ICMS na venda de energia elétrica para consumo na atividade industrial. Análise da decisão do STF no RE 748.543.

11/08/2020 às 16:51
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O que o contribuinte espera do STF é uma orientação segura e objetiva sobre o tratamento tributário a ser observado no estabelecimento destinatário, com relação à energia elétrica adquirida de outro Estado, com imunidade, para ser utilizada na industrial.

O ICMS é certamente o imposto mais complexo do nosso sistema tributário nacional, complexidade esta que deriva, principalmente, das distorções praticadas sobre o seu formato original, com o manuseio dos benefícios fiscais, fixação de alíquotas variáveis, a instituição de substituição tributária, entre outras causas.

Entre os temas tormentosos deste imposto pode-se destacar o tratamento tributário com relação às operações interestaduais com petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados e energia elétrica, as quais, segundo a Constituição Federal, são imunes do ICMS, sem nenhuma restrição (art. 155, § 2º, X, “b”).

Ocorre que, por motivos que não se pretende demonstrar neste artigo, a Lei Complementar nº 87/96, em seu art. 3º, III, restringiu a imunidade às operações interestaduais para o destino das mencionadas mercadorias à industrialização ou à comercialização.   

A mesma Lei, ao arrolar as hipóteses de incidência do ICMS, prevê  no seu art. 2º, § 1º, III, a incidência “sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo, inclusive lubrificantes líquidos e gasosos dele derivados, e de energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou à industrialização, decorrentes de operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente.”  

Esta matéria foi enfrentada pelo STF, no RE 748 543, em repercussão geral, num caso em que a empresa TRADENER LTDA, do Paraná, vendia energia elétrica  para BRASKEM S/A, estabelecida no Rio Grande do Sul, que a empregava em atividade industrial, segundo informado na minuta de voto do Plenário Virtual.

Neste caso, o fisco gaucho está exigindo da TRADENER LTDA um crédito tributário de ICMS que julga devido com relação à venda de energia elétrica para contribuinte estabelecido em seu território, para emprego na atividade de industrialização.  O TJ-RS manteve a exigência fiscal. O  STJ, por sua vez, deu provimento ao recurso especial da empresa notificada, sob o argumento de que não incide o imposto quando a energia é destinada ao processo de industrialização (LC 87/96, art. 2º, § 1º, III e 3º, III).

Submetida a matéria ao STF, esta Corte deu provimento ao Recurso Extraordinário, para julgar improcedente o pleito da recorrente e manter a exigência fiscal do Estado do Rio Grande do Sul, sugerindo a seguinte tese:

  1. Segundo o artigo 155, § 2º, X, b, da CF/1988, cabe ao Estado de destino, em sua totalidade, o ICMS sobre a operação interestadual de fornecimento de energia elétrica a consumidor final, para emprego em processo de industrialização, não podendo o Estado de origem cobrar o referido imposto;
  2. São inconstitucionais os artigos 2º, § 1º, III e 3º, III, da Lei Complementar 87/96, na parte em que restringem a incidência do ICMS apenas aos casos em que a energia elétrica se destinar à industrialização ou à comercialização.

A tese merece uma análise, no contexto da minuta do voto do Plenário Virtual de 27/07/2020.

Em resumo, o STF firma a posição pela destinação do ICMS ao Estado de destino de forma integral, e afasta os dispositivos mencionados na LC 87/96, que estariam restringindo a imunidade. Portanto, segundo o entendimento firmado pela decisão, a imunidade alcança todas as operações interestaduais com as mencionadas mercadorias, independentemente de sua destinação: industrialização, comercialização ou para consumidor final.  

Parece que a tese formulada não tem conexão direta com o caso analisado na decisão e não contribui em nada para a solução da lide. A declaração da  inconstitucionalidade dos citados artigos da LC 87/96 é inócua para o deslinde da controvérsia do caso, uma vez que esta declaração se refere às operações promovidas pelo remetente, vendedor da energia elétrica, em operação interestadual, enquanto o caso julgado tem por objeto a incidência nas operações subsequentes, a serem promovidas no Estado de destino, no regime de substituição tributária.    

Bem, sendo a operação interestadual com energia elétrica  imune, a  exigência do ICMS se limita às incidências no Estado de destino, em alinhamento ao  propósito da imunidade interestadual, mecanismo que permite o compartilhamento da receita tributária, com a relação à energia elétrica, para todos os Estados da Federação, e não somente para aqueles de detêm a fonte energética.

Estas incidências, no Estado de destino, somente podem ocorrer em regime de substituição tributária, já que a energia elétrica é regida por este sistema de tributação, conforme anunciado no próprio voto em análise.

Este regime alcance duas formas de incidência:

1) sobre as operações subsequentes a serem promovidas pelo destinatário das mercadorias, na condição de substituído tributário,  ou

2) na cobrança da diferença de alíquota nas operações interestaduais com destino a consumidor final (DIFAL), nos termos do art. 155, § 2º, VII, VIII, “a” e “b”, da Constituição Federal, ajustado pela EC n. 87/15, cabendo neste caso, a responsabilidade pelo recolhimento ao destinatário da mercadoria.

Formula-se então a seguinte pergunta: de que exigência a decisão está tratando? Lembra-se que o voto mencionado não revela tal informação. Apenas sugere tratar de ICMS devido pelo regime de substituição tributária.

Retomando a abordagem das duas hipóteses de incidência acima mencionadas, não nos parece possível exigir o ICMS sobre operações subsequentes (ICMS-ST), que teria de ser retido pelo substituto tributário  e recolhido ao Estado do Rio Grande do Sul, pelo simples fato de não haver operações subsequentes de energia elétrica no Estado de destino. Pelo que  consta do voto, a energia era consumida no processo de industrialização,  lembrando que o regime de substituição tributária alcança as operações subsequentes até a última etapa de circulação de  determinada mercadoria, regra que não se compatibiliza com a venda de energia elétrica destinada a ser consumida no processo industrial, sem ser submetida a uma  operação seguinte. Afinal, o ICMS-ST seria sobre qual operação subsequente?  Qual seria o valor da base de cálculo do fato gerador presumido? Neste caso, a destinação da energia elétrica se aproxima à matéria-prima, ou então assume a condição de material intermediário, na visão de parte da doutrina, e geraria direito a crédito do ICMS, (art. 33, II, b, da LC 87/96), caso a operação anterior não fosse imune. Esta situação  repele a aplicação do regime de substituição tributária, que se caracteriza pela cobrança do ICMS-ST sobre operações subsequentes com relação à mercadoria acabada, até o seu consumo final. Tanto é assim, que algumas legislações estaduais expressamente excluem do regime de substituição tributária as operações que destinam mercadorias a estabelecimento industrial para emprego em processo de industrialização como matéria-prima, produto intermediário ou material de embalagem, conforme consta, por exemplo, na legislação de Santa Catarina, no art. 16, III, do Anexo 3, do Regulamento de ICMS, Decreto 2.870/01.

“Art. 16. O regime de substituição tributária não se aplica:

III – às operações que destinem bens e mercadorias a estabelecimento industrial para emprego em processo de industrialização como matéria-prima, produto intermediário ou material de embalagem, desde que este estabelecimento não comercialize o mesmo bem ou mercadoria;”

Aqui vale uma ressalva aos termos da decisão do TJ/RS, que manteve o lançamento, sob o fundamento de que a somente não se sujeitariam ao ICMS as operações de entrada de energia elétrica destinada “à sua  própria industrialização ou comercialização.” Não é isso que prevê o art. 33, II, a da LC 87/96. Há, salvo melhor juízo, um equívoco nesta abordagem.   

Portanto, toda esta problemática com relação à incidência do ICMS nas operações subsequentes no destino não foram enfrentadas pelo STF. A tese foi construída à margem dessa discussão.

Resta então analisar a possibilidade de exigência da diferença de alíquota (DIFAL) acima apontada, incidência que está prevista no art. 155, § 2º, VII, VIII, “a” e “b” da CF, conforme transcrição abaixo.

“ Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: 

[...]

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;         

[...]

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: 

[...]

VII - nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual;  

VIII - a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o inciso VII será atribuída: 

  1. ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto;        
  2. remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto;”

De imediato, houvesse a incidência da diferença de alíquota, a responsabilidade pelo recolhimento seria do destinatário das mercadorias, e não da empresa autuada, conforme disposto na legislação transcrita, outra controvérsia para a qual não se encontra uma posição nos fundamentos da decisão.

Mas não é só isso. Entre os pressupostos de materialidade da incidência da diferença de alíquota, há a necessidade de que os bens ou serviços adquiridos, em operação interestadual, sejam destinados a consumidor final, por deixar de integrar o ciclo produtivo e serem  consumidos ou utilizados pelo adquirente na sua atividade de apoio administrativo. Neste ponto o interesse do analista é enfocado para a definição de consumidor final, para dar fundamentos à  cobrança da diferença de alíquota.

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Ora, a diferença de alíquota tem por objetivo a tributação no destino, de forma parcial. Nas operações interestaduais para consumidor final, não houvesse a diferença de alíquota, toda a arrecadação ficaria com o Estado de origem; já com a diferença de alíquota, o Estado de destino compartilha da arrecadação, com relação ao valor resultante da diferença entre a alíquota interestadual e a interna do Estado de destino. Estes fundamentos não se fazem presentes quando a mercadoria é adquirida para comercialização, industrialização ou insumos integrativos do setor produtivo que permitem o direito ao crédito do ICMS, cenário em que o Estado de destino participa da arrecadação.

Portanto, há uma linha possível de pensar que a energia elétrica, quando consumida  na atividade de industrialização, com direito a crédito do ICMS (art. 33, II, b, LC 87/96), se for o caso, repele o diferencial de alíquota, porque presume-se a ocorrência de operações tributáveis subsequentes no Estado destino, em regime da não cumulatividade do imposto. Nesta concepção, o consumidor final deve ser entendido como aquele que utiliza a mercadoria adquirida numa condição que não admite direito a crédito. 

Logo, há duas razões controversas com relação à exigência da DIFAL, que não foram enfrentadas no voto: 1) a ausência de responsabilidade pelo recolhimento do remetente e 2) a possível descaracterização da materialidade de incidência da diferença de alíquota nas aquisições de mercadorias com direito ao crédito.

Portanto, todas estas questões controversas não tiveram um tratamento minudente e específico pelo STF. A tese sugerida está dissociada da questão nuclear da lide, que se forma a partir da discussão da materialidade de incidência do imposto no Estado de destino, ou em decorrência das operações subsequentes, ou do diferencial de alíquota. A rigor, esta matéria nem é de índole constitucional e nem deveria ser submetida ao STF, visto que trata da materialidade de incidência do ICMS no destino, sem relação com o controle constitucional de artigos da LC 87/96. Deve se enfatizar que a declaração de inconstitucionalidade de artigos desta Lei Complementar, com relação às operações interestaduais com energia elétrica, em nada contribui para a solução do caso, visto que esta discussão enfoca as operações subsequentes no Estado de destino e não as operações promovidas pelo contribuinte remetente, estas sim atingidas pela imunidade em debate.

Importa lembrar que cabe ao STF, através de sua decisão em rito de repercussão geral,  informar aos contribuintes sobre o tratamento tributário a ser observado pelo destinatário, com relação às mercadorias arroladas na LC 87/96 como imunes ao ICMS, nas operações interestaduais, entre as quais a energia elétrica: se é caso de exigência do ICMS-ST ou DIFAL, ou de nenhuma das hipóteses. Sem esta informação, a decisão adensa ainda mais a incerteza e não contribui para uma almejada segurança jurídica para o tema específico.   

Concluindo, as reflexões externadas neste  artigo resultam da análise da minuta de voto do Plenário Virtual de 27/07/2020, dos seus fundamentos e tese, o que evidentemente representa uma visão limitada do caso.

O que se pretende, em última análise, é estabelecer o debate sobre esta matéria, com  uma possível resposta para as indagações formuladas neste artigo, o que passa necessariamente por uma  apreciação das normas de regência com o devido detalhamento, visando a segurança jurídica tanto para o contribuinte como para a Fazenda Pública.

Sobre o autor
Deonísio Koch

Advogado tributarista, ex-conselheiro titular do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina – TAT, ex-auditor fiscal e professor de Direito Tributário, Tributos Estaduais e Processo Administrativo Tributário. e-mail: [email protected] ou [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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