Por uma postura jurídica mais profissional

07/08/2020 às 18:30
Leia nesta página:

Há poucos dias, numa ida ao fórum do Rio de Janeiro, ouvi algumas histórias desinteressantes relativas ao uso da nossa profissão.

A primeira delas é que um colega havia impetrado ação de habeas corpus, para liberar um carro preso no Detran.

 A segunda foi o mandado de segurança com que o advogado entrou, na ação de impeachment contra o Governador do Estado do Rio de Janeiro, processado sob a alegação de haver cometido crime de responsabilidade.

A terceira foi a foto de um famoso causídico de Brasília, que estava circulando de bermudas dentro do Supremo Tribunal Federal.

Esses três fatos mostram total desrespeito pelos ritos processuais e pelo devido zelo necessário para o exercício da profissão.

Chamo isso de falta de amor pela liturgia jurídica da profissão.

Liturgia é a compilação de ritos e cerimônias relativas aos ofícios divinos das igrejas cristãs. Mesmo que essa palavra se aplique mais a missas ou a rituais da igreja católica, o termo tem uma abrangência muito além da religião, pois não deixa de ser um trabalho público.

Ora, a advocacia é uma tarefa que se realiza na presença de várias pessoas e a sua atividade é um ato eminentemente litúrgico.

Esse ato público, exercido por  um mlhão de profissionais do direito em todo o Brasil, exige não somente um preparo intelectual e literário para redigir petições mas também um cuidado com a função jurisdicional, com os atos processuais e com os procedimentos especiais.


Habeas corpus

O habeas corpus é concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. O artigo 5º, inciso  LXVIII, da Constituição, usa o pronome indefinido alguém, ou seja, alguma pessoa. Carro preso no Detran é um veículo aprisionado, um bem material, e não uma pessoa.

Muito triste portanto  a utilização desse remédio constitucional para um uso totalmente inadequado, pois se trata de algo elencado nos direitos e garantias fundamentais do homem, direitos esses inatos, absolutos, invioláveis, intransferíveis e imprescritíveis.


Mandado de segurança

 Sem entrar no mérito de ser ou não justo o pedido de impeachment do Governador do Estado do Rio de Janeiro, o fato é que a  Assembleia Legislativa por 69 (sessenta e nove) votos a zero autorizou a sua abertura, cujo processo é guiado pelas regras da Lei 1.079, de 10-4-1950, que define os crimes de responsabilidade.  

Convenhamos que, se existe uma lei específica para tratar do rito processual desse caso concreto, se tornou risível o requerimento da concessão do mandado de segurança para travar seu prosseguimento. Ainda bem que o Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de suspensão de Witzel, para parar o processo iniciado na Alerj.

 O mandado de segurança é concedido para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. O artigo 5º, inciso LXIX, é taxativo, ao explicar que ele tem o objetivo de corrigir ato ou omissão ilegal ou decorrente de abuso de poder.

O direito invocado, para ser amparado por mandado de segurança, há de vir expresso na norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante.

Lamentável a utilização desse remédio constitucional com natureza de ação civil, posto à disposição de titulares de direito líquido e certo.  


De bermudas no S.T.F.   

A jurisdição constitucional surgiu historicamente como um instrumento  de defesa da Constituição, não da Constituição considerada como um puro nome, mas da Constituição tida como expressão de valores sociais e políticos.

Assim  o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele compete, precipuamene, a guarda da Constituição, conforme está no seu artigo 102.

O respeito pelo órgão máximo do Poder Judiciário deve ser uma liturgia para o profissional do direito.

O vocábulo liturgia, em grego, formado pelas raízes leit- (de "laós", povo) e -urgía (trabalho, ofício) significa serviço ou trabalho público. Por extensão de sentido passou a significar também, no mundo grego, o ofício religioso, na medida em que a religião no mundo antigo tinha um caráter de posição elevada.

A foto que me apresentaram mostra um advogado famoso e muito conhecido em Brasília circulando de bermudas pelo S.T.F., como se estivesse em sua casa.

Postura é maneira de andar, de se locomover, de se comportar: “alguém, além de bonito, tinha uma postura sedutora”.  No sentido figurado mostra uma atitude, um modo de agir: “não tinha a verdadeira postura de um pai”.

A sua ausência pode ser considerada como uma falta de decoro, de decência, de comedimento, de compostura.

No Congresso Nacional fala-se de decoro parlamentar, isto é, o padrão decomportamento ético que se espera de um parlamentar.

O artigo 55, parágrafo 1º, da Constituição, declara que é “incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.

Essa foto inspira sentimento de pena ou compaixão; é algo lamentoso e lastimoso, pois o advogado só é “inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (CF, artigo 133).

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N. do A. – Foram utilizadas aqui algumas ideias retiradas da própria Constituição da República Federativa do Brasil.

Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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