UMA QUEIXA-CRIME A QUE SE DEVE NEGAR SEGUIMENTO PERANTE O STF

07/08/2020 às 09:56
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O ARTIGO ESTUDA CASO CONCRETO ENVOLVENDO A QUEIXA CRIME E O ARTIGO 86, PARÁGRAFO QUARTO, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

UMA QUEIXA-CRIME A QUE SE DEVE NEGAR SEGUIMENTO PERANTE O STF

  

Rogério Tadeu Romano  

I – O FATO 

O procurador-geral da República Augusto Aras manifestou-se no dia 31 de julho contra o prosseguimento de queixa-crime proposta pela ex-presidente Dilma Rousseff contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).  

Dilma ofereceu queixa contra Bolsonaro por conta de uma postagem no Twitter do presidente, publicada em agosto de 2019, na qual Bolsonaro, ao informar temas que seriam abordados em suas lives, postou um vídeo de 35 segundos de uma fala dele na Câmara dos Deputados, em 2014, na qual comparava a então presidente a uma "cafetina" e os membros da Comissão Nacional da Verdade a prostitutas.  

Segundo Aras, a injúria que Dilma atribui a Bolsonaro não teria relação com o mandato presidencial e, portanto, cabe a aplicação do artigo 86, parágrafo 4º da Constituição, que afirma que o "Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções":

"A conduta atribuída ao querelado configura, em tese, crime comum e que não guarda relação com o desempenho do mandato presidencial, inexistindo, assim, nexo funcional", afirma Aras na sua manifestação endereçada à ministra Rosa Weber, relatora do caso.  

II – A QUEIXA-CRIME  

A queixa, como bem expôs José Carlos Barbosa Moreira(Temas de Direito Processual Civil, 2ª edição, pág. 118) , é modalidade de demanda. 

De acordo com os termos do artigo 100, § 2º, do Código Penal, a ação penal de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo(artigo 100, § 2º). 

Para o caso trata-se de queixa-crime proposta.  

Aplica-se para o caso a Súmula 714 do STF: "É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções". 

Vigoram na ação penal privada os princípios da oportunidade(ou conveniência), da disponibilidade, da indivisibilidade e da intranscendência.  

Não vige na ação penal privada o princípio da obrigatoriedade, que é próprio para a ação penal pública incondicionada. Cabe ao titular do direito de agir a faculdade de propor, ou não, a ação privada, segundo a sua conveniência. Tal princípio se revela pelas formas da renúncia ao direito de queixa, pela decadência para o exercício da ação, institutos específicos dessa tutela penal(artigo 38) e ainda pela possibilidade de ocorrência de perempção(artigo 60, I e III) e ainda de perdão(artigo 51 a 59).  

Pelo artigo 48 do Código de Processo Penal, se observa que a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará o processo de todos. Sendo assim se o autor(querelante) ajuizar ação contra um ou alguns(querelados), competirá ao Ministério Público, que atuará, aqui, como fiscal da lei, aditar a queixa, nela incluindo os excluídos. A exclusão constitui renúncia implícita ao direito de queixa que se comunica ao querelado, mas ela não ocorre se a vítima não tem elementos indiciários quanto aos excluídos, não forem eles identificados, etc.  

O princípio da intranscendência consiste no fato de ser a ação penal limitada à pessoa ou às pessoas responsáveis pela infração, não atingindo outras pessoas, como familiares ou estranhos. 

Cabe aqui um esclarecimento com relação a atuação do Parquet nessa ação privada.  

O Ministério Público pode aditar a queixa, suprimindo-lhe eventuais omissões, inclusive fazendo retificações, em especial com relação a qualificação jurídica do fato narrado pelo querelante quando diversa daquela que foi dada na exordial. 

Poderá, como fiscal da lei, opinar por seu arquivamento ou improcedência do pedido.  

III – O ARTIGO 84, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL  

Determina aquela norma constitucional disposta no artigo 84, § 4º, da Constituição Federal.   

Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. 

§ 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções. 

O artigo 86, § 4º, trata da chamada imunidade material relativa ou imunidade penal relativa ou imunidade temporária à persecução penal.  Por tais crimes não poderá ser responsabilizado enquanto não cessar a investidura na presidência.

Durante o curso do mandato, o presidente só poderá ser punido por atos praticados e inerentes ao exercício de sua função. Por atos estranhos ele não poderá ser responsabilizado no curso do mandato. Nesse caso, a prescrição ficará suspensa e, findo o exercício do cargo, poderá ser proposta ação penal.

Disse o Ministro Sepúlveda Pertence(Inq. 567 – DF) que o alcance concreto da cláusula constitucional que defere ao Presidente da República “imunidade temporária à persecução penal”, traduz-se na paralisação da própria atividade persecutória que incida sobre atos delituosos estranhos ao exercício das funções presidenciais(CF, art. 86, par. 4º), até que sobrevenha a cessação do mandato. 

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Sobre isso se tem de posição do Ministro Celso de Mello(Inq. 927 – 9/SP, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 1, de 23 de fevereiro de 1995, pág. 3.507) quando disse: 

“Os ilícitos penais cometidos em momento anterior ao da investidura do candidato eleito na Presidência da República – exatamente porque não configuram delicta in officio – também são alcançados pela norma tutelar positivada no § 4º do art. 86 da Lei Fundamental, cuja eficácia subordinante e imperativa inibe provisoriamente o exercício pelo Estado, do seu poder de persecução criminal”. 

No inquérito 1.418 – 9, DJU de 8 de novembro de 2001, o Ministro Celso de Mello repetiu que: 

“A cláusula de imunidade penal temporária, instituída, em caráter extraordinário, pelo art. 86, § 4\", da Constituição Federal, impede que o Presidente da República, durante a vigência de seu mandato, sofra persecução penal, por atos que se revelarem estranhos ao exercício das funções inerentes ao ofício presidencial. Doutrina. Precedentes”. 

Mas é, na argumentação colhida no Inq 672 – 6 – DF, que o Ministro Celso de Mello registra: 

“ Essa norma constitucional – que ostenta nítido caráter derrogatório do direito comum – reclama e impõe, em função de sua própria excepcionalidade, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal. 

Sendo assim, torna-se lícito asseverar que o Presidente da República não dispõe de imunidade, quer em face de procedimentos judiciais que vissem a definir-lhe a responsabilidade civil, quer em face de procedimentos instaurados por suposta prática de infrações político-administrativas(ou impropriamente denominados crimes de responsabilidade), quer, ainda, em face de procedimentos destinados a apurar, para efeitos estritamente fiscais, a responsabilidade tributária do Chefe do Poder Executivo da União.” 

Acentuo que segundo o que foi julgado no agravo de regimento na Pet 3240, foi firmado que:

“Os agentes políticos, com exceção do presidente da República, encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, e se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade.”

A Constituição Federal consagrou no preceito do artigo 84, § 4º, da CF, a chamada responsabilidade penal relativa do magistrado supremo da Nação. E não poderia ser diferente, como destacou Uadi Lammêgo Bulos(Constituição Federal Anotada, 6ª edição, pág. 923), porque o regime democrático diverge do arbítrio e do centralismo. “Embora irrecusável a posição de grande iminência do Presidente da República no contexto político-institucional emergente de nossa Carta Constitucional Política, impõe-se reconhecer, até mesmo como decorrência do princípio republicano, a possiblidade de responsabilizá-lo, penal e politicamente, pelos atos ilícitos que, eventualmente venha a praticar no desempenho de suas magnas funções(STF, Inq. 927/0- SP, relator ministro Celso de Mello, DJ de 23 de fevereiro de 1995, pág. 3507).

Ora, certamente a conduta acima traçada não se revela in officio ou propter officium. Ela se revela estranha ao exercício do mandato presidencial.

O ato em discussão não guarda conexão com o exercício da atividade da presidência, de forma que somente poderá o presidente da República ser por ele responsabilizado após o término do seu mandato, perante a justiça comum, como já acentuado.

 A conduta em discussão se revela estranha ao exercício do mandato presidencial, sendo caso de se negar seguimento à queixa-crime ajuizada perante o STF.

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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