O Presidente da República pode ser investigado por fatos alheios ao mandato e ocorridos antes de sua posse

10/08/2020 às 10:44
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As investigações mostram que os repasses de Queiroz à primeira-dama Michelle Bolsonaro somaram R$ 89 mil, valor muito superior ao alegado por Bolsonaro. O STF entende que o Presidente não pode ser processado por atos anteriores ao mandato.

1. O FATO

A revista digital Crusoé revelou que as investigações do Ministério Público mostram que o montante de dinheiro repassado por Queiroz à primeira-dama vai muito além dos R$ 40 mil que Bolsonaro havia dito que emprestara a seu amigo.

São os 21 cheques de Fabrício Queiroz para a primeira-dama Michelle Bolsonaro entre 2011 e 2018, que totalizaram R$ 72 mil.

Em 2018, Bolsonaro alegou que Queiroz havia feito depósitos para pagar uma dívida de R$ 40 mil, valor inferior ao revelado pela "Crusoé".

Além da quantia repassada por Queiroz, sua mulher, Márcia de Aguiar, também destinou R$ 17 mil em cheques para Michelle, segundo informação revelada pelo jornal "Folha de S. Paulo" e confirmada pelo GLOBO.

O valor total foi de R$ 89 mil. Segundo reportagem da revista "Crusoé", Fabrício Queiroz repassou R$ 72 mil em 21 cheques descontados por Michelle entre 2011 e 2016. Foram três cheques em 2011, seis em 2012 e três em 2013 - cada um no valor de R$ 3 mil -, além de outros nove cheques em 2016, somando R$ 36 mil. O jornal "Folha de S. Paulo" informou ainda que Márcia Aguiar, mulher de Queiroz, repassou R$ 17 mil para Michelle em 2011, em seis cheques: cinco de R$ 3 mil e um de R$ 2 mil.


2. O ARTIGO 86, PARÁGRAFO QUARTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A conduta merece rigorosa apuração criminal em todas as suas circunstâncias.

Ora, sem dúvida, dir-se-á que o fato se enquadra com conduta havidas antes do exercício do mandato.

O ato que se noticia é estranho ao seu mandato e anterior a ele.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da AP 305/QO, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 18 de dezembro de 1992, acentuou que o artigo 86, parágrafo quarto, da Constituição, ao outorgar privilégio de ordem político-funcional ao Presidente da República, exclui-o, durante a vigência de seu mandato – e por atos estranhos a seu exercício -, da possibilidade de ser ele submetido, no plano judicial, a qualquer ação persecutória do Estado.

Sendo assim a cláusula de exclusão inscrita no preceito constitucional, inscrito no artigo 84, parágrafo quarto, da Constituição Federal, ao inibir a atividade do Poder Público, em sede judicial, alcança as infrações penais comuns praticados em momento anterior ao da investidura no cargo de Chefe do Poder Executivo da União, bem assim aqueles praticados durante a vigência do mandato, desde que estranhas ao oficio presidencial. Será hipótese de imunidade processual temporária.

Ficou acentuado que a norma constitucional consubstanciada no artigo 86, § 4º reclama e impõe, em função de seu caráter excepcional, exegese restrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.

Como conclusão se tem que a Constituição, no artigo 86, § 4º, não consagrou o principio da irresponsabilidade penal absoluta do Presidente da República.

O Chefe de Estado, nos delitos penais praticados "in officio" ou cometidos "propter officium", poderá ainda que vigente o mandato presidencial, sofrer a "persecutio criminis", desde que obtida, previamente, a necessária autorização da Câmara dos Deputados.

Disse o Ministro Sepúlveda Pertence(Inq. 567. – DF), que o alcance concreto da cláusula constitucional que defere ao Presidente da República “imunidade temporária à persecução penal”, traduz-se na paralisação da própria atividade persecutória que incida sobre atos delituosos estranhos ao exercício das funções presidenciais(CF, art. 86, par. 4º), até que sobrevenha a cessação do mandato.

Sobre isso se tem de posição do Ministro Celso de Mello (Inq. 927. – 9/SP, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 1, de 23 de fevereiro de 1995, pág. 3.507) quando disse:

“Os ilícitos penais cometidos em momento anterior ao da investidura do candidato eleito na Presidência da República – exatamente porque não configuram delicta in officio – também são alcançados pela norma tutelar positivada no § 4º do art. 86. da Lei Fundamental, cuja eficácia subordinante e imperativa inibe provisoriamente o exercício pelo Estado, do seu poder de persecução criminal”.

No inquérito 1.418-9, DJU de 8 de novembro de 2001, o Ministro Celso de Mello repetiu que:

“A cláusula de imunidade penal temporária, instituída, em caráter extraordinário, pelo art. 86, § 4/”, da Constituição Federal, impede que o Presidente da República, durante a vigência de seu mandato, sofra persecução penal, por atos que se revelarem estranhos ao exercício das funções inerentes ao ofício presidencial. Doutrina. Precedentes”.

Mas é, na argumentação colhida no Inq 672 – 6 – DF, que o Ministro Celso de Mello registra:

“ Essa norma constitucional – que ostenta nítido caráter derrogatório do direito comum – reclama e impõe, em função de sua própria excepcionalidade, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.

Sendo assim, torna-se lícito asseverar que o Presidente da República não dispõe de imunidade, quer em face de procedimentos judiciais que vissem a definir-lhe a responsabilidade civil, quer em face de procedimentos instaurados por suposta prática de infrações político-administrativas(ou impropriamente denominados crimes de responsabilidade), quer, ainda, em face de procedimentos destinados a apurar, para efeitos estritamente fiscais, a responsabilidade tributária do Chefe do Poder Executivo da União.”

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Mas haveria impedimento constitucional de se proceder a qualquer investigação contra o Presidente da República por fatos anteriores ao mandato de forma a ensejar a informatio delicti?

Interessa-nos, principalmente, o trecho, naquele pronunciamento, em que o Ministro Celso de Mello conclui:

“De outro lado, impõe-se advertir que, mesmo na esfera penal, a imunidade constitucional em questão somente incide sobre os atos inerentes à persecutio criminis in judicio. Não impede, portanto, que, por iniciativa do Ministério Público, sejam ordenadas e praticadas, na fase pré-processual do procedimento investigatório, diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti e a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o ajuizamento da ação penal.”

Nesse entendimento exposto pelo Ministro Celso de Mello, somente estão abrangidas pelo preceito inscrito no par. 4º do art. 86. da Constituição Federal as infrações penais comuns eventualmente praticadas pelo Presidente da República que não guardem – ainda que praticadas na vigência do mandato – qualquer conexão com o exercício do ofício presidencial.

Tal se dá em decorrência do princípio republicano, na possibilidade de responsabilizá-lo, penal e politicamente, pelos atos ilícitos que venha a praticar no exercício das funções.

Portanto, repita-se, o artigo 86, parágrafo quarto, da Constituição, ao outorgar privilégio de ordem político-funcional ao Presidente da República, exclui-o, durante a vigência de seu mandato – e por atos estranhos a seu exercício -, da possibilidade de ser ele submetido, no plano judicial, a qualquer ação persecutória do Estado.

De toda sorte, poderá o procurador-geral da República, em nome do princípio da obrigatoriedade, ordenar diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti de forma a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o futuro ajuizamento de ação penal pública incondicionada.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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