1 INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como enfoque voltar o olhar para as hipóteses reconhecidas como legais no tocante a obtenção de provas oriundas da interceptação telefônica, admitidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, considerando as questões que causam discussões na jurisprudência e na doutrina.
Nesse sentido, a relevância desta temática se justifica na importância da garantia ao cumprimento da lei, ao mesmo tempo em que há a preocupação com a proteção da intimidade e privacidade, de modo que haja um devido equilíbrio entre esses institutos, sem que surja uma prova que possa contaminar toda uma instrução processual, por estar revestida de ilegalidades ou ilegitimidade.
Assim, este trabalho contribui para elucidar as hipóteses reconhecidas pelas fontes do direito como legais para a obtenção de prova, por meio da interceptação telefônica, quer seja pelas prerrogativas conferidas pela Lei de Interceptação Telefônica ou pelos julgados dos órgãos superiores sobre esse assunto e posicionamentos sustentados pela doutrina.
Diante disso, o objetivo geral desse estudo buscou compreender as hipóteses de legalidade das provas obtidas por meio da interceptação telefônica, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro. Os objetivos específicos visaram discorrer sobre as provas no processo penal, bem como conceituar/caracterizar a interceptação telefônica e estudar as hipóteses de legalidade e legitimidade da interceptação telefônica no Brasil.
Assim, a metodologia escolhida consistiu em uma pesquisa bibliográfica, a partir da revisão da literatura disponível, em livros, artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o tema. Além disso, tem um caráter exploratório, pois foram realizadas buscas na jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal).
Por fim, quanto a estrutura deste trabalho, o mesmo se dividiu em três tópicos, sendo que no primeiro foi realizada uma abordagem sobre os principais aspectos concernentes às provas no processo penal. Em seguida, no segundo tópico, o enfoque se deu para a conceituação e caracterização da interceptação telefônica, trazendo a sua história e diferenciado-a dos demais termos que comumente geram confusões. Por último, o tópico final trouxe as hipóteses de legalidade e legitimidade da interceptação telefônica no ordenamento jurídico brasileiro.
2 AS PROVAS NO PROCESSO PENAL
O sistema penal é algo que há milhares de anos permeia a humanidade, em que nas diferentes épocas foi revestido de características próprias para evitar que se instalasse o caos na sociedade. Por exemplo, durante a idade média, a pessoa que era acusada de um delito tinha que superar uma prova física para provar a sua inocência, o que era conhecido como ordalio - julgamento de Deus/deuses.
Nesse sentido, se observa que a perspectiva ao entorno de uma prova mística perdurou por muito tempo, inclusive marcando a história com severas penas que foram impostas e métodos de tortura para a obtenção de uma confissão que provasse a violação da lei na época, completamente injustas e cruéis. Foi somente a partir do século XVII, por meio do Racionalismo, que foi superada essa abordagem mística das provas e passou a ser adotada uma análise racional, que permitia o contraditório e a formação da convicção do juiz por meio de um processo lógico (GUSMÃO, 2007).
Sobre esses sistemas que regem o processo penal, é necessário esclarecer que há basicamente na doutrina três, são eles: inquisitivo, acusatório e o misto. O sistema inquisitivo é aquele em que não há contraditório e nem ampla defesa, o processo é sigiloso e não há repartição de competências, ou seja, em uma mesma pessoa (inquisidor) se concentra a atribuição para acusar, defender e julgar determinada pessoa (AVENA, 2017).
Esse sistema perdeu força, a partir do Iluminismo, em que passou a imperar o sistema acusatório, que é o entendido pela maior parte da doutrina como o que foi acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro, tendo como características a possibilidade de contraditório e ampla defesa e separação de atribuições, dependendo de um impulso oficial, para o órgão julgador se manifestar (CAPEZ, 2018).
Por fim, o sistema misto seria a junção desses dois modelos sistêmicos já citados. Defendido, principalmente por Nucci (2015), seria o sistema adotado pelo Brasil, pois a fase de investigação criminal, não depende do contraditório, caracterizando o sistema inquisitivo, bem como a fase da persecução penal tendo traços do sistema acusatório. Porém, esse posicionamento do autor é minoritário, prevalecendo o sistema acusatório como predominante, sendo que o estudo se desenvolverá a partir desse modelo sistêmico.
Compreendida essa contextualização, é importante ressaltar o que realmente significa a prova, para isso atenta-se à etimologia desta palavra. Consoante Cagliari (2001, p.78) a palavra prova tem suas raízes no termo latino probatio, o qual: “emana do verbo probare, com o significado de demonstrar, reconhecer, formar juízo de”.
Corroborando com essa definição, ressalta-se os dizeres de Lima (2016, p. 792) ao definir que prova consiste “no conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade dos fatos relevantes para o julgamento”.
Frente ao exposto, é possível extrair que a prova consiste em um instrumento de efetivação do direito penal, ou seja, é por meio dela que irá ser estabelecido o juízo de cognição em face de determinada infração penal, que será um fator determinante para reconhecer a culpabilidade de uma pessoa. Assim, esse instrumento se concentra em uma perspectiva de busca pela verdade real, o que é imprescindível quando se está diante do direito penal, tendo em vista que vários direitos fundamentais estão inseridos, não apenas o direito à liberdade, como também direitos sociais que podem ser restringidos diante de uma eventual condenação, entre outros que podem ser afetados.
Convém destacar, ainda, que a Teoria Geral da Prova está regulamentada pelo título VII, do Código de Processo Penal brasileiro, a partir de seu artigo 155, ao estabelecer que o magistrado “formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” (BRASIL, 1941).
Deste dispositivo, é possível tecer algumas considerações, entre elas o fato de a legislação adotar o sistema do livre convencimento motivado da prova, também denominado de “persuasão racional”, “convencimento racional” ou “apreciação fundamentada” (NUCCI, 2015). Esse sistema prevê que o magistrado deverá valorar a prova produzida nos autos, da forma que entender ser mais conveniente, analisando os fatos em concreto, não estando obrigado a conferir um peso diferenciado a qualquer que seja o meio probatório.
De igual maneira, em regra, é imprescindível que as provas tenham sido produzidas em âmbito judicial, conferida a oportunidade de contraditório, em que o juiz não poderá formular essa decisão se baseando apenas peças colhidas durante investigação. A exceção, fica por conta das provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, ou seja, aquelas que exauriram seu objeto e não podem mais ser colhidas no âmbito judicial, em que o exemplo trazido pela doutrina se dá nos casos em que a testemunha está prestes a morrer e é colhido seu depoimento.
Por outro lado, dois sistemas adotados excepcionalmente no Brasil, se contrapõe ao livre convencimento motivado, são eles: Sistema da Prova Tarifada (ou certeza moral do legislador, sistema das regras legais ou da prova legal); Sistema da íntima convicção (ou certeza moral do Juiz).
O primeiro corresponde às provas que a própria lei confere um peso diferenciado, por exemplo a certidão de óbito extinguir a punibilidade pela morte do agente. Enquanto o segundo, versa sobre os casos em que é prescindível a fundamentação por parte do julgador, o qual se baseia simplesmente em sua certeza moral, é o modelo aplicado nos casos do Tribunal do Júri, em que os jurados adotam seu próprio sentimento de justiça, respeitando-se a soberania dos veredictos (PACELLI, 2018).
Alguns fatos não precisam de prova, são eles, de acordo com Nucci (2015): a) fatos evidentes (ou axiomáticas/intuitivos): são aqueles que decorrem do raciocínio lógico da conclusão de outro fato; b) fatos notórios: correspondem ao conhecimento do senso comum, de todas as pessoas; c) presunções legais: diz respeito aos fatos que a legislação presume como tenham ocorrido; d) fatos inúteis: são aqueles que não tem relevância para a causa, tendo dispensabilidade.
Sob esse enfoque, observada a importância da prova nesse contexto, convém voltar o olhar para os princípios que regem as provas no processo penal, dentre vários que podem ser citados, existe: contraditório, oralidade, comunhão das provas, não autoincriminação e vedação às provas obtidas por meio ilícito.
Quanto ao princípio do contraditório, de acordo com Avena (2017, p.428), corresponde à possibilidade que toda prova que for produzida por uma parte processual, pode ter produção de contraprova pela outra parte: “O contraditório consubstancia-se na expressão audiatur et altera parte (ouça-se também a parte contrária), o que importa em conferir ao processo uma estrutura dialética”.
Ademais, no que concerne ao princípio da comunhão, corresponde ao fato de que uma vez que a prova é produzida nos autos, ela integra o processo em geral, sendo que a parte que a juntou não pode mais se desfazer dela, sem que haja a anuência da parte contrária, em regra. Já no que se relaciona ao princípio da oralidade, diz respeito à possibilidade de se produzir as provas faladas, na presença de um juiz. Tal princípio, se subdivide subprincípio da concentração (provas produzidas em uma única audiência), imediação (garantir que o magistrado tenha contato físico com as provas) (AVENA, 2017).
Seguindo, no tocante ao princípio da não autoincriminação, verifica-se que possui suas origens no brocardo em latim nemo tenetur se detegere, o que segundo Bonfim (2017, p. 436):
É princípio consubstanciado no brocardo latino nemo tenetur se detegere. O acusado não pode ser obrigado a produzir provas contra sim mesmo. Esse princípio é fundamento para o direito constitucional ao silêncio, que tem por conteúdo a não obrigatoriedade de que o investigado, em inquérito policial, ou o réu, no caso do processo penal, responda às questões que lhes sã dirigidas por ocasião da sua oitiva. Também se funda nesse princípio a não obrigatoriedade de que o investigado ou réu colabora na produção de qualquer prova em favor da sua incriminação. É importante ressaltar que o silêncio ou a não colaboração, conforme o caso, não podem ser interpretados contrariamente à defesa, não servindo de prova contra o acusado.
Por fim, quanto ao princípio da vedação das provas obtidas por meios ilícitos, corresponde a impossibilidade de se juntar aos autos qualquer forma de prova que afronte o ordenamento jurídico, bem como não adote as devidas formalidades processuais devidas. Tal vedação encontra respaldo no art. 5º, LVI, da Constituição Federal.
Nesse sentido, a prova ilegal corresponde a um gênero, que comporta as seguintes espécies:
provas ilícitas por violação direta ou indireta da Constituição Federal; as provas ilícitas por derivação, que correspondem a provas que, conquanto lícitas na própria essência, se tornam viciadas por terem decorrido de uma prova ilícita anterior ou a partir de uma situação de ilegalidade; e, por fim, as provas ilegítimas, assim entendidas as provas obtidas ou produzidas com ofensa a disposições legais, sem nenhum reflexo em nível constitucional (AVENA, 2017, 444).
Sobre isso, Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2000) esclarecem que prova ilícita consiste em:
Por prova ilicita, em sentido estrito, indicaremos, portanto, a prova colhida infringindo-se normas ou princípios colocados pela Constituição e pelas leis, frequentemente para a proteção das liberdades públicas e dos direitos da personalidade e daquela sua manifestação que é o direito à intimidade. Constituem, assim, ilícitas as obtidas com violação do domicílio (art. 5º, XI, CF) ou das comunicações (art. 5º, XII, CF); as conseguidas mediante tortura ou maus tratos (Art. 5º, III, CF; as colhidas com infringência à intimidade (Art. 5º, X, CF), etc.
Nesse analise acerca da ilicitude de algumas provas, existe a perspectiva da prova ilícita por derivação, em que se aplica a chamada The fruits of the poisonous free ou, como foi internizada no ordenamento jurídico brasileiro, a Teoria dos Frutos da árvore envenenada, a qual tem sua origem no direito norte americano, que consiste no fato de que as provas obtidas por meio de uma prova preexistente, considerada como ilícita, devem ser retiradas do processo.
De acordo com Greco Filho (2015, p.49):
[...] a prova pode ser ilícita em três situações: em virtude da ilicitude do próprio meio, se este não é consentâneo com a cultura do processo moderno, que exige racionalidade e respeito à integridade da pessoa humana; em virtude da imoralidade ou possibilidade de sua produção; e em virtude da ilicitude de sua origem.
Sob essa perspectiva, observa-se que há uma ideia de que a prova obtida por meio ilícito contamina as demais provas que possam surgir, se derivadas desse meio. O que se verifica como uma consequência lógica da inadimissibilidade desse tipo de prova na persecução penal. O artigo 157, do Código de Processo Penal veda expressamente esse tipo de prova e determina seu desentramento dos autos, in verbis:
Art. 157. São inadimissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
§1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras (BRASIL, 1941).
Sobre as provas ilícitas por derivação, convém esclarecer que surgiu por parte da doutrina e da jurisprudência a teoria que ficou conhecida como Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, que possui suas raízes no direito norte-americano (fruits of the poisonous tree), a qual corresponde àquelas provas em si mesmas lícitas, mas que são geradas a partir de uma outra anterior que foi obtida por meio ilegal (CAPEZ, 2018).
Vários são os exemplos de provas colhidas por meios ilícitos que podem gerar provas derivadas que também deverão serem retiradas do processo, como é o caso da confissão mediante tortura, que permite ter conhecimento de outros coautores ou partícipes, bem como as provas resultantes de interceptação telefônica ilegal, entre outros exemplos que podem ocorrer.
Desta forma, observa-se que essa questão deve ser analisada com muita cautela pelos operadores do direito, tendo em vista que um vício como esse pode interferir significativamente no processo, inclusive gerando a nulidade de vários atos. Logo, tal assunto traz um gancho para o instituto da interceptação telefônica, visto que muitas outras provas podem ser obtidas por meio desse recurso, conforme acima exemplificado.
Por último, convém trazer algumas considerações quantos aos meios de prova considerados. O primeiro meio admitido é o previsto no artigo 158, do Código de Processo Penal, que corresponde ao Exame de Corpo de Delito, pode ser entendido como a prova da existência da materialidade do delito. Assim, Nucci (2015, p.377) esclarece que: “O exame de corpo de delito é a verificação da prova da existência do crime, feita por peritos, diretamente, ou por intermédio de outras evidências, quando os vestígios, ainda que materiais, desapareceram”.
Além disso, outro meio, consoante Bonfim (2017), é o interrogatório do acusado, que deve ser conduzido pelo magistrado, que realiza perguntas para o réu sobre os fatos que lhe estão sendo imputados, permitindo que ele possa dar a sua versão ou se defender das acusações, é nesse momento que mais se evidencia o contraditório e a ampla defesa, bem como o direito ao silêncio, que não pode ser usado como prova em malefício do acusado.
Já a confissão do acusado é a exteriorização da sua culpa, por intermédio de uma declaração voluntária, que se configura:
É a aceitação pelo réu da acusação que lhe é dirigida em um processo penal. É a declaração voluntária, feita por um imputável, a respeito de fato pessoal e próprio, desfavorável e suscetível de renúncia. Quanto aos fatores determinantes, destacam-se o remorso, a possibilidade de abrandar o castigo, a religião, a vaidade, a obtenção de certa vantagem, o altruísmo (representado pelo amor fraterno, paterno etc), o medo físico, o prazer da recordação, etc (CAPEZ, 2018, p. 468).
De igual forma, outras provas que podem surgir são por intermédio da oitiva do ofendido, que permite ao juiz ter o contato efetivo com quem de fato sofreu as consequências do crime, possibilitando o alcance da sua extensão, bem como a prova testemunhal que serve para a elucidação dos casos, a partir do testemunho de terceiros que prestam compromisso. Outros exemplos também, é o reconhecimento de pessoas ou coisas, acareação e a apresentação de documentos.
Ademais, trata-se de um rol exemplificativo, pois além dessas provas nominadas, podem existir outros meios que são lícitos e contribuem para o deslinde do feito, como exemplo aponta-se, as filmagens, arquivos de vídeo ou áudio, entre outros mecanismos que podem surgir (REIS; GONÇALVES, 2016).
Desta forma, vários são os pontos relevantes sobre a teoria geral das provas que se merece destaque. A seguir, o estudo se concentrará na interceptação telefônica como prova em espécie, de modo a contextualiza-la e elencar a legalidade dessa medida em diversas situações, bem como outros pontos debatidos pela doutrina.
3 A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA
Nesse tópico, será feita uma breve consideração sobre a história da interceptação telefônica na legislação brasileira e, a seguir, diferenciado os termos que aparentemente são semelhantes, mas que guardam contrastes entre si, caracterizando-os e conceituando a interceptação telefônica.
3.1 Breves considerações históricas sobre a interceptação telefônica
A primeira Constituição Federal brasileira que expressamente tratou sobre o sigilo das comunicações telefônicas, foi a de 1967, que previa a inviolabilidade da correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas.
Porém, a Lei Maior que entrara em vigor, deixou de observar que desde o ano de 1962, consoante Greco Filho (2015), havia norma infraconstitucional sobre o tema, meio da Lei n. 4.117, conhecida como Código Brasileiro de Telecomunicações, surgindo, assim, uma antinomia com o texto constitucional.
Essa lei, excepcionava a interceptação telefônica em alguns casos, contrariando a absoluta inviolabilidade prevista na Constituição Federal de 1967, conforme:
art. 57. Não constitui violação de telecomunicação:
I.- A recepção de telecomunicação dirigida por quem diretamente ou como cooperação esteja legalmente autorizado;
II - O conhecimento dado:
(...)
e) ao juiz compentente, mediante requisição ou intimação deste (BRASIL, 1962).
Do exposto, observa-se que havia um conflito, eis que o texto constitucional estabelecia a inviolabilidade, dando a ideia de um direito absoluto, enquanto uma norma infraconstitucional previa uma mitigação. Logo, considerando as duas normas, havia discussões sobre a possibilidade ou não da interceptação telefônica, prevalecendo a relatividade da norma constitucional para admitir tais hipóteses. Assim, o instituto era permitido desde que atendesse aos requisitos previstos na lei infraconstitucional Considerando, entre outras hipóteses como ilegal e indevida a divulgação, transmissão ou utilização abusiva de comunicação telegráfica ou radioelétrica para terceiro ou conversação telefônica entre duas pessoas.
Essa sensação de instabilidade permaneceu até o advento da Constituição Federal de 1988, a qual inseriu no texto legal concernente à interceptação, assegurando as hipóteses e na forma que a lei estabelecer. Assim, diferentemente do que ocorria na constituição anterior, essa inovação legislativa trouxe a ideia de que esse direito à inviolabilidade do sigilo é relativo, os quais podem ser excepcionados, por meio de ordem judicial e com fim de investigação criminal ou instrução processual.
Sobre isso, Gomes (1997) pontuou que:
Na vigência do direito anterior a 1988, o art. 153, §9º, não previa (aparentemente) nenhuma exceção ao sigilo das comunicações telefônicas. Não fazia, em suam, nenhuma exigência de “reserva de lei”. Mas como existem os limites imanentes, entendia-se que a interceptação com autorização judicial nos termos do Código Brasileiro das Telecomunicações (art. 57), era válida. Agora na CF de 1988, há expressa exigência de reserva legal. Mais precisamente, nela está contemplada uma reserva legal qualificada: logo, sem lei, a interceptação telefônica constitui prova ilícita inadmissível.
Desta forma, ainda em 1988, na vigência da atual Constituição Federal, se assegurasse o sigilo das telecomunicações, o texto constitucional trouxe uma reserva legal, ao dispor que as comunicações telefônicas podem ser concedidas por ordem judicial, contudo deveria seguir o que determinada lei sobre esse assunto estabelecesse para determinar como deveria ser feita, desde que atendesse aos fins de investigação criminal ou instrução processual penal (BRASIL, 1988).
Assim, o Supremo Tribunal Federal proferiu a decisão no HC 73.351-4/SP em 09 de maio de 1996, entendendo que o artigo 57, do Código Brasileiro de Telecomunicações não havia sido recepcionado pela nova Constituição Federal, devendo ser editada lei específica para dar eficácia a essa norma (GRECO FILHO, 2015).
Logo, os processos investigados na vigência da CF/88, com a utilização da interceptação telefônica baseada no artigo 57, da Lei n. 4.117, passaram a ser considerados como nulos, tendo em vista que sem a vigência de lei específica, o dispositivo constitucional era interpretado de forma contida.
Por fim, a regulamentação ordinária veio por meio da lei 9296/96, de 24 de julho de 1996, que regulamentou a parte final, do inciso XII, do artigo 5º, da Lei Maior. A qual trouxe como finalidade a aplicação apenas para servir de prova em investigação criminal e instrução processual penal, assim, não sendo admitida no âmbito de processos administrativo ou judicial de natureza diversa da penal.
3.2 Interceptação Telefônica, Escuta Telefônica e Gravação Telefônica: conceitos e características
Para conceituar esse instituto é importante destacar que as interceptações telefônicas fazem parte de um grupo maior, ou seja, estão inseridas no gênero das interceptações de comunicações, o qual tem como espécies as gravações clandestinas, escutas e gravações ambientes, interceptações de comunicações de rádio, e-mails, inclusive a própria interceptação telefônica.
Nesse sentido, se observa que existe uma considerável confusão quanto a esses termos, em razão de que muitas pessoas acham de que se tratam dos mesmos institutos, enquanto outras traçam paralelos que não são devidos. Considerando isso, é relevante conceituar e diferenciar essas terminologias.
Inicialmente, quanto a captação ambiental é possível extrair algumas considerações de Greco Filho (2015, p.75):
A Lei n. 12.850, de 2 de agosto de 2013, chamada Lei de Organização Criminosa, prevê (art. 3o) entre os meios de obtenção da prova a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos (inciso II) e o acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais (inciso Iv). [....]
Por captação ambiental entende-se a obtenção, sem autorização de quem emite o sinal, de natureza eletromagnética, ótica ou acústica do significado ou conteúdo desse sinal. A captação ambiental abrange, então, a gravação de uma emissão clandestina de sinal de rádio, a possibilidade de localização dos chamados GPS, a utilização de câmeras de vigilância, fotografias e a teleoitiva por meios eletrônicos e, até, a leitura labial por teleobjetiva. A tecnologia moderna ditará os meios disponíveis. Quanto à captação de sinais eletromagnéticos, não se deve confundir com a interceptação telefônica, que tem disciplina constitucional e legal e é outro meio também previsto. A diferença está em que, no caso da interceptação telefônica, o agente está se utilizando de um meio público de comunicação, o telefone ou equiparado, ao passo que a captação ambiental se dará́ pela emissão de sinais fora dos meios públicos de comunicação.
Corroborando com esse enfoque, convém destacar os ensinamentos de Medroni (2015, p. 159), sobre a interceptação ambiental que tem como característica:
[...] nestes casos torna-se possível visualizar a situação das conversas e estabulações criminosas, inclusive com gesticulações e, no mais das vezes, com a demonstração da participação criminosa de mais do que dois agentes possíveis, já que nesta o ambiente pode estar recheado agentes criminosos. O aspecto visual assume, certamente, um diferencial importante em termos valorativos, permitindo enxergar as reações humanas de cada um dos participantes.
Ademais, esse tipo de interceptação é considerada muito mais complicada que a interceptação telefônica, tendo em vista que os investigadores precisam ter conhecimento do local onde o delito pretende ser acordado ou consumado, a fim de que previamente instale equipamentos capazes de gravar sons e imagens.
Seguindo, a escuta telefônica pode ser caracterizada quando um terceiro registra o diálogo de dois interlocutores com a ciência de um e sem o conhecimento do outro. Incide a tutela do art. 5, inciso XII, da CF/88 e deve estar previamente autorizada por ordem judicial, caso contrário será ilícita. A exceção é quando essa prova for praticada em legitima defesa.
Já a gravação telefônica, se caracteriza pelo fato de que não existem terceiros. Quem registra a conversa é um dos interlocutores que mantém contato com outro. Não incide a tutela do art. 5, XII, da CF, embora eventualmente possa ter o inciso X, do referido artigo. Independe da autorização judicial, desde que não viole a intimidade (art. 5, X), caso contrário será tida como ilícita, em hipóteses em que houver a violação da confiança mútua ou de segredo profissional (AVENA, 2017).
Por outro lado, a interceptação telefônica em sentido estrito, que é o objeto deste estudo, se dá no momento em que um terceiro registra o diálogo de dois interlocutores sem a ciência de nenhum deles, incide a tutela do art. 5, XII, da CF/88. É imprescindível que haja a autorização judicial, caso contrário será tida como ilícita (AVENA, 2017).
Desta forma, é possível extrair que a principal diferença quanto aos institutos acima definidos se dá, na interceptação telefônica, ao se considerar que a mesma se dá a partir de dois interlocutores conversando e um terceiro escutando tudo, os interlocutores não sabem que estão ouvindo. Ao passo que a escuta telefônica envolve dois interlocutores e um terceiro policia ouvindo, mas um dos interlocutores sabe que a polícia está ouvindo. Enquanto a gravação telefônica: Não existe o terceiro, só os dois interlocutores e um deles sabe que está gravando. Também existem variações de denominação desta, sendo também chamada de grampo ou escuta ambiental.
Além disso, é mister salientar que a interceptação telefônica em sentido estrito, não pode ser confundida com a quebra de dados telefônicos, que consiste apenas na obtenção dos registros telefônicos feitos, obtidos junto a companhia telefônica, pois não trazem o conteúdo das chamadas, apenas aspectos do percurso das ligações e dados, como a duração da chamada, terminal de partida e destino, horário da ligação, entre outras informações. Essa quebra de dados telefônicos, não está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição, ou seja, não depende que haja uma autorização judicial, tendo em vista que pode ser requisitada por Comissões parlamentares de Inquérito, pelo Ministério Público e a autoridade policial (LIMA, 2013).
Portanto, como se pode ver, são muitos os institutos que tratam sobre o sigilo das comunicações e tais questões podem ser facilmente confundidas, tendo em vista que se diferenciam por detalhes. Assim, o objeto desse estudo se dá quanto a interceptação telefônica em sentido estrito, caracteriza como aquele em que há dois interlocutores e um terceiro gravando, sem que nenhum desses interlocutores tenha ciência de que está sendo gravado.
4 A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O ordenamento jurídico brasileiro preza pelo sigilo das comunicações telefônicas, essa perspectiva no tocante a inviolabilidade de correspondência, comunicações telegráficas, dados e telefônicas. Essa garantia vem esculpida no inciso XII, do artigo 5º, da Constituição Federal/88.
Nesse âmbito, o direito à intimidade é considerado como um direito fundamental e uma cláusula pétrea na Constituição Federal/88, ou seja, a proteção da mesma não pode ser abolida ou extinguida. Assim, o artigo 5º, em seu inciso X, da Lei Maior estipula que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988).
Consoante preleciona Silva (1998, p.131), o direito à intimidade pode ser conceituado no “poder jurídico de subtrair do conhecimento alheio e de impedir qualquer forma de divulgação de aspectos da nossa existência que de acordo com os valores sociais vigentes interessa manter sob reserva”.
Desta forma, se extrai que esse direito à intimidade tem uma carga dotada de subjetividade, pois é um conceito inerente a cada pessoa, que considera aquilo que é íntimo para si mesma, levando em conta questões familiares ou grupais, a qual não tem interesse que saia da sua esfera particular e passe ao conhecimento de terceiros.
Nesse sentido, esse direito está previsto também na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em seu artigo XII, que prevê: “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra essas intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei”.
Nesse enfoque, os direitos fundamentais são aqueles positivados em uma constituição que visa proteger os principais bens jurídicos. Apesar disso, uma das principais características dos mesmos é que eles não são tidos como absolutos, ou seja, ainda que haja a preocupação com o respeito e cumprimento dos mesmos, podem haver situações em que eles sejam mitigados ou ponderamos, por isso eles são tidos como relativos.
Justificando essa perspectiva, destaca os ensinamentos de Moraes (2002, p. 60-61) ao fundamentar que:
Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não pode ser utilizado como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna.
De acordo com o trazido, apesar da importância dos direitos fundamentais, o indivíduo não pode usa-lo como escudo para cometer práticas criminosas ou que afrontem o ordenamento jurídico. É com base nesse fundamento que existe a possibilidades de mitigação, como é o caso da interceptação telefônica, dada a quantidade de delitos e práticas criminosas que podem ser praticadas por esses instrumentos ou como um meio para assegurar essas infrações. Assim, se dá a partir de uma mitigação ao direito de intimidade e o de inviolabilidade do sigilo telefônico.
Assim, considerando as disposições trazidas pela Lei n. 9.296/1996, a interceptação telefônica é uma medida excepcional, que se condiciona aos requisitos elencados em seu artigo 2º, os quais devem ser cumulativos como o fumus comissi delicti e o periculum in mora, podendo ser sintetizados, a contrario sensu, nos seguintes requisitos cumulativos: a) deferimento por intermédio de prévia ordem judicial devidamente fundamentada; b) Ter como fim específico a investigação criminal ou a instrução processual penal; c) Estar presentes razoáveis indícios de autoria/participação no delito investigado; d) elucidação das infrações penais que sejam puníveis com pena de reclusão; e) Inexistir outro meio de prova cabível para apurar o crime.
Sobre alguns desses requisitos, convém tecer alguns comentários, conforme já mencionado a decisão que conceder a interceptação telefônica deve estar devidamente fundamentada, não sendo admitida a denominada “autorização genérica” ou “carta branca”. Contudo, isso não impede que uma prova obtida por interceptação telefônica, não possa ser utilizado em outro processo, com natureza de prova emprestada, inclusive em procedimentos administrativos disciplinares, eis a jurisprudência:
[...] Os elementos informativos de uma investigação criminal, ou as provas colhidas no bojo de instrução processual penal, desde que obtidos mediante interceptação telefônica devidamente autorizada por juízo competente, admitem compartilhamento para fins de instruir procedimento criminal ou mesmo procedimento administrativo disciplinar contra os investigados. Possibilidade jurisprudencial que foi ampliada, na Segunda questão de Ordem no Inquérito 2.424 (da relatoria do ministro Cezar Peluso), para também autorizar o uso dessas mesmas informações contra outros agentes (BRASIL, 2011).
Outro ponto que merece destaque, é relativo à competência do magistrado para proferir a decisão, pois em se tratando de juiz incompetente, a prova será considerada ilícita e deverá ser desentranhada dos autos. Contudo, convém destacar que o STF[1] vem adotando a Teoria do Juízo Aparente, para defender a licitude de provas obtidas por esse meio, quando à época da decisão, os elementos informativos levavam a crer que aquele era certamente o juízo competente, o que posteriormente, com novas provas, se demonstrou como incompetente.
Além disso, convém ressaltar que a interceptação telefônica pode ser determinada de ofício pelo magistrado ou mediante requerimento da autoridade policial, em se tratando de investigação criminal, ou pelo Ministério Público, em razão de investigação criminal ou na instrução processual penal. Porém, algumas questões sobre os legitimados podem trazer dúvidas, como os relacionados ao ofendido, na ação penal privada, bem como ao assistente de acusação e essa faculdade ao magistrado para agir ex officio.
Para o professor Gomes (2007), a possibilidade de o juiz determinar de ofício a interceptação, faz surgir a figura do “juiz inquisidor”, incombatível com o ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que o sistema adotado seria do processo acusatório, de modo que comprometeria a imparcialidade que se espera do julgador.
Por outro viés, de acordo com Avena (2017), parte da doutrina entende pela constitucionalidade do dispositivo, ao defender que não há violação pois se trata de um meio idôneo de prova, assim como o interesse penal busca pela verdade real e, por último, a possibilidade do juiz determinar, antes do início da ação penal, a produção das provas urgentes. Inobstante tais considerações, até o momento, ainda prevalece a constitucionalidade do referido artigo.
Ademais, é possível que a parte ofendida requisite essa prova, quando se tratar de ação penal privada, devendo cumprir as formalidades do artigo 4º, da Lei 9296/96. Assim como, quanto ao assistente de acusação nas ações penais públicas, não obstante a omissão legislativa da referida legislação, existe permissão genérica contida no artigo 271, do Código de Processo Penal, que assegura a essa parte propor meios de prova.
Superada essa questão concernente aos legitimados, convém comentar quanto ao prazo para a interceptação telefônica, o artigo 5º, desta lei, assegura o prazo máximo de quinze dias, o qual poderá ser prorrogado por igual período uma única vez, dada a sua indispensabilidade. Porém, o STF, no julgamento do HC 106225, entende que é possível a renovação deste prazo por sucessivas vezes, desde que isso se demonstre com indispensável para as investigações.
Além disso, o termo inicial do prazo se dá a partir da data em que se efetiva a diligência e não da data em que foi proferida a decisão judicial, consoante decisão do Superior Tribunal de Justiça, no HC 135771: “2. Em relação às interceptações telefônicas, o prazo de 15 (quinze) dias, previsto na Lei n. 9.296/96, é contado a partir da efetivação da medida constritiva, ou seja, do dia em que se iniciou a escuta telefônica e não da data de decisão judicial”.
Ademais, quanto ao procedimento da interceptação telefônica, em regra, deve ser feito por escrito, entretanto, de forma excepcional é possível que seja oral, em que a concessão será reduzida a termo. O juiz tem um prazo máximo de 24 horas para decidir, fundamentadamente, indicando a maneira que se deve executar a diligência (GRECO FILHO, 2015).
Logo, observa-se que essa decisão será inaudita altera parte, ou seja, sem a manifestação prévia da parte, adotando-se o princípio do contraditório diferido (também chamado de postergado ou retardado), o que não resultará em prejuízo para a ação penal, tendo em vista, por lógico, que o prévio conhecimento do investigado, inviabilizaria a produção desta prova.
Outrossim, a autoridade policial conduzirá as investigações dando ciência ao parquet para que acompanhe as investigações, caso entender como medida necessária, sendo que a ausência dessa notificação do órgão ministerial, poderá gerar nulidade relativa, se ficar demonstrado que houve prejuízo decorrente disso.
Corrobora com esse entendimento, os dizeres de Greco Filho (2015, p.57):
Quem conduz a diligência dentro dos parâmetros fixados pelo juiz, é a autoridade policial (entenda-se autoridade da polícia judiciária, estadual ou federal, ou autoridade presidente de inquérito policial militar, se se tratar de crime da competência da Justiça Militar), dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização.
Seguindo o procedimento, será feita a transcrição dos diálogos que sejam úteis à prova e encaminhados ao magistrado, o qual determinará a autuação em apartado das transcrições e o apensamento destas no inquérito policial ou no processo, integrando como meio probatório apto a corroborar com as partes e na formação do livre convencimento do julgador. O que for considerado como inútil, será desconsiderado pelo incidente de inutilização, “assistido pelo Ministério Público, facultada, ainda, a presença do acusado ou representante legal” (AVENA, 2017, p. 478).
Outro assunto que merece destaque, segundo Avena (2017), é a descoberta fortuita de outro crime distinto daquele constante na ordem judicial prevista ou, ainda, que haja pessoa diversa daquela que a persecução penal foi desencadeada, trata-se do instituto chamado de descoberta casual, conhecimento fortuito ou fenômeno da serendipidade. As cortes superiores têm entendido que não se trata de prova ilícita.
Assim, considerando que foram autorizadas nos ditames legais, não se aplica a Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada quanto a descoberta de outros crimes ou outros agentes envolvidos. Porém, deve ficar claro que esses elementos casualmente identificados tenham relação de conexão com o delito que foi autorizada a interceptação telefônica, caso não ficar demonstrado esse requisito, essas novas informações servirão apenas como notitia criminis e demais procedimentos cabíveis para a sua própria investigação.
Ademais, quanto a captação do diálogo telefônico entre o investigado e o advogado verifica-se que o assunto é polêmico. A priori, destaca-se que os advogados gozam da prerrogativa de inviolabilidade de tais comunicações, consoante artigo 7º, inciso II, da lei 8.906/1994 (Estatuto da OAB) que dispõe: “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.
Destarte, constata-se que são ilícitas as interceptações telefônicas que violarem o sigilo profissional cabível a esses profissionais. Entretanto, essa prerrogativa de inviolabilidade só é aplicável se o advogado estiver atuando no exercício das funções inerentes à advocacia. Logo, conforme vem firmando entendimento os tribunais superiores, quando o advogado atuar como partícipe ou coautor no crime, não pode se valer desse manto judicial para corroborar com as infrações penais.
Nesse sentido, é o entendimento firmado pelos tribunais superiores, assim, destaca-se julgado do Superior Tribunal de Justiça que preleciona:
É certo que o sigilo profissional do advogado deve ser preservado, não sendo permitida a utilização, como prova, das conversas obtidas por meio de interceptação telefônica entre o cliente e o advogado.
- Todavia, tal garantia não tem caráter absoluto, não se estendendo aos casos como o dos autos, no qual se constatou, ao longo das investigações, que o advogado, ao que parece, excedeu o exercício regular de seu munus e passou a atuar como coautor na prática dos crimes descritos (BRASIL, 2014).
Existe a disposição do artigo 10, que prevê o crime de realizar interceptação telefônica, de informática ou telemática, além das condutas de quebrar o segredo de justiça, sem que haja a autorização judicial ou visando objetivo que não esteja autorizado em lei. Consoante Cabette (2015, p. 163), trata-se de um crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, já o sujeito passivo é qualquer pessoa que “utilize do processo de comunicação telefônica, de informática ou telemática”.
Frente ao exposto, muitas são as questões que cercam a interceptação telefônica e várias discussões doutrinárias quanto ao direito à intimidade e ao sigilo das comunicações que estão envolvidos, devendo ser feito a análise ao caso concreto em observância à Lei 9.296 de 1996 e aos demais direitos e garantias fundamentais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desse estudo, foi possível realizar uma abordagem inicial sobre a Teoria Geral da Prova, sendo possível compreender o que vem a ser a prova no processo penal, bem como as suas origens e os sistemas de apreciação existentes, além dos meios de prova elencados pelo processo penal.
Logo, observa-se que o Brasil adotou como regra o sistema do livre convencimento motivado, em que os magistrados possuem a liberdade de escolher qual prova melhor esclarece os fatos, não havendo hierarquia entre as provas, sendo que as suas decisões precisam estar devidamente fundamentadas, abordando as razões que o levaram a adotar determino entendimento, em detrimento de outro.
Excepcionalmente, os demais meios são permitidos no ordenamento jurídico brasileiro. O sistema tarifado, em situações em que a lei previamente estabelecer valoração diversa entre as provas, em que não caberá ao juiz decidir facultativamente, bem como o sistema da íntima convicção, se baseia na certeza moral do julgador, independentemente das provas produzidas nos autos, é o caso dos jurados do tribunal do júri, em que prevalece a soberania dos veredictos.
Também se esclareceu que há hipóteses de provas ilícitas, ou seja, que expressamente contrariem as normas jurídicas ou são produzidas por meios inadequados, as quais devem ser desentranhadas dos autos. Igual tratamento merece as provas que são derivadas dessas ilícitas, pois contaminam o processo, diante da teoria dos frutos da árvore envenenada, que se baseia que ainda que a prova derivada seja lícita, ela já nasceu malucada, pois é advinda de uma prova ilícita.
Compreendida essa síntese, o segundo tópico voltou o olhar para os aspectos conceituais e característicos da interceptação telefônica, a qual foi prevista inicialmente na Lei 4.117/1962, que versava sobre o Código Brasileiro de Telecomunicações, que permitia a interceptação, gerando, assim uma antinomia com o texto da Constituição de 1967. Essa sensação de instabilidade permaneceu até o advento da Constituição Federal de 1988, a qual inseriu no texto legal concernente à interceptação, assegurando as hipóteses e na forma que a lei estabelecer. Assim, diferentemente do que ocorria anteriormente, essa inovação legislativa trouxe a ideia de que esse direito à inviolabilidade do sigilo é relativo, os quais podem ser excepcionados, por meio de ordem judicial e com fim de investigação criminal ou instrução processual, foi a partir disso que surgiu a Lei 9296/96 (Lei da Interceptação Telefônica).
Além disso, é muito comum que haja confusão quanto ao significado e diferenciação da interceptação telefônica com a escuta telefônica e a gravação telefônica. A interceptação se dá a partir de dois interlocutores conversando e um terceiro escutando tudo, os interlocutores não sabem que estão ouvindo. Ao passo que a escuta telefônica envolve dois interlocutores e um terceiro (policial) ouvindo, mas um dos interlocutores sabe que a polícia está ouvindo. Enquanto a gravação telefônica não existe o terceiro, só os dois interlocutores e um deles sabe que está gravando. Também existem variações de denominação desta, sendo também chamada de grampo ou escuta ambiental.
Quanto aos aspectos da legalidade da interceptação telefônica, observa-se que a decisão que determinar a interceptação telefônica deve estar devidamente fundamentada, não podendo se tratar de uma decisão genérica, a qual pode ser determinada de ofício pelo juiz ou a requerimento das partes, quer seja Ministério Público no curso da investigação ou da persecução penal ou da autoridade policial, durante a investigação. Pode, ainda, o querelante nas ações penais privadas e o assistente de acusação, nas ações penais públicas, por força do artigo 271, do Código de Processo Penal.
Além disso, conforme visto, a interceptação não se prolonga no tempo, sendo que a lei estabelece o prazo de quinze dias, prorrogável por igual período, em que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que pode haver sucessivas prorrogações desde que demonstrada a indispensabilidade desse meio de prova.
Outrossim, considera a hipótese de que no curso da interceptação telefônica, ocorrer a descoberta de outro crime ou de outro agente envolvido, se for conexo com o delito objeto da interceptação, poderá servir como meio de prova lícito. Por outro lado, se não for conexo, só terá efeito de notícia sobre o crime, que demandará a adoção das medidas cabíveis quanto a ele, em separado.
Por fim, quanto a interceptação telefônica entre cliente e advogado, verificou-se que o assunto é polêmico, pois envolve questões acerca do sigilo conferido aos advogados. Como se pode ver, essa prerrogativa da advocacia só poderá ser alegada, se o profissional estiver no desempenho das funções inerentes à advocacia, mas se atuar como partícipe ou coautor do delito, não pode se valer do sigilo profissional para a prática de crime, hipótese em que será admissível a legalidade da interceptação telefônica.
Desta forma, como se pode verificar no estudo, vários são os pontos atinentes à interceptação telefônica que merecem cuidado na análise, pois está diante de uma mitigação ao direito à intimidade e sigilo, assegurados como direitos fundamentais do indivíduo, razão pela qual trata-se de uma medida excepcional, bem como dependerá de vários fatores para ser considerada como legal.
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[1] Quanto à celeuma acerca da determinação da quebra de sigilo pelo Juízo Federal de Itaperuna/RJ, que foi posteriormente declarado incompetente em razão de ter sido identificada atuação de organização criminosa (art. 1º da Resolução Conjunta n. 5/2006 do TRF da 2ª Região), h· de se aplicar a teoria do juízo aparente (STF, HC 81.260/ES, Tribunal Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 19.4.2002).