O juiz e o pedido de recuperação judicial

07/08/2020 às 16:42
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o texto trata dos caminhos que poderão ser adotados pelo juiz ao receber pedido de recuperação judicial. Pode determinar a abertura da falência?

Por isso se deve suprimir a prolixidade e a superfluidade do discurso e procurar somente o fruto, imitando, não as trançadoras de coroas, mas abelhas[1]

 

 

 

                             O JUIZ E O PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL

 

Abstraídos os demais atos processuais que [eventualmente] poderão ser praticados pelo juiz quando da análise da petição inicial de recuperação judicial [v.g. determinação de emenda da inicial, indeferimento de plano da inicial etc., arrimada no artigo 51 da Lei 11.101/05, o questionamento trazido a debate é o seguinte: Pode o juiz, ao analisar tal pleito, decretar de ofício [e imediatamente] a falência do devedor em crise?

Crê-se que não, e para tanto são apresentadas algumas reflexões justificativas de tal posicionamento, buscando [sempre] o aprofundamento da discussão em torno de tão importante tema.

A bem da verdade, a resposta se bifurca [em sendo analisada tão somente a lei de regência falencial e seu catálogo principiológico], ou melhor, se trifurca [se se também optar pela análise do Código de Processo Civil], conforme será exposto.

Primeiramente, caso o intérprete analise a Lei 11.101/05, mais especialmente seu art. 73 perceberá sem muito esforço que a convolação da recuperação judicial em falência nada tem a ver com a hipótese aventada, pois neste caso [art. 73] já existe processo de recuperação em tramitação. A convolação somente se pode dar em hipóteses taxativas, previstas em quatro incisos, quais sejam, deliberação assemblear; não apresentação do plano no prazo estipulado na lei; quando o plano for rejeitado em assembléia, ou quando o devedor descumprir qualquer obrigação assumida no plano, e a contar da decisão que concede a recuperação judicial [arts. 58 e 61, §1º]. Com efeito, analisadas todas as situações que autorizam a convolação da recuperação judicial em falência percebe-se claramente que tal ato [convolação] somente pode ocorrer após o deferimento do processamento da recuperação [art. 52], pois, antes disso inexiste o favor legal, e a leitura do art. 73 permite afirmar que, quando da análise da petição inicial, pelo juiz, inexiste assembléia de credores; quando o devedor formula a pretensão em juízo não está obrigado a apresentar [com sua inicial] o plano de reorganização; mais ainda, a falência será decretada se o plano for rejeitado, e a inicial, como dito, não é acompanhada de tal documento; quando da propositura do pedido, o devedor ainda não está, de forma alguma, adstrito ao cumprimento de obrigações assumidas no plano que, como visto, ainda não foi materializado. A título de argumento, somente após o juiz mandar processar a recuperação [art.52] é que a assembléia de credores poderá existir e os credores estarão reunidos a fim de avaliar o pedido de desistência do favor legal [art. 52, §4º]. Portanto, e em resumo, todas as hipóteses previstas no art. 73 pressupõem, necessariamente, a formal tramitação do processo de recuperação judicial, inclusive com a decisão judicial que manda processá-la [art. 52]. Ainda, considerando o texto legal, nota-se claramente que somente foi contemplada a hipótese de o juiz mandar processar a recuperação judicial [art. 52] ficando [totalmente] silente a lei quanto a outras possibilidades, até mesmo aquelas previstas no Código de Processo Civil [aplicável subsidiariamente, conforme art. 189 da referida lei]. Mais do que isso, as hipóteses ventiladas pelo art. 73, como dito, se tratam de convolação; o juiz [normalmente] não atua de ofício, somente o fazendo nas hipóteses dos incisos II e IV; também normalmente o juiz atua mediante requerimento próprio do juridicamente interessado, e as possibilidades ventiladas no artigo de lei, aqui referenciado, não dizem com o primeiro ato [por parte do julgador] que poderá ser praticado quando da análise da petição inicial de recuperação judicial.

Ao tratar de relevante tema, Rubens Requião assentou entendimento segundo o qual o direito brasileiro outorga apenas ao devedor ou ao credor a iniciativa do pedido de declaração da falência. Ao contrário de legislações estrangeiras, como a italiana, a nossa lei não concede essa iniciativa ‘ex officio’ do Ministério Público e ao juiz. Mesmo que o credor requeira a falência e o devedor confesse, retratando-se posteriormente e dela desistindo, nada pode o juiz fazer, senão homologar a desistência,...[2]. E prossegue, para cimentar ainda mais sua posição: houvesse a possibilidade de o juiz decretar a falência do devedor ‘ex officio’, e então o pedido seria irreversível, pois desdenhando a intervenção das partes e verificando a comprovação da insolvência ou de fato enumerado na lei, declararia ‘exponte propria’ a falência do devedor[3]. A seu turno, esclarece J.C. Sampaio de Lacerda a respeito de quem pode iniciar o processo falimentar: o devedor; o cônjuge sobrevivente, os herdeiros do devedor, e o inventariante...não há, atualmente, entre nós a  falência ‘ex officio’, embora o Código Comercial houvesse admitido, pois facultava, em seu art. 807, ao juiz declarar  a falência ‘ex officio’ quando lhe constasse por autoridade pública, fundada em fatos indicativos de um verdadeiro estado de insolvência. Tal intervenção, porém, não se harmonizava com a sua verdadeira missão. Não se compreenderia, afirmava Thaller, fosse ele exercer ‘l’office d’um gérant d’affaire de la masse’”[4]. E Nelson Abrão, tomando da pena, assim fez constar: sendo nosso sistema legal dispositivo, em matéria de procedimento falimentar, este só pode ser instaurado mediante provocação de algum interessado[5]. A seu turno, J.X. Carvalho de Mendonça assentou entendimento no sentido de que não temos a declaração da falência ‘ex-officio’ que o Cód. Comercial, art. 807, facultava ao juiz, quando esta ‘lhe constasse por notoriedade pública fundada em fatos indicativos de um verdadeiro estado de insolvência’. A intervenção do juiz ‘proprio motu’ na vida mercantil do devedor oferece sérios receios; não se harmoniza com a sua elevada missão de desempenhar ‘ l’office d’um gérant d’affaire de la masse’. Por mais que se procure justificar a declaração ‘ex-officio’ da falência pela necessidade da tutela  ao comércio e ao crédito não satisfaz; entretanto, adiantadas legislações a mantém, e escritores de nota justificam-na[6]. Fábio Ulhoa Coelho esclarece que, quando o próprio devedor pede a assim denominada “autofalência” o juiz apenas não decreta a retirada do mercado em caso de desistência tempestiva [por parte do devedor] de tal pleito[7]. Portanto, o renomado autor concorda, a uma, que há pedido do devedor no sentido de ser retirado do mercado; a duas, que o juiz não atua de ofício, decretando a falência, mesmo quando se depara com pedido expresso de desistência do pedido de autofalência. Entrementes, em outra passagem o mesmo autor diz ainda que, se o juiz considerar que o devedor se comporta com intuito procrastinatório, quando requer a recuperação judicial, poderá o juiz fixar prazo peremptório para a adequação da petição inicial, advertindo-o que decretará a falência na hipótese de descumprimento[8]. Com efeito, por que a falência não é decretada, mesmo quando o devedor desiste do pedido de autofalência e, por outro lado, por que poderia o juiz, em sede de recuperação judicial decretar a falência de ofício? Crê-se, ainda, que ao juiz não é dado o poder de retirar a empresa do mercado especialmente quando analisa pedido de recuperação judicial.

Do outro lado da balança, afastas as hipóteses legais que autorizam a convolação da recuperação judicial em falência [e não a hipótese apresentada no primeiro parágrafo da sumária exposição], e aqui ainda se circunscrevendo ao tão-somente ao exame da lei especial, está um outro aspecto, não menos relevante, que diz com o espírito, com o [firme] propósito que cerca a Lei 11.101/05. Mas um pequeno parêntesis cabe aqui. Não obstante se tenha incensado em demasia a lei de falência e recuperação de empresa/empresário; se tenha dito aos quatro cantos que alguns casos de reorganização judicial tornar-se-iam paradigmáticos, demonstrando, em conseqüência, que a lei pegou [e os fatos que vêm surgindo demonstram bem ao contrário], e aqui entra a questão da lei simbólica, tão bem analisada por Marcelo Neves; se tenha dito que a lei em análise colaboraria para a [tentativa de] superação da crise empresarial e o retorno da empresa/empresário ao mercado competitivo, o fato [mais do que evidente] é que deve ela [a lei] ser interpretada conforme a Constituição Federal; que há mais falências decretadas do que pedidos de recuperação judicial e que, bem ao contrário de outros centros, caberia especializar juízos próprios para tão-só lidar com processos de recuperação e de falência.  

Voltando ao tema central do presente, afastado o espírito liquidatório-solutório imperante ao tempo de vigência do Dec.-Lei 7.661/45 - onde as condições de tentativa de soerguimento eram mínimas, ou praticamente inexistentes, e os processos de concordata preventiva reiteradas vezes se transformavam em falência; onde raramente se via um caso de concordata suspensiva e os casos que tinham continuidade de negócios deferida judicialmente só faziam o passivo [agora da massa falida] aumentar, criando maiores prejuízos à própria coletividade como um todo -, ingressou no sistema jurídico pátrio a Lei 11.101/05 cujo estandarte é justamente o artigo 47. Agora, a força motriz que rege os institutos da recuperação e da falência é bem outra, sintonizada com a Carta Política. Consoante princípios constitucionais; princípios que regem tais processos, bem como a necessidade de se [tentar] manter a atividade econômica em franca produção - preservando a empresa no mercado -, cabe primeiramente falar em recuperação [numa de suas formas], e só em última hipótese retirar a empresa em crise do mercado, via falência ou autofalência.

Portanto, e em resumo, o espírito da lei de 2005 é preservar a empresa em crise, evitando, quanto possível, a decretação da falência, sendo que, conforme dito, mudou drasticamente a forma de ver a empresa em crise.

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Ora, ser o espírito que rege a lei de 2005 é justamente esse, pois o enfoque foi alterado em relação à ab-rogada lei, certamente que o juiz, ao se deparar com pedido inicial de recuperação judicial não terá o poder de decretar imediatamente a falência do devedor, pois, agindo assim, afrontará os princípios que regem tal processo, e a lei de regência não prevê de forma expressa tal possibilidade. Como se disse alhures, o máximo que poderá ocorrer, daí sim, de ofício, é a convolação da recuperação judicial em falência, pois, a lei autoriza tal proceder.  

Já ingressando nas questões processuais propriamente ditas, o juiz não poderá decidir aquém, fora ou além do pedido formulado pela parte, sendo necessária a análise do art. 141 do Código de Processo Civil. Adverte Vicente Grecco Filho, em relação ao princípio da iniciativa da parte, que este também significa respeito ao patrimônio jurídico dos indivíduos, tem como conseqüência a limitação objetiva da sentença ao pedido como foi formulado[9]. Destarte, ao analisar o pedido de recuperação judicial ao juiz não é dado o poder de, imediatamente, decretar a falência do devedor [ne procedat iudex ex officio; nemo iudex sine actore]. 

 


[1] Plutarco. Como Ouvir. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 26.Tradução: João Carlos C. Mendonça.

[2] Curso de Direito Falimentar. 1º Volume. 17a edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 111.  Ao tema de vigência do Dec.-Lei 7.661/45 escreveu o doutrinador que em somente duas hipóteses o juiz poderia agir de ofício, ou seja, quando o devedor, tendo requerido a preventiva, não satisfazia os pressupostos legais, ou quando, concedida a preventiva ou a suspensiva da falência, o devedor não cumpria com suas obrigações [Op. cit., pp. 111-112. Importante ressaltar que o art. 162 do ab-rogado decreto-lei contém as hipóteses legais que autorizam a falência de ofício. Não se vê idêntica situação na Lei 11.101/05, bastando analisar especialmente os artigos 52 e 73.

[3] Op. cit., p. 111.

[4] Manual de Direito Falimentar. 14a edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999, p.  64.  E o mesmo autor vai mais além fazendo constar que as legislações chilena, francesa e italiana aventam tal possibilidade e quanto à italiana, Brunetti, Bolaffio e Calamandrei aconselhavam cautela e circunspecção do juiz, embora reconhecessem ser raramente aplicado, tanto que Vidari considerava o dispositivo letra morta. Op. cit., p. 64.

[5] Curso de Direito Falimentar. 5a edição. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1997, p. 97.

[6] Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Volume VII. 4a edição. Rio de Janeiro:Livraria Editora Freitas Bastos, 1946, p. 277.

[7] Curso de Direito Comercial. Vol. 3. 7a edição. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 264.

[8] Op. cit., pp. 406/407.

[9] Direito Processual Civil. 1º Volume. 12a edição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 227. Ainda, coloca-se em relevo o art. 460 do Código de Processo Civil, sendo certo que a petição inicial  delimita, inexoravelmente, a prestação jurisdicional. Noutros termos, cabe a observância, por parte do juiz condutor do processo, do princípio da correlação ou congruência entre pedido, causa de pedir e sentença; do princípio da adstrição ou demanda.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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