos evidente é o fato de que a nova redação, ao mencionar que deverá ser comprovada veracidade da assinatura, traz novo efeito para a sustação do ato, pois o mesmo deixa de gozar de presunção de veracidade, na medida em que é o que agora se pretende provar.
É no parágrafo 1º que encontramos a maior diferença entre as redações, uma vez que além de trazer o instituto jurídico do desarquivamento, também desobriga a necessidade de decisão judicial para o reconhecimento em definitivo da falsidade da assinatura.
O novo texto orienta que sempre que a falsidade for devidamente comprovada – inferindo-se que mesmo que não por decisão judicial – o Presidente deverá, desarquivar o ato viciado. Mais uma vez estamos diante de ato vinculado a ser perpetrado pelo Presidente, quando comprovada a falsidade.
Ao retirar a exigência de decisão do Poder Judiciário o texto vai ao encontro da atual gestão federal que tem visado a desburocratização do serviço público.
Vale ressaltar que a permissão legal para os Presidentes das Juntas desarquivarem o ato ex officio ou mesmo após provocação de interessados vem prestigiar o princípio da autotutela inerente à Administração Pública, o qual é conceituado pela doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro como:
Enquanto pela tutela a Administração exerce controle sobre outra pessoa jurídica por ela mesma instituída, pela autotutela o controle se exerce sobre os próprios atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos, independentemente de recurso ao Poder Judiciário. É uma decorrência do princípio da legalidade; se a Administração Pública está sujeita à lei; cabe-lhe, evidentemente, o controle da legalidade.
Nesse mesmo sentido temos, por meio de súmulas, manifestação do Supremo Tribunal Federal.
Súmula 473
A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Súmula 346
A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
Finalmente, a nosso ver o entendimento da doutrinadora e as súmulas vem corroborar que a atualização legislativa implementada pelo Decreto 10.173/2019 quis que o desarquivamento de ato pelos Presidentes das Juntas Comerciais, após comprovada a falsidade, prescinda de decisão judicial nesse sentido. Ademais, diante das súmulas supra mencionadas, não vislumbramos qualquer ilegalidade na nova redação.