1 INTRODUÇÃO
Este artigo trata do crime de estelionato que é um delito no qual o agente lança mão de meios fraudulentos a fim de obter vantagem econômica indevida, a história de seu desenvolvimento que remonta a idade antiga até atingir sua forma atual no direito brasileiro, os elementos objetivos do tipo como induzir, manter e ardil, as características de seu dolo, sua natureza multilesiva que recaí sobre a confiança das relações sociais, as mudanças processuais que este sofreu recentemente, passou de um delito de ação penal pública incondicionada para um de ação penal pública condicionada, as diferenças entre retroatividade nas normas penais formais e materiais e as justificativas dela, veremos o motivo do porquê nas materiais ela só retroage para beneficiar o réu enquanto nas formais não, a classificação das normas em relação a seu objeto e respectivo diploma( topográfica ) e no que isso implica em termos hermenêuticos e de aplicação da lei, que se divide em normas heterotópicas(quando dispõe sobre um objeto que não é tema do diploma em que se encontram) ,materiais, formais e mistas ( aquelas que abarcam tanto o tema de seu próprio diploma como de diploma diverso).
Tal tema foi escolhido devido a sua importante repercussão social que este delito sempre teve, e agora devido a alteração citada anteriormente as novas consequências que ela causará no âmbito jurídico e consequentemente social visto que provocará uma mobilização mais intensa das vítimas no judiciário.
2 HISTÓRIA DO ESTELIONATO
A etimologia da palavra remonta a Grécia antiga, a qual de refere a stellio como a equivalente, que significa nada mais do que uma espécie de lagarto da região que tinha por característica mais notável a mudança da cor de sua pele a fim de enganar/iludir suas presas. Desde então esta expressão ficou conhecida como sinônimo de enganar, dissimular.
O ato de enganar não é algo exclusivo da atualidade, na verdade este nos remete a tempos antigos e imemoriais. Como exemplo do exposto temos um exemplo deste ato na própria bíblia.
No livro de gênesis “O Senhor Deus perguntou então à mulher: "Que foi que você fez? " Respondeu a mulher: "A serpente me enganou, e eu comi".
Gênesis 3:13.
Como é perceptível desde as civilizações que remetem aos povos hebraicos já haviam uma noção propedêutica do que seria o “enganar”.
Para Rogério Greco (2012)“Desde que surgiram as relações sociais, o homem se vale da fraude para dissimular seus verdadeiros sentimentos e intenções para, de alguma forma, ocultar ou falsear a verdade, a fim de obter vantagens que, em tese, lhe seriam indevidas”.
Muito embora o ato de enganar fosse natural ao ser humano e conhecido pelo mesmo, o antigo direito romano, inspiração ao atual direito brasileiro em muitos aspectos não possuía tipificação ao estelionato. Na época este era um instituto integrado ao dolus malus, que consistia em um crime privado, que seria um delito menor que acarreta não em uma pena, mas em obrigações do autor com a vítima (comumente uma quantia em dinheiro) (Bittencourt, 2012 p. 630-650).
Em oposição a isso na Grécia o estelionato e delitos relacionados a fraude e engano eram punidos de forma mais contundente. o crime de stellio funcionava como um tipo de crime extraordinário, abarcando todos os crimes dolosos que não se configurarem como outros crimes contra o patrimônio já tipificados.
Na idade moderna, mais precisamente na França, o código penal de 1810 em seu artigo 405 descrevia como delitivas todas as condutas em que o agente por meio de fraude tenta obter vantagem patrimonial.
Segue o artigo 405:
405. Whoever, either by making use of false names or descriptions; or by using fraudulent contrivances to induce the belief of false speculations, or of imaginary means or credit, or to suggest the hope or fear of any success, accident, or other chimerical event; shall procure to be remitted or delivered to him, any funds, moveables, obligations, dispositions, bills, promises, acquittances, or releases; and shall, by any of these means, fraudulently obtain, or attempt to obtain, the whole or part of the fortune of others; shall be punished with an imprisonment of not less than one year, nor more than five years, and a fine of not less than 50 francs, nor more than 3,000 francs. (French penal code of 1810)
Este delito seguiu ao redor do mundo possuindo terminologias diferentes, frode, no código toscano , truffa, no código de Zanardelli e código de Rocco, estafa,no código espanhol, betrug no código alemão.
Até o surgimento de normas autônomas brasileiras, o país se utilizava das ordenações filipinas, que com grande influência portuguesa tipificava o estelionato como “burla” da mesma forma que em Portugal na época. A pena para o delito, se deste viesse um prejuízo superior a vinte mil-réis era a morte.
Foi no código criminal (1830) do império que o estelionato surgiu com este nomem juris, ele possuía em seus elementares a cláusula genérica de se valer de artifícios fraudulentos para se obter a vantagem patrimonial e além disso várias figuras as quais se distinguiam desta genérica.
Já no código penal republicano (1890) houve uma maior importância na classificação destas figuras do estelionato, o código abarcava onze figuras incluindo a modalidade genérica: “usar de artifício para surpreender a boa-fé de outrem, iludir a sua vigilância, ou ganhar-lhe a confiança; induzindo-o em erro ou engano por esses e outros meios astuciosos, procurar para si lucro ou proveito” (Bittencourt, 2012 p. 630-634).
Para Nelson Hungria (1942, p. 11) o que havia antes eram crimes mais violentos e bárbaros, hoje se tem se uma composição entre os delitos mais agressivos que ocorriam no passado porém tiveram uma evolução a passar para crimes mais engenhosos e planejados.
Apesar da conduta dissimulada, pela qual se caracteriza o crime de estelionato, ter sido algo que acompanha a humanidade desde a antiguidade, hoje esta ganha importância como demonstrado acima por Hungria e passa a merecer mais atenção às tentativas de se tipificar esta conduta, a medida que tem se tornado cada vez mais comum.
2.1 O Estelionato Na Constituição De 1988
A constituição de 88 consagra no artigo 5, em seu rol de direitos fundamentais o direito à propriedade privada, pelo qual se debruça toda proteção jurídica do patrimônio no Brasil desde então.
Aquela deu ao cidadão instrumentos legais que o tornaram capaz de proteger seu patrimônio. O artigo 5 possui a seguinte redação:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social
Para Yuri Coelho (2015, p. 599) o patrimônio protegido na constituição e um conjunto de bens ou utilidades da vida, com valor pecuniário, que possuem um proprietário, podendo este ser pessoa física ou jurídica.
Na constituição brasileira, fica posto como dever do estado (tipificado no artigo 144 da constituição) o dever do estado de manter a segurança pública, manter a ordem e proteger tanto a vida quanto o patrimônio (Luiz Regis Prado, 2010 p. 812).
Segue abaixo o artigo 144:
Art. 144. A Segurança pública , dever do estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio(...)
É através da segurança pública que se torna efetiva a proteção dos direitos do cidadão e é uma obrigação ao estado brasileiro para que se cumpra estas disposições, já que estão postas na própria constituição.
Esta segurança consiste na prevenção através da fiscalização e legislação e na repressão pela atividade policial de atitudes que vão de encontro ao valor constitucional acima descrito, neste diapasão tal primor para com a segurança pressupõe ao estado que este crie um ambiente desfavorável a conduta criminosa e assim a manutenção de relações sociais harmônicas (Freitas, 2012).
2.2 Análise Do Estelionato No Atual Direito Penal Brasileiro
2.2.1 Bem jurídico
O que se mostra no primeiro momento é a flagrante ofensividade do estelionato ao bem jurídico patrimônio pois como deixa clara a redação do artigo 171 do código penal, o autor deve, para que sua conduta se encaixe no tipo praticar mediante erro, ardil ou outro meio fraudulento, obter, para si ou outrem, benefício/vantagem ilícita, como se pode inferir, esta vantagem é patrimonial.
Porém o estelionato bem como alguns outros crimes se reveste de uma complexidade tal a ponto da sua conduta ser multilesiva, ou seja, através de uma ação, atingir vários bens jurídicos que são absorvidos no mesmo delito (Manzini, 1961, p. 527).
Como é o caso do estupro, o artigo 213 do código penal, que sendo também um crime pluriofensivo atinge o bem jurídico principal (dignidade sexual) bem como bens jurídicos subjacentes (integridade física, honra).
Do mesmo modo o delito supracitado também tem esta característica. Ele atinge de modo principal e com maior gravidade o bem jurídico do patrimônio, porém, também alveja os bens jurídicos interesse social quando macula a confiança, reprimindo a retidão social presumida, que deve prevalecer nas relações sociais de modo a preservar a harmonia no estado inicial das coisas, bem como o interesse público que o estado possui de salvaguardar a sociedade de danos alheios (Bittencourt, 2019, p. 295).
2.2.2 Sujeitos ativo e passivo
Por se tratar de um crime comum o estelionato não faz distinção de autor, podendo qualquer pessoa sê-lo sem qualquer característica especial. É possível também a coautoria e participação neste delito sem problemas.
Vale ressaltar duas figuras interessantes, para Nucci (2018, p. 492) é admissível a figura de um autor que seja ele próprio causando dano a sua pessoa (ou bem) tendo em mente por meio de fraude receber vantagem ilícita de um terceiro (uma seguradora por exemplo) no caso o autor seria tanto sujeito ativo como objeto material no mesmo delito (vide art. 171, 2, V, CP).
Outra situação notável é a citada por Luis Régis Prado (2019, p. 716), onde um sujeito pelos mesmos meios habituais já citados no delito de estelionato, obtém para si ou outrem vantagem ilícita além de seu direito (quota) mesmo que seja co proprietário da coisa (objeto material).
O tipo penal postula como elementar (para si, ou para outrem) sendo sujeitos que recebem a vantagem ilícita, estes sujeitos podem ser coautores ou partícipes se concorrerem para o crime (como descrito no art. 29, CP), porém podem também ser terceiros de boa-fé, inscientes ao que ocorre na conduta delitiva que por condições alheias a sua vontade acabam recebendo seus proveitos, este sujeito, não será passível de punição (Bittencourt, 2019, p. 295).
O sujeito passivo pode ser tanto uma pessoa física quanto jurídica. Neste delito é sujeito passivo tanto quem sofre da ação fraudulenta quanto quem sofre o prejuízo patrimonial, na lição de Roberto Lyra (1958, p. 53) “Sujeito passivo da ação, do erro, é quem sofre sua materialidade; o patrimônio afetado pode ser de outrem, que experimenta o resultado, o prejuízo”.
Apesar desta (suposta) multisubjetividade passiva, quem de fato sofre a ação delitiva é a vítima, não se pode esquecer que o bem jurídico predominante no estelionato é o patrimônio.
Vale ressaltar que o crime de estelionato possui necessariamente um sujeito passivo definido, caso contrário (delito incertam personam) se enquadraria como delito contra a economia popular ou relações de consumo.
Um dos requisitos característicos do estelionato é o uso de meios fraudulentos para manter a vítima em erro e assim obter a vantagem ilícita, porém para que haja esse “meio fraudulento” é indispensável a capacidade do sujeito passivo entender que está sendo enganado, logo como menores ou enfermos mentais não têm esta característica estes não podem ser atingidos por essa elementar afastando a caracterização do estelionato, se for praticado será tipificado no artigo 173 do código penal (Fragoso, 1962, p. 449).
Art. 173 - Abusar, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem, induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro: Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa
2.2.3 Elementos objetivos do tipo
O elemento objetivo tipo no crime de estelionato é claro, trata-se de obter mediante fraude vantagem ilícita, pode se perceber que a característica notável neste tipo é a fraude que o agente aplica para, mediante ardil e dissimulação manter a vítima em erro, e conseguir que ela voluntariamente entregue o bem (Costa JR, 1996, p. 524).
Nucci (2018, p. 489) define o estelionato como crime artístico pois necessita de astúcia, sutileza para que haja o convencimento da vítima, segundo o mesmo:
a única diferença de uma peça teatral bem produzida, que também conta uma história fictícia ou inspirada em fatos reais, é que o estelionatário, ao final, não recebe aplausos, mas ganha uma vantagem ilícita em detrimento da vítima, que se deixou iludir. (2018, p 489)
Com o avanço da civilização tem se tornado cada vez mais rara a figura do ladrão troglodita e violento, este tem sido substituído numa espécie de movimento darwiniano em uma evolução para um delinquente mais astuto e a consequência disso são as cada vez mais raras ocorrências do artigo 157 sendo substituídos pelo artigo 171 (Hungria, 1942, p. 164-165).
Nas lições de Noronha (1977 p. 424):
não é mais a violência a coisa ou a pessoa o meio de ataque ao patrimônio, porém, é a astúcia, o engodo, que, sem alarde e estrépito, fere também, envolvendo a vítima em suas malhas, lesando-a de maneira sutil, mas segura. Ela é forma criminal do civilizado, daquele a quem repugna o sangue alheio. É um dos índices de que o homem mais e mais se afasta de sua origem animal e selvagem (...)”
Pode se notar que é sempre necessário um nexo causal duplo, um de cometer fraude, por conseguinte manter a vítima em erro e o outro de obter uma vantagem patrimonial. O primeiro sendo a causa e o segundo efeito (Bittencourt, 2019, p. 289). Um contribui a outro, mas são ações autônomas que cominam no delito tipificado no artigo 177.
Interessante notar o elemento normativo - induzir - que significa fazer surgir uma ideia em outrem, no caso uma ideia que não possui um conteúdo ( elemento externo correspondente) verdadeiro, fazendo com que a vítima tome como verídico algo falso, o que altera-se aqui porém não é a vontade da vítima, pois o elemento volitivo é algo tão íntimo que somente é passível de ser determinada pelo sujeito que a encerra devido ao fato de que a vontade sempre está adstrita a autonomia do sujeito, a vontade do agente passivo permanece pois a mesma. O agente apenas faz crer a vítima que por tais ou quais ações ou atingir um resultado diverso do qual realmente vai se concretizar, destarte podemos afirmar que a principal característica do estelionato é intelectual, enquanto diz respeito às funções cognitivas daquele que o sofre.
2.2.4 Tipo subjetivo
O elemento subjetivo do estelionato (Bitencourt, 2019, p. 305) é a vontade livre e consciente (dolo), que abarca não só o resultado final colimado pelo agente, a obtenção de vantagem indevida, como também todos os meios fraudulentos para a obtenção de tal vantagem, vale frisar que a referida vantagem deve ser indevida, haja vista que, se tratando de vantagem legal ou justa, incorrerá em exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP), e que o agente tenha ciência da injustiça de tais bens, pois caso contrário haverá erro de tipo uma vez que, a vantagem indevida é elementar do tipo.
Estabelece-se, portanto, um nexo causal duplo (Prado, 2014, 953) em que em primeiro lugar o dolo do agente se coloca a enganar a vítima e em segundo mediante o erro causado por este primeiro a obtenção de vantagem.
Como leciona Nelson Hungria a chamada astúcia mala se trata também de um dos elementos do tipo subjetivo deste delito como posto por Prado na sua teoria do duplo nexo causal. Pode se considerar que a astúcia mala estaria contida no primeiro nexo, ou seja, o de enganar a parte passiva.
É importante ressaltar que a tipificação do código cobre também mais de um momento deste dolo, num primeiro momento, a expressão “induzir ao erro” nos mostra que a vontade de manter a vítima em erro é anterior e uma forma de conseguir a vantagem, enquanto na expressão “manter em erro” a vontade do agente é concomitante, o dolo se observa não na sua produção mas exatamente em sua manutenção.
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Também é bem comum a presença da figura do erro de tipo. Esta se observa quando o praticante do delito comete um erro em relação a uma das elementares. (Mirabete, 2002, p. 454)
A referida ocorre com frequência quando se engana em relação a elementar “vantagem ilícita”. No caso quando a vantagem e devida a tipificação se transfigura de estelionato (Art. 171) para exercício arbitrário das próprias razões (Art. 345).
Não se tem por enquanto neste delito a modalidade culposa, onde alguém poderia ser enganado através de imprudência, negligência ou imperícia. Ao contrário é ainda indispensável a presença de um dolo especial, ou seja, uma intenção específica de se obter a vantagem ilícita.
2.2.5 Tipo objetivo
Para Luis Régis Prado (953, 2014) para que se configure objetivamente o injusto aqui tratado é necessário a presença de três elementos, são eles (não cumulativamente): fraude, erro e disposição patrimonial.
Tais elementos precisam ocorrer na ordem respectiva em que foram citados de modo que um cai por cascata um sobre o outro.
E importante dizer que mesmo que a vítima disponha seu patrimônio de forma prejudicial por erro, se não houver a fraude não se configura o delito (Donna p. 68)
No núcleo do tipo se encontra o verbo obter, neste delito o agente obtém a vantagem ilícita, que seria para Capez “É o objeto material do crime em tela. O agente emprega meio fraudulento capaz de iludir a vítima com a finalidade de obter vantagem ilícita em prejuízo alheio” (2015), todo e qualquer beneficio contrário ao direito, e, portanto, constituiria um elemento normativo deste injusto.
A doutrina majoritária se posiciona favorável a proposição que a vantagem não precisa necessariamente ser econômica, isso se deve a uma interpretação sistemática em que se compararmos com o crime de extorsão o legislador deixa claro que a vantagem deve ser econômica, portanto se este nada diz pode seu silencio eloquente ser tratado como forma de externalizar a mens legis de não restringir este tipo apenas a vantagem patrimonial.
2.2.6 Ação penal
Este tema é certamente o que demanda mais reflexão, haja vista que após a entrada em vigor da lei 13.964/19, o legislador adicionou um novo parágrafo neste tipo penal.
o §5º do Artigo 171, ganhou notoriedade após alterar a modalidade de ação penal do crime de estelionato, o que antes se tratava de um delito cuja ação penal era pública incondicionada, continuou pública mas com o importante requisito de ser condicionada a representação pela vítima o que causou uma série de desdobramentos.
2.2.6.1 Normas penais: materiais e processuais
Não é recente a diferenciação jurídica, quando se trata da teoria da norma, entre normas materiais e processuais. Esta dicotomia se aplica em função da contrariedade entre uma e outra, haja vista que as normas processuais, chamadas por parte da doutrina de, adjetivas, regulam os atos jurídicos, o “agir processual”, e a tutela dos direitos em juízo (Brasileiro, 2020, p. 92). Já as normas materiais, por sua vez denominadas “substantivas” (Avelino, 2017, p. 2) ou seja, estabelecem relações jurídicas substanciais, possuindo estas em suas características, direitos, deveres, ônus e faculdades.
Como leciona Norberto Avena (2011, p. 63) as normas penais tem designo salvaguardar direitos, e prerrogativas ou garantias, dentre estas por obvio, o chamado jus puniendi, do estado, que nada mais é do que o direito-dever-poder de punir.
Já para Cintra, Grinover e Dinamarco (2006, 95-97) esta distinção se caracteriza por seu objeto imediato, não por sua finalidade como acima descrito. As normas matérias disciplinam de forma instrumental direta a cooperação de indivíduos e a disputa por bens escassos, no entanto também o fazem as normas processuais, porem de forma indireta, para ele:
“essa dicotomia e a correspondente nomenclatura, no entanto, só podem ser aceitas desde que convenientemente entendidas quanto ao seu alcance,. Se é evidente a instrumentalidade da segunda categoria não se pode nega, de outro lado, que mesmo as normas materiais apresentam nítido caráter instrumental – no sentido de que constituem um instrumento para a disciplina da cooperação entre as pessoas e dos seus conflitos de interesses (...)” (Cintra, Grinover, Dinamarco, 2006, p. 95)
Isso se demonstra não apenas no direito penal como o enfoque do presente trabalho, mas noutras disciplinas jurídicas como o processo Civil.
Como mostra em sua obra, Fredie Didier Jr. (2020, p. 77), o processo é caracterizado em sua natureza jurídica, não como outrora havia se considerado, apenas um meio para se buscar em juízo um determinado direito. O processo moderno já é entendido por posição pacífica da doutrina como relação jurídica de direito processual, e por conseguinte, norma jurídica processual é aquela que incide nesta relação jurídica, ou seja, normas que “seu consequente normativo se direciona a estruturar um processo” (Didier Jr. 2020, p. 77).
2.2.6.1.1 Normas heterotópicas
Como já explicitado acima, a natureza de uma norma é determinada por seu objeto e não pelo diploma legal em que está inserida (Cintra, Grinover, Dinamarco, 2006, p. 95), isso ocasiona, no entanto, um fenômeno curioso no ordenamento jurídico brasileiro, a chamada heterotopia normativa.
A produção de normas heterotópicas é fenômeno recorrente, embora uma norma seja caracterizada pelo objeto, cada diploma tem a finalidade de se abarcar normas similares, o código de processo penal deve abarcar normas de processo penal, o código civil normas materiais civis, etc.
O que ocorre na heterotopia é um deslocamento da norma, de um “local” a outro, e embora ela se vincule ao diploma no qual esta inserida, se comporta de acordo com sua natureza (Avena, 2011, p. 95).
Em suma o que determina os efeitos da lei, embora ela esteja vinculada ao seu diploma, é a sua natureza.
2.2.6.1.2 Normas mistas
Há também em nosso direito normas que abrigam em sua natureza caráter material e processual, estas são chamadas de normas mistas. Nestas a classificação doutrinaria se torna mais obscura, há doutrinadores que defendem que normas que se encontram em diplomas processuais, mas regulamentam o jus puniendi do estado por se tratarem da liberdade individual seriam normas processuais e materiais (Nucci, 2018, p. 139), porem esta classificação se confunde com a classificação de heterotopia, já descrita acima, uma vez que o autor trata normas que disciplinam um objeto, e seu diploma normativo disciplinas outro.
Há também uma segunda corrente, que designa as normas mistas como sendo aquelas em que se regula alguma prerrogativa processual, no entanto, se refletem na questão da liberdade do indivíduo (Badaró 2009, p. 22).
Tal qual um efeito cascata a norma híbrida trata de um tema processual que resvala no direito material “liberdade”. Como exemplo da anterior temos, fiança, liberdade condicional, ação penal, dentre outras que preenchem este requisito.
A última parece ser a mais convincente e robusta em suas razões. Porem como trata Renato Brasileiro (2020, p. 93) não importa qual a teoria seja adotada as duas impõe o ônus da norma mista ter consequências no âmbito do direito penal, pois no primeiro caso como já dito, se uma norma esta num diploma mas trata de outro, seus efeitos serão em relação a sua natureza verdadeira, no segundo mesmo que sejam normas que tratam de direito processual, estas têm reflexos no direito penal, portanto seus efeitos atingiriam a esfera penal.
2.2.6.2 Os efeitos da norma no tempo
Como disposto pelo código de processo penal em seu artigo 2º: “Art. 2o A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.”
O dispositivo legal acima citado tem por finalidade, instituir no processo penal brasileiro o principio do tempus regit actum, que postula a norma penal ser aplicada imediatamente após a sua entrada em vigência para regulamentar os atos processuais de seu tempo, sem prejuízo dos atos praticados anteriormente (Avena, 2017, p. 64). Há por obvio então a conclusão de que, se no curso do processo sobrevier lei nova processual, esta deve ser aplicada ao próximo ato deste processo.
A lei pode se comportar no tempo de duas formas, pode ter atividade ou extratividade.
Fica destacado aqui o entendimento dos conceitos aplicados acima. Tem-se por atividade o período de efeito regular da lei, ou seja, deste sua entrada em vigor ate o momento em que este é extirpada do ordenamento jurídico.
Já por extratividade, o prefixo extra adiciona a lei o caráter de um efeito além de sua vigência, algo irregular e excepcional, haja vista que a regra é a simples atividade legal.
A extratividade por sua vez pode ocorrer de duas formas, se ela se aplicar a fatos anteriores a sua vigência, é chamado de efeito retroativo. Ao contrário, se for aplicada a fatos posteriores a sua revogação recebe o nome de ultratividade.
Já nas leis puramente penais este efeito se da de maneira diferente, como disposto no art. 2º par. Único a lei retroage nos casos em que beneficiar o reu, consagrando assim o principio da retroatividade da lei benéfica. (Nucci, 2015, p. 125)
Este princípio encontra também seu fundamento de validade na constituição federal, que em seu artigo 5º, XL determina “A lei penal não retroagira, salvo para beneficiar o réu” a partir disso podem ser deduzidos dois princípios, o principio regra: irretroatividade das leis penais, e a exceção: principio da retroatividade benéfica.
Também vale ressaltar que há sim hipóteses que a lei penal mais benéfica não ira retroagir, como leciona Guilherme Nucci (2015, p. 127) a lei benéfica só retroage se não houver cessado por completo o interesse punitivo do estado, não faria qualquer sentido, tampouco seria benéfico ao réu que uma lei retroagisse sendo que o seu delito já está prescrito. Em suma, se cessa o jus puniendi, não há o que se falar em retroatividade.
O ponto chave deste tópico reside no estudo dos efeitos temporais quando estas duas espécies supracitadas (processuais-materiais) se misturam na forma de normas híbridas e segundo estas expõe Nucci (2015, p. 140):
Qualquer norma processual penal, que, aplicada, permita o desencadeamento da extinção da punibilidade do agente, instituto de direito penal, conforme se vê do art. 107 do Código Penal, é material. Isto significa que se submete ao rigor do princípio da retroatividade da lei penal benéfica,
algo natural e lógico, diante de sua ligação direta com o interesse punitivo estatal.
2.2.6.3 Os reflexos da lei anticrime
em 2019 a lei 13.964 apelidada “lei anticrime” instituiu diversas mudanças a fim de aperfeiçoar o código penal e o código de processo penal.
Dentre estas mudanças destaca-se a adição do §5º no art. 171 que define o crime de estelionato, cuja redação passa a ser:
“Art. 171.
§ 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for:
I - A Administração Pública, direta ou indireta;
II - Criança ou adolescente;
III - pessoa com deficiência mental; ou
IV - Maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.”
Após esta alteração o delito muda sua modalidade de ação penal, aquela que antes era a regra do código penal, ação pública incondicionada, passa a ser ação penal pública condicionada a representação da vítima.
Há algumas considerações a serem feitas sobre esta adição com base em tudo que foi dito neste artigo. Em primeiro lugar pode-se destacar que a natureza jurídica desta adição é de norma processual material penal heterotópica.
Para que este conceito seja melhor apreciado e justificado se faz necessária uma investigação analítica de tais termos. A conceituação de norma heterotópica se faz pois, apesar do artigo 171 caracterizar um tipo penal incriminador, que seria por si de natureza estritamente material, e portanto não haveria heterotopia, uma exceção se faz em todos os crimes na parte que tratam de ação penal, como no §5º deste delito, uma vez que esta, embora esteja no código penal, regula aspectos processuais, portanto possui um caráter processual, e se esta noutro diploma penal, se trata de um caso de heterotopia.
Embora como já descrito acima o novo §5º tenha característica de norma processual, é mister ressaltar que como descrito por Avena (2011, p. 63-66) uma norma que trata num primeiro momento de prerrogativas processuais, sendo portanto uma norma processual num primeiro olhar, mas interfere após no direito de punir do estado e no direito à liberdade do indivíduo, possui por meio desta última característica, também uma parte material, se tratando de norma mista.
Por conclusão, tem-se que o art. 171 na sua nova adição, por se tratar de norma hibrida, e como já ressaltado, estas têm, por seu aspecto penal a característica de retroagir para beneficiar o réu, conforme disposto de forma expressa na constituição e no código penal.
Isso traz consigo certos reflexos práticos dos quais se destacam dois a serem mencionados a seguir. O primeiro é o efeito que esta lei causaria nos processos já em andamento, haja vista que se um processo esta numa fase avançada e a vitima não foi citada, isso se configuraria após a mudança legislativa como erro de procedimento, portanto os tribunais estão adotando o seguinte comportamento, nos processos já avançados ou após transito em julgado ocorre uma suspenção do processo ate que a vitima seja citada para se manifestar quanto a representação, se esta aceitar, o processo segue, senão ele é extinto sem resolução de mérito. Já nos processos em fase inicial, em que a vitima não foi citada, se houver a possibilidade, é permitida a citação da mesma sem que se suspenda o processo, senão esta hipótese se assemelha com a anteriormente descrita.
Outro importante reflexo foi a questão da interpretação extensiva deste dispositivo, uma vez que esta alteração no crime de estelionato se deu por motivos de politica criminal, isso pode ser deduzido por interpretação sistemática do projeto, uma vez que este coloca outros mecanismos para o desencarceramento de criminosos de pequeno porte, dispositivos estes como o acordo de não persecução penal, seria então possível a extensão deste dispositivo aplicado inicialmente ao estelionato a outros delitos?
Não há por enquanto jurisprudência pacifica em relação a isto, no entanto há dois argumentos:
O primeiro diz que sim, é possível a extensão, uma vez que como o crime de estelionato se assemelha a outros em sua natureza, vale ressaltar aqui que se trata de um crime contra o patrimônio onde inexiste violência, portanto seria possível para esta corrente uma extensão por analogia in bonan partem para delitos parecidos uma vez que esta é a vontade implícita do legislador.
No entanto há uma outra corrente que não afirma ser possível esta extensão haja vista que se realmente o legislador quisesse fazer esta alteração a todos os delitos contra o patrimônio, sem violência e de pequeno porte, este teria de fato colocado, neste caso o silencio eloquente do legislador deixaria transparecer sua vontade de que este dispositivo se aplicasse apenas ao caso do estelionato.
3 CONCLUSÃO
O estelionato na roma antiga era um delito privado de caráter subsidiário que impunha uma prestação em dinheiro a vítima, na Grécia porém a punição era mais severa, a figura do estelionato desde então existe em diversos estados, com suas peculiaridades regionais, mas sempre mantendo em seu imo a ideia de enganar a outrem para obter vantagem patrimonial, no Brasil colônia existia a figura da “burla” considerado o antecedente histórico do crime de estelionato aqui no Brasil.
O dolo é genérico, com qualquer pessoa podendo figurar no polo ativo, no polo passivo pode estar toda pessoa maior e capaz o que caso contrário caracterizaria atipicidade relativa , bem como as jurídicas.
Ação penal é, desde a entrada em vigor da lei 13.964/19, pública condicionada, nos processos já em andamento, iniciados antes da referida lei, as vítimas serão citadas para se manifestarem quanto ao seu desejo de representar ou não contra o autor, com as pessoas já condenadas com a ação pública incondicionada, anteriormente a esta lei, a pena permanece a despeito da nova lei ser mais benéfica ela não retroagirá nestes casos, pois trata-se de uma norma penal mista que tem natureza processual, sobre a qual não incide o famoso princípio da retroatividade de lei penal mais benéfica, tal princípio como foi explicado antes só vale para normas penais materiais.
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