A descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal

Uma análise a partir do Recurso Extraordinário 635659

14/08/2020 às 15:50
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O artigo tem por escopo analisar a política de drogas no Brasil, através do Recurso Extraordinário 635659 que está em pauta no Supremo Tribunal Federal, discutindo sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.

1 INTRODUÇÃO

Em que pese a vasta complexidade dos diversos trabalhos acadêmicos versando sobre as drogas, bem como a quantidade de artigos científicos já publicados, os quais incontáveis pesquisadores renomados e de diferentes áreas observaram atentamente as nuances do tema. Assevera-se, todavia, que ainda há espaço para abordagem do tema, uma vez que o problema deve ser analisado através de outras perspectivas.

De proêmio, cumpre destacar a imprescindibilidade da utilização de outros campos do saber, interdisciplinares ao Direito para análise do tema proposto.

Entende-se por “guerra às drogas”: uma política de implementação de respostas violentas e imediatas das sociedades, como forma de combate, repressão e prevenção dos problemas supostamente ocasionados por elas. (FRAGA, 2007)

Antes de adentrarmos ao objeto de estudo é preciso remontar a algumas questões importantes para a compreensão do tema.

A atual política de drogas, vigente no país desde 2006, é conhecida por assumir postura combativa contra às drogas, com o fito de inibir o consumo e o tráfico de drogas, já que a mercancia ilícita ajuda a financiar o crime organizado. Todavia, a realidade brasileira é outra. Na atualidade é possível comparar o Brasil a uma verdadeira “cracolândia”: em todo território nacional é fácil ter acesso a aquisição dos entorpecentes. Logo, isso dificulta no gerenciamento da política, bem como da localização dos grandes responsáveis pela existência do tráfico de drogas.

As abordagens e apreensões policiais realizadas contra o tráfico, grande maioria obtidas por denúncias anônimas, não são aptas a apurar as verdadeiras origens da droga, ou até mesmo os eventuais donos dos entorpecentes. Nessa toada, os usuários são facilmente confundidos com mega-traficantes do mercado ilegal.

A situação do usuário em meio a esse fogo cruzado é de vulnerabilidade, pois além de ser criminalizada sua conduta, o Estado e a própria população não os acolhem da maneira que se é esperado, sobretudo pelo viés educativo.

Como reflexos da atual política, temos o aumento do uso, devido à ausência de políticas públicas de tratamento e educação e o encarceramento em massa da população negra e jovem.O tema é tão recorrente que se encontra em pauta no Supremo Tribunal Federal desde 2011. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo pugna pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, a qual faz menção ao consumo pessoal.

O presente trabalho pretende abordar tais nuances, sobretudo de forma crítica, ao passo que a partir da análise dos autos do processo do Recurso Extraordinário; dos votos proferidos pelos Ministros; da intervenção dos amigos da Corte, poderemos enriquecer o debate com uma análise interdisciplinar.

Observa-se que até o momento foram realizados apenas três votos frente a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da dita Lei de drogas, ao passo que todos votos pugnaram, em suma, pela descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, inclusive o voto do relator do processo, o Ministro Gilmar Mendes.

Analisaremos, em breve síntese, os fundamentos históricos que implementou e contribuiu para a atual política. Assim também, será analisado o trâmite processual do Recurso Extraordinário 635659, desde sua fase inquisitória até os votos dos três Ministros. Atualmente, o Recurso Extraordinário encontra-se com vista ao gabinete do Ministro Alexandre de Moraes, e não há previsão para conclusão do seu voto.

Na condição de Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, já manifestou resistência quanto a descriminalização do consumo de drogas. Essa ideia repressiva foi mostrada nas imagens de um vídeo disponível na internet em que ele aparece cortando pés de maconha no Paraguai, quando ainda era Ministro da Justiça no ano de 2016. (JUSTIFICANDO, 2016)

Todavia, agora seu local de fala é diverso daquele promovido como Ministro da Justiça no ano de 2016. O Ministro poderá ser o primeiro a ir contra as ementas dos votos dos seus pares na Suprema Corte.

A liberdade de expressão, sobretudo do pensamento que é atributo da espécie humana, permite a reflexão filosófica daquilo que somos hoje através do estudo do ontem. Aprendemos também com os ensinamentos de Foucault, a materializar este exercício mental, sobretudo encontrar mecanismos de problematização das coisas:

Problematização não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um objeto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política etc.) (FOUCAULT, 2010, p. 242)

Foucault, ao longo de todas as suas obras, almejou a ruptura dos conceitos preestabelecidos, ocasião em que observou a oportunidade de experimentar intensivamente o pensamento, rompendo os paradigmas iniciais. Segundo Foucault, o pensamento:

O pensamento não é o que se presentifica em uma conduta e lhe dá um sentido: é, sobretudo, aquilo que permite tomar distância em relação a essa maneira de fazer ou de reagir, e tomá-la como objeto de pensamento e interrogá-la sobre seu sentido, suas condições e seus fins. O pensamento é liberdade em relação àquilo que se faz, o movimento pelo qual dele nos separamos, constituímo-lo como objeto e pensamo-lo como problema. (FOUCAULT, 2010, pp. 231-232)

Além disso, conforme explicitado em um artigo de cunho filosófico, o autor Correio abarca sobre a genealogia, a história e a problematização de Foucault. Vejamos:

[...]através ainda de uma tática genealógica, opera na busca por uma nova reconfiguração das forças, pela desestabilização das relações do poder no campo de nossa ética, assumindo ares de uma atitude política. Ao lançar novos saberes no campo em que se dão as lutas, que emergem desse novo modo de olhar a história, Foucault acaba produzindo um tensionamento em toda racionalidade que rege nossas práticas e possibilita-nos pensar o campo ético como espaço de resistência, na recusa por aquilo que se é e na procura por uma reinvenção de si[...] (CORREIO, 2014, p. 220) 

Pois bem, após essa breve explicação,  podemos problematizar o tema, delimitando outros caminhos a serem trilhados, visando o gerenciamentodos problemas das drogas, na procura de rompimento de conceitos preestabelecidos. 

2. O “CTRL + C E CTRL + V” DA POLÍTICA DE GUERRA AS DROGAS.

Ao longo de toda história, a política no Brasil foi inspirada nas experiências europeia e norte-americana. Isso mostra o quão nossas políticas práticas são ultrapassadas, antiquadas e inferiores, a ponto de deixar de lado a nossa própria cultura e costumes, adotando políticas exteriores. Esta vertente foi muito bem delimitada a partir dos ensinamentos de Karina Kuschnir, mestra e doutora em antropologia social pelo Museu Nacional, UFRJ: 

Categorias como "mandonismo", "coronelismo", "clientelismo", entre outras, trazem embutidas a ideia de que as nossas práticas políticas são imperfeitas, atrasadas ou inferiores. Trata-se de classificações que tomam por base o princípio de que as sociedades modernas devem estar comprometidas com os princípios democráticos universais inspirados nas experiências europeia e norte-americana. Desse ponto de vista, o clientelismo será sempre visto como sintoma de nosso estágio de "subdesenvolvimento" e, portanto, um problema para a "modernização" da política. (KUSCHNIR, 2007) (grifo nosso).

A política brasileira é atrasada, no sentido de estar atualmente presenciando os mesmos problemas que apresentavam os Estados Unidos no início do século XIX . Incompetente, a ponto de não saber que não precisa cometer, ou pelo menos, devem-se evitar, os mesmos erros cometidos pelos países pioneiros desta política xenofóbica comprovadamente ineficaz.

Após a 13º emenda à Constituição dos Estados Unidos, aprovada pelo senado em 8 de abril de 1865, a qual aboliu oficialmente e continua a proibirem em todo território americano a escravatura e a servidão involuntária, essa última exceto como punição por um crime, surtiram efeitos irreparáveis à dignidade da pessoa humana que serão apontados a seguir. Assevera a supramencionada emenda: “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”.[2] (ESTADOS UNIDOS, 1865)

Embora a grande potência mundial política tenha avançado nesse quesito – quanto à abolição da escravatura - na prática gerou diversos problemas, ao passo que podemos destacar a 13ª emenda à Constituição dos Estados Unidos[3] como marco histórico, considerado estopim de muitos problemas, inclusive a xenofobia, os quais futuramente iriam ocasionar alguns reflexos. Já dizia Saramago: “É assim a vida, vai dando com uma mão até que chega o dia em que tira tudo com a outra”.

Não demorou muito para se criar mecanismos de discriminação racial, principalmente contra os negros, visando sua distinção, exclusão, restrição, ou até preferência baseadas em raça, inclusive inviabilizando espaços na economia. As chamadas leis Jim Crow (ESTADOS UNIDOS, 1876-1965) surgiram de modo a implementar nos estados do sul dos Estados Unidos, políticas que institucionalizaram a segregação racial, afetando afro-americanos, asiáticos e outro grupos minoritários. A referida Lei visava satirizar a raça e cultura negra, expondo-os ao ridículo. As leis Jim Crow vigoraram entre 1876 e 1965, quando revogada pelo Civil Rights Act de 1964.

Em meados da década de 70, o presidente Richard Nixon, declarou guerra às drogas, passando a perseguir as populações mais pobres nos subúrbios dos Estados americanos.       

O Brasil passou a adotar diversas políticas dos países europeus e norte-americano. Essa migração de política de outros países mais subdesenvolvidos, por sua vez, não surtia efeitos práticos positivos, uma vez que a nação crescia prematuramente, não conseguindo avançar em suas políticas públicas sociais. Até os dias atuais a resposta adotada foi o “Ctrl + C e Ctrl + V[4] de uma política de drogas estrangeira que se demonstra completamente desalinhada com o nível de desenvolvimento político sociocultural do país. Política essa que é causa do genocídio de um grupo historicamente vulnerabilizado e que em nada contribui para a prevenção do uso de drogas.

 3  ANÁLISE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 635659. 

Após essas considerações iniciais críticas, passaremos a analisar o processo objeto de estudo que trata do crime previsto no artigo 28[5] da lei 11.343/06, em que figura como réu um detento[6] da penitenciária de Diadema-SP.

O artigo 28 da referida Lei alude: “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar será submetido às penas de advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços a comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativeras ações caracterizadoras do tipo penal, Logo, apurou-se que a conduta do agente se enquadrava em um desses verbos constantes do artigo 28. 

O suposto delito foi cometido nas dependências da Penitenciária de Diadema. Segundo o inquérito policial, os agentes penitenciários, após revista de rotina nas celas, localizaram 3 gramas de cannabis sativa L, substância popularmente conhecida como maconha. Em sede policial, os agentes apresentaram a seguinte versão sobre os fatos:

No dia 21/07/2009, por volta das 18:20 minutos, durante procedimento de rotina, foi encontrada na cela 03 do Raio 21, 01 invólucro de substância aparentando ser entorpecente[..]. Ante ao exposto, o autor, Francisco, assumiu ser proprietário da substância entorpecente, utilizando-a para o uso pessoal (STF, 2011, p. 03)

Segundo consta no boletim de ocorrência, constatou-se que a substância entorpecente encontrava-se dentro de um marmitex que estava no interior da cela. A cela estava ocupada por 33 detentos, mas apenas o réu informou ser proprietário do entorpecente e, assim,  foi conduzido ao distrito policial. 

Nesta oportunidade foram ouvidos os agentes policiais, os quais apresentaram a versão descrita acima e o autor assumiu a propriedade da droga, apresentando-lhes versão coincidente com a dos agentes penitenciários. A substância foi encaminhada para análise pericial, a fim de verificar se realmente se tratava de substância entorpecente. Após, através de análise química toxicológica, evidenciou-se a presença de tetrahidrocanabinol, responsável pelos principais efeitos farmacológicos da maconha. 

Os autos foram encaminhados para o representante do Ministério Público para eventual oferecimento da denúncia.

3.1 Do Recurso Extraordinário

Não se conformando com os termos do acórdão, a combativa Defensoria Pública interpôs Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 102, III, “a”, da Constituição Federal, isto porque a sentença condenatória sustentada em segundo grau contrariou a Constituição Federal. Conforme observado, o pequeno caso da cidade de Diadema dirigia-se rumo à Suprema Corte do país.

A priori, fez-se presente todos os pressupostos de admissibilidade para interposição do presente recurso extraordinário, quais sejam: o cabimento do recurso; o prequestionamento da matéria e a repercussão geral.

O Defensor Público designado para o feito sustentou sua ideia inicial com firmeza e audácia desde o início da demanda, pois sabia o impacto jurídico que tal recurso ocasionaria ao país.

Em estreita síntese do recurso extraordinário, a Defensoria apontou o artigo 28 da lei de drogas como ofensa ao direito de liberdade individual, bem como abarcava que tal conduta não ocasione lesividade alguma aos bens jurídicos tutelados. Citando Roxin, para embasar o posicionamento:

Só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral[...]. A conduta puramente interna, ou puramente individual – seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente – falta lesividade que pode legitimar a intervenção penal.” (ROXIN apud BATISTA, 2002, p. 91)

Posto isso a Defesa pugnou pelo provimento do recurso, o que implicaria no reconhecimento da violação do direito à intimidade e vida privada, e, por conseguinte, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06, portanto, reformando-se os termos do acórdão que manteve o teor da sentença condenatória, absolvendo-se o recorrente por atipicidade da conduta, nos termos do artigo 386, III, do Código de Processo Penal.

3.2 Da participação dos Amicus Curiae

Tendo em vista a repercussão em âmbito nacional do tema, diversas entidades apresentaram se à Suprema Corte, na condição de “amigos da corte”, propiciando outras perspectivas de análise do tema, de modo a enriquecer o debate, através da interdisciplinaridade do tema controvertido.

Amicus Curiae, nada mais é que um terceiro intervencionista no processo, podendo contribuir com informações técnicas ou, ainda, defender interesses de grupos representados pelos próprios amigos da corte. É claro que os amigos da corte não podem intervir em processos dos quais sejam diretamente ou indiretamente afetados pela decisão tomada.   Nesta senda, ingressaram no feito as seguintes entidades: Vivario; Comissão brasileira sobre drogas e democracia; Associação brasileira de estudos sociais do uso de psicoativos; Instituto brasileiro de ciências criminais; Instituto de defesa do direito de defesa; Conectas direitos humanos; Instituto sou da paz; Instituto terra trabalho e cidadania; Pastoral carcerária; Associação brasileira de lésbica, gays, bissexuais, travestis e transexuais; Associação dos delegados de polícia do brasil.

Em seção plenária na Suprema Corte, foram abertas oportunidades de fala, de modo a sustentar a opinião das instituições frente ao objeto de estudo proposto, admitindo-se, ainda, memoriais escritos de cada instituição para integrar o Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal.

4. ANÁLISE DOS VOTOS PROFERIDOS NO BOJO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 635659

Neste capítulo será realizado a análise dos votos dos ministros que já proferiram sua decisão junto ao STF. Serão suscitados seus pensamentos jurídicos e opiniões referente ao problema apresentado no recurso.   

Sendo reconhecida repercussão geral do tema, o Recurso Extraordinário foi distribuído sob os cuidados do Ministro Gilmar Mendes, que recebeu o recurso, atento aos pressupostos de admissibilidade do recurso, e com fundamento legal no artigo 102, III, “a”, que trata de matérias que contrariam o dispositivo constitucional  (BRASIL, 1988).

Foi realizado debates orais na Suprema Corte, com participação dos representantes do amicus curiae, procuradoria geral do estado e Defensoria Pública. Após, abriu-se vista para o relator do processo com intuito de proferir o seu voto referente aos fatos narrados e discutidos ao longo de todo o deslinde processual.

4.1 Voto do Ministro Relator Gilmar Mendes

Inicialmente, destaca-se que o “voto do Relator” é um dos tópicos mais importantes do presente trabalho, haja vista tratar-se de análise jurídica de um local de fala privilegiado pelo ordenamento jurídico, ou seja, não há pessoas mais qualificadas em âmbito nacional para argumentar sobre assuntos que visam a garantia e a guarda da Constituição Federal.

Logo, necessário que todos os militantes da área jurídica, no mínimo, devam respeitar a opinião exclamada, tentando interpretar os motivos pelos quais levaram ao entendimento do membro do Supremo Tribunal Federal.

Pelo fato do presente trabalho, desde o início, apresentar observações críticas a atual política de drogas, pode ser considerado marco histórico a mera possibilidade de análise plúrima da matéria amplamente controvertida.

É claro que o fato do relator votar a favor ou contra as ideologias defendidas neste trabalho não torna o tema uma verdade absoluta, mas expressa a evolução da interpretação das normas pelo poder judiciário tendo como base o atual contexto histórico, para além de visibilizar hipocrisias presentes na sociedade brasileira e em uma série de políticas estatais responsáveis por mazelas sociais.

É fato também que a crise política vem acarreando outras diversas crises no país. Atualmente até se pode falar em crise no poder judiciário, ante ao congestionamento de processos. Por parte, a atual política de drogas contribui para o congestionamento dos processos no poder judiciário. 

Passando-se a análise do voto do relator, o Ministro Gilmar Mendes proferiu análise dos autos, em suma, atento ao controle de constitucionalidade e repercussão geral do tema - como todo tema discutido na Suprema Corte - tendo em vista “a demanda e a oferta de drogas no Brasil tratar-se de questões de Estado, em razão dos seus impactos negativos nas instituições nacionais”. De acordo com o artigo 102, § 3º da Constituição Federal:

No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrara repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros (BRASIL, 1988).

Visando a legitimação da atuação do poder judiciário às questões que, a priori, deveriam ser tratados pelo poder Legislativo, o relator fundamentou seu voto, alegando se tratar de caso de omissão do poder público, ao passo que não adota nenhum posicionamento frente ao problema que é realidade há certo tempo, ou até mesmo, omisso no sentido de não criar iniciativas de implementação de políticas produtivas para a sociedade, que apresentem soluções práticas. Sobre o controle de constitucionalidade, o relator asseverou em seu voto:

 [...]com isso, abre-se a possibilidade do controle da constitucionalidade material da atividade legislativa também em matéria penal. Nesse campo, o Tribunal está incumbido de examinar se o legislador utilizou de sua margem de ação de forma adequada e necessária à proteção dos bens jurídicos fundamentais que objetivou tutelar[...] (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RExt 635659 SP 2011/018946-6. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 2015, p. 6)

O Ministro apontou a Corte Constitucional alemã como paradigma, quando do controle de constitucionalidade, no sentido de que a admissão de uma reclamação constitucional pressupõe a demonstração, “de maneira concludente, de que o Poder Público não adotou quaisquer medidas preventivas de proteção, ou que evidentemente as regulamentações e medidas adotadas são totalmente inadequadas ou completamente insuficientes para o alcance do objetivo de proteção.” (2015, p. 7).

Em outras palavras, o relator explicitou a legitimidade da Corte em atuar, quando provocada, em casos de latente omissão do poder público em ausência de adoção de medidas em face da proteção dos bens jurídicos penalmente tutelados. Reiterou os seguintes argumentos em seu voto: 

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[...]No âmbito do controle de constitucionalidade em matéria penal, deve o Tribunal, portanto, na maior medida possível, interar-se dos diagnósticos e prognósticos realizados pelo legislador na concepção de determinada política criminal, pois do conhecimento dos dados que serviram de pressuposto da atividade legislativa é que é possível averiguar se o órgão legislativo utilizou-se de sua margem de ação de maneira justificada[...] (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RExt 635659 SP 2011/018946-6. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 2015, p. 9)

Ainda em sede de controle de constitucionalidade, em análise comparativa à Corte alemã, o relator teceu algumas considerações quanto à atuação da corte sob o paradigma dos três níveis, a saber: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). (STF, 2015)

A grande discussão, a priori seria de que o Judiciário estaria realizando atribuições do poder Legislativo, tapando as brechas de possíveis críticas devido a uma falsa percepção de confusão entre os poderes, a saber: Judiciário x Legislativo. Todavia, como justificativa plausível da atuação do Judiciário, em contrapartida a omissão do poder público, o juiz asseverou quanto aos três níveis supracitados adotados pela Corte alemã, de modo a demonstrar a legitimidade do poder Judiciário, in casu. Em análise aos três níveis dos graus de intensidade no controle de constitucionalidade, segundo a corte alemã:

[...]No primeiro nível , o controle realizado pelo Tribunal deve reconhecer ao legislador uma ampla margem de avaliação, valoração e conformação quanto às medidas que reputar adequadas e necessárias. A norma somente poderá ser declarada inconstitucional quando às medidas adotadas pelo legislador se mostrarem claramente inidôneas para a efetiva proteção do bem jurídico fundamental[...] a Constituição pretende garantir de maneira imutável, ou seja, ela não pode levar uma redução das liberdades individuais que são garantias nos direitos fundamentais individuais, sem as quais uma vida com dignidade humana não é possível, segundo a concepção da Grundgesetz (BVerfGE 50, 290). (STF, 2015, p. 7)

[...]No segundo nível, o controle de justificabilidade está orientado a verificar se a decisão legislativa foi tomada após uma apreciação objetiva e justificável de todas as fontes de conhecimento então disponíveis (BVerfGE 50, 290). (STF, 2015, p. 8)

[...]Nesse terceiro nível, o Tribunal examina, portanto, se a medida legislativa interventiva em dado direito fundamental é necessariamente obrigatória, do ponto de vista da Constituição, para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes. O controle, aqui, há de ser mais rígido, pois o Tribunal adentra o próprio exame da ponderação realizada pelo legislador[...] (STF, 2015, p. 11)

Após os pressupostos de admissibilidade do presente recurso delineados pelo relator, este passou a analisar o bem jurídico tutelado o qual ensejaria o dano da conduta de porte de drogas para consumo pessoal. 

Por tratar-se de crime de perigo abstrato, o principal argumento utilizado para a criminalização das condutas previstas no artigo 28 da lei de drogas é, senão, a colocação de risco a saúde e a segurança pública da sociedade, este mesmo argumento fora sustentado pelo Ministério Público durante todo o deslinde processual, em todos os graus de jurisdição, até no presente Recurso Extraordinário.

Salienta-se, entretanto, que ao longo do trâmite processual não houve por parte do Parquet a apresentação de proposta distinta ao problema em questão, uma vez que o discurso do senso comum é amplamente observado e enraizado pelo local de fala das pessoas. Todavia, tais discursos sempre excluem minorias, assim então, promovendo a desigualdade social, e, sobretudo a seletividade penal. 

Conforme bem acentuado pelo Ministro relator, o seu entendimento é divergente daquele apontado pelo Ministério Público, conforme o relator: 

[...]Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, seleciona grupos ou classes de condutas que geralmente trazem consigo o indesejado perigo a algum bem jurídico fundamental (STF, 2015, p. 12).

Neste ínterim, o Ministro passou a apontar dados que demonstram a ineficácia da atual política de drogas. Assim também, utilizou como referência o projeto Lei nº 7.134/02, o qual se transformou na atual Lei de Drogas, afirmando que à época do referido projeto, não havia margens seguras a indicar a sustentabilidade da incriminação dos usuários, pois não houve crescimentos explosivos de modo a alarmar problemas quanto ao porte de drogas para uso pessoal, conforme os trechos a seguir da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, Parecer do Relator, Deputado Paulo Pimenta:

[...]O crescimento significativo do consumo de drogas no Brasil vem sendo observado, quando se comparam levantamentos nacionais de diferentes períodos feitos entre estudantes brasileiros do ensino fundamental e médio. De 1987 a 1997, o uso na vida de maconha passou de 2,8 para 7,6% o de cocaína subiu de 0,5% para 2% e o anfetamínicos de 2,8% a 4,4%. Não propriamente crescimentos explosivos, mas marcantes[...]

[...]O uso indevido de drogas implica, quase sempre, em contato precoce com o mundo da ilegal idade e da violência e deixa, por vezes, um legado de sofrimento e vulnerabilidade social para o indivíduo e sua família[...] (STF, 2015, p. 23)

Notável que a atual política de drogas é direcionada a um público alvo, a saber: o pobre, negro, entre outras minorias. Todavia, destacou o relator, que os crimes de perigo abstrato foram valorados, pela Suprema Corte, sob enfoque do princípio da proporcionalidade (RE 583.523).

Neste sentido, não basta apenas que a conduta apresente algum perigo abstrato, mas sim, deve-se analisar a proporcionalidade que aquele dano pode ocasionar. Como já delimitado, trata-se de perigo abstrato de dano à saúde pública e segurança pública. Contudo, segundo o relator, a realidade brasileira demonstra que o porte pessoal para consumo próprio não ocasiona potencial de ofensividade ou lesividade a sociedade, salvo a saúde do próprio consumidor do entorpecente.

Feitos os esclarecimentos iniciais, o Ministro relator passou a apontar políticas que estão sendo tomados por diversos países europeus, inclusive em alguns Estados norte-americanos – pioneiros da política de guerra às drogas - no sentido de adotar novos programas e práticas visando amenizar os impactos ocasionados pela atual política, recorrendo-se a políticas públicas restaurativas denominadas de redução de danos e de prevenção de risco. Conforme asseverou o Ministro:

[...]Subjacente ao processo de descriminalização, vem se multiplicando, em muitos países, com o apoio da ONU, a adoção de programas e de práticas que visam mitigar as consequências sociais negativas decorrentes do consumo de drogas psicoativas, legais ou ilegais. A essa prática tem se atribuído a denominação de políticas de redução de danos e de prevenção de riscos[...] (STF, 2015, p. 15)

Neste ínterim, o relator apontou uma relação de países em que a posse para consumo pessoal de entorpecentes não é considerada crime. De acordo com os dados coletados pelo Transnational Institute e Colectivo Estudios Drogas y Dereco (CEDD) e pelo European Legal Database on Drugs/European Monitoring Center for Drugs and Drugs Addiciton.

Percebe-se que diversos países já adotam estas políticas alternativas, uma vez que concluíram que a guerra ás drogas não é eficaz.    

Cogitou o relator, não se tratar da mera legalização do porte de drogas para consumo pessoal, mas sim da descriminalização do uso com políticas de redução de danos e de prevenção, ou seja, retirar tal conduta da seara penal, adotando outras medidas mais eficazes.  

Reiterou que a política atual de drogas estabelece que o fator determinante para enquadrar e distinguir as condutas de tráfico e uso está concentrada nas abordagens policiais, e estão sempre seguindo os mesmos padrões de abordagem:

[...]O padrão de abordagem é quase sempre o mesmo: atitude suspeita, busca pessoal, pequena quantidade de drogas e alguma quantia em dinheiro. Daí pra frente, o sistema repressivo passa a funcionar de acordo com o que o policial relatar no auto de flagrante, já que a sua palavra será, na maioria das vezes, a única prova contra o acusado[...] (STF, 2015, p. 19)

Nesta esteira, o ministro criticou o fato de deixar exclusivamente sob a responsabilidade da autoridade policial o critério de distinção entre usuário e traficante:

Conforme confirmado na análise qualitativa de sentenças, os policiais são os responsáveis pela montagem das provas a serem apresentadas nos processos, e quase nunca são questionados em juízo. São eles as únicas testemunhas dos fatos delituosos arrolados na denúncia. Por outro lado, os juízes, de forma quase idêntica, citam julgados para fundamentar a sentença no sentido de prevalecer a palavra do policial para embasar a condenação do acusado. O baixo número de absolvições em primeira instância também comprova essa tese.

(...) Sob esse aspecto [seletividade do sistema penal], o formato da lei penal parece contribuir para tal ocorrência, quando estabelece tipos abertos e penas desproporcionais, pois concede amplos poderes ao policial, tanto para optar entre as diversas categorias de comerciantes de drogas” (STF, 2015, p. 20)

Vislumbrou o relator que, embora o uso de drogas ocasione prejuízos físicos e sociais àqueles que realizam o uso compulsivo das drogas, dar tratamento criminal ao usuário é medida que ofende de modo desproporcional o direito a vida privada, violando a intimidade do indivíduo, conforme aduz o artigo 5º, X, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Assentou ainda, que o usuário de drogas, ao ter contato direto com o traficante quando da aquisição do entorpecente, não pratica conduta comparada ao de tráfico, logo, não se pode imputar ao usuário os malefícios coletivos decorrentes da mercancia ilícita, uma vez que os efeitos da conduta de tráfico afastam-se daquela conduta praticada pelo usuário, assim, o resultado da conduta do usuário deve estar apartada do âmbito penal. 

Ressaltou que o uso de drogas estaria melhor enquadrado no instituto da autolesão, que por sua vez, não é punido no Brasil àquele que atenta contra sua própria vida. Reiterou que na atualidade é preciso uma abordagem técnica e interdisciplinar ao assunto, visando à reparação dos latentes danos ocasionados à sociedade e ao Estado.

Outrossim, asseverou que o direito à liberdade não é absoluto, tendo em vista o princípio da supremacia do interesse público. Entretanto, a conduta do usuário não é sobremaneira grave a ponto de ser punida criminalmente. Os usuários encontram-se em uma situação de fragilidade, em meio ao “fogo cruzado” entre o Estado e os traficantes.

Além de andar na “contra-mão” dos objetivos das políticas públicas nacionais, a política de guerra às drogas rotula usuário como criminoso, dificultando também sua reinserção ao convívio em sociedade.

Relatou ainda, que os usuários sofrem preconceitos pela sociedade, ao passo que são rotulados de “criminosos”, quando na verdade o Estado se omite, realizando a constante e violenta repressão. Deste modo, a aproximação do usuário junto ao Estado fica eventualmente distante de ocorrer, já que se o usuário procurar ajuda estatal, certamente será no mínimo condenado e penalizado pela sua conduta.

O relator apontou um estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEVUSP), o qual se constatou certo padrão nos flagrantes por tráficos de drogas:

Na sua maioria, os flagrantes são realizados pela polícia militar, em via pública e em patrulhamento de rotina. Revela a pesquisa, também, que se prende, no geral, apenas uma pessoa por ocorrência e a prova se limita, de regra, ao testemunho da autoridade policial que efetuou a prisão (STF, 2015, p. 20).

Após extenso voto do relator, que logicamente concluiu pelo provimento do recurso extraordinário, nos seguintes termos:

  1.  Declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/06, de forma a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal. Todavia, restam mantidas, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, com natureza administrativa;
  2.  Conferir, por dependência lógica, interpretação conforme à Constituição ao art. 48, §§1º e 2º, da Lei 11.343/06, no sentido de que, tratando-se de conduta prevista no art. 28 da referida Lei, o autor do fato será apenas notificado a comparecer em juízo;
  3.  Conferir, por dependência lógica, interpretação à Constituição ao art. 50, caput, da Lei 11.343/06, no sentido de que, na prisão em flagrante por tráfico de droga, o preso deve, como condição de validade da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, ser imediatamente apresentado ao juiz;
  4.   Absolver o acusado, por atipicidade da conduta; e
  5.  Determinar ao Conselho Nacional de Justiça as seguintes providências:
  1. Diligenciar, no prazo de seis meses, a contar desta decisão, por meio de articulação com Tribunais de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, Ministério da Justiça e Ministério da Saúde, sem prejuízo de outros órgãos, os encaminhamentos necessários à aplicação, no que couber, das medidas previstas no art. 28 da Lei 11.343/06, em procedimento cível, com ênfase em atuação de caráter multidisciplinar;
  2. Articulação, no prazo de seis meses, a contar desta decisão, entre os serviços e organizações que atuam em atividades de prevenção do uso indevido de drogas e da rede de atenção a usuários e dependentes, por meio de projetos pedagógicos e campanhas institucionais, entre outras medidas, com estratégias preventivas e de recuperação adequadas às especificidades sociocultarais dos diversos grupos de usuários e das diferentes drogas utilizadas.
  3. Regulamentar, no prazo de seis meses, a audiência de apresentação

do preso ao juiz determinada nesta decisão, com o respectivo monitoramento;

  1. Apresentar a esta Corte, a cada seis meses, relatório das providências

determinadas nesta decisão e resultados obtidos, até ulterior deliberação. (STF, 2015).

Portanto, nestes termos o relator do processo deu provimento ao recurso extraordinário, encerrando o seu voto.

Insta salientar o trabalho do Ministro Gilmar Mendes, pois com brilhantismo e interdisciplinaridade decidiu sobre tema considerado tabu na sociedade. Embora muitos critiquem a descriminalização das drogas, necessário reconhecer o excelente trabalho interdisciplinar do relator do feito.

Todavia, a partir de seu voto, o qual julgou inconstitucional o porte de drogas para uso pessoal de qualquer droga, diferentemente do tema aventado no recurso que tratava em específico da cannanis sativa L.

4.2 Voto do Ministro Edson Fachin

Dando início a análise do voto do Ministro Edson Fachin, percebe-se a utilização da mesma crítica apontada pelo relator do recurso no voto anterior, isto porque após debates e diálogos com os poderes Executivo e Legislativo, além de órgãos, instituições e especialistas em diversas áreas, chegaram-se a conclusão da necessidade de encarar o problema das drogas a partir de outras perspectivas.

Todavia, como toda linha de raciocínio seguida por pensadores distintos pode haver divergências em alguns aspectos específicos, sem ocorrer impacto no tema principal. Não diferentemente, o ministro Edson Fachin achou por bem restringir o objeto de análise, atentando-se em seu voto exclusivamente como objeto material a droga abarcada no recurso (a maconha).

Conforme analisado no voto do relator, este fez menção a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, ou seja, o porte de qualquer droga para consumo pessoal estaria sendo descriminalizado.

Conforme já aventado, a descriminalização não consiste na pura e simples legalização, mas implica na retirada da legitimação do direito penal tutelar o assunto.

O ministro destacou no início do seu voto a seguinte frase: “A dependência é o calabouço da liberdade mantida em cárcere privado pelo traficante”. Em outras palavras, os usuários acabam ficando em posição de vulnerabilidade, conforme já acentuado pelo Ministro Gilmar Mendes, ao passo que passam a ser refém dos traficantes que são a única fonte para aquisição das drogas. Assim também, assenta que a manutenção da criminalização do porte para consumo próprio somente solidifica o tráfico de entorpecentes, haja vista a grande demanda da procura de viciados pela droga.

Outro apontamento importante realizado pelo Ministro Fachin é que a atual política de drogas, de acordo com Carlos Santiago Nino, utiliza-se de três argumentos independentes de modo a incitar a penalização do consumo pessoal de drogas, quais sejam: um argumento perfeccionista, um argumento paternalista e, por fim, um argumento de defesa da sociedade. Segundo o autor:

[...]em primeiro lugar, detém-se em um argumento perfeccionista quando justifica o tratamento penal do consumo baseado na reprovabilidade moral dessa conduta. Vale dizer, o uso de drogas é considerado um comportamento moralmente reprovável e, por isso, deve ser combatido por meio de uma resposta penal do Estado[...] [...]em segundo lugar, se atém em um argumento paternalista quando justifica o tratamento penal do consumo baseado na reprovação , no desicentivo e na prevenção geral que as respostas penais deveriam gerar. Essa tessitura não busca impor um modelo de vida (supostamente) decente como faz o perfeccionismo, mas sim proteger as pessoas contra os danos que o consumo de drogas pode causar a elas[...] Por fim, a criminalização do porte de drogas para uso topa em um argumento de defesa da sociedade quando justifica o tratamento penal do consumo baseado na proteção dos demais cidadãos (incluída ai a família como instituição) que podem sofrer os efeitos ou consequências dos atos  de quem usa drogas[...] (STF, 2015, p. 3)

É claro que o autor dessa tríade apresenta críticas contra os três argumentos  levantados, no sentido de desmascarar esta imposição de um falso moralismo de segurança pública, no qual o Estado colabora na roupagem de administrar estas desmazelas.

A crítica realizada por Carlos Santiago Nino aduz que criminalizar o porte de drogas para uso pessoal representa a imposição de um padrão moral individual que significa uma proteção excessiva que, em suma, nem protege e muito menos previne o uso. Logo, consiste em uma política paternalista indevida e ineficaz.

A partir daí, assentou o ministro em seu voto, a conclusão de que o legislador ao penalizar a conduta de porte de drogas para uso pessoal incorreu no caminho da primazia do Estado sobre o cidadão. Conforme suas palavras:

[...]E essa foi a opção do legislador brasileiro no artigo em discussão. Tomou o caminho da primazia do Estado sobre o cidadão. A tal opção de apesar agregou-se ato executivo que elencou as drogas proscritas. Esse liame foi selado pelo espancamento da dúvida quanto ao caráter de conduta criminosa, consoante assentado neste Tribunal. Legislativo, Executivo e Judiciário fundaram um tripé cuja constitucionalidade vem agora a esse patamar deliberativo, centrado no uso de droga ilícita[...] (STF, 2015)

Posto isto, passou-se a apontar que a autodeterminação individual corresponde a ofensa da esfera de privacidade, intimidade e liberdade da pessoa, salvo a lesão a bem jurídico transindividual ou alheio. Nesta oportunidade utilizou Zaffaroni e Pierangelli como exemplo:

[...]todo direito quer regular a conduta humana em sociedade e comina para que os homens se adaptem a suas regulações. Portanto também, o direito penal tem uma aspiração ética: aspira evitar o cometimento e repetição de ações que afetam de forma intolerável os bens jurídicos penalmente tutelados[...] (STF, 2015, p. 4).       

Além disso, o relator aventou que o artigo 28 da Lei de drogas confronta-se ao menos com duas rotas de tensão: a técnica de incriminação por meio dos crimes de perigo abstrato e o princípio da ofensividade e uma concepção perfeccionista de proteção social do Estado e o direito constitucional à intimidade e à vida privada. Bem como é constatado historicamente que a política de criminalização do uso e posse de drogas representa atitude político-criminal.

A partir desse ponto tem-se a definição que a política incriminadora visa preencher a norma penal em branco por meio de ato administrativo do Ministério da Saúde que irá realizar o controle de substâncias ilícitas, que o faz através de uma Portaria SVS/MS no 344, de 12 de maio de 1998.

Após ampla abordagem, o Ministro Fachin passou a analisar quanto ao controle de constitucionalidade. Asseverou que referida incriminação de porte de drogas para consumo situa-se na delimitação entre o direito penal do autor e do direito penal do fato. Cônscio quão razoável foi ao inserir como modelo o direito penal do autor, tendo em vista o vetor constitucional que não autoriza a penalização da personalidade. Feitas essas considerações, o Ministro chegou a seguinte conclusão:

[...]Chega-se aqui a um ponto nodal: o dependente é vítima e não criminoso germinal. Afigura-se, nessa passada, relevante a separação de mercados e a divisão entre as espécies de drogas.

Dados de suficiente crédito dão ensejo a essa ordem de ideias à luz do grau e da origem de encarceramento. Parte-se de uma realidade carcerária preocupante, levando em conta os conhecidos dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen-junho de 2014[...] (STF, 2015, p. 10)

Ressalvou também, a necessidade da abordagem do problema, sob a perspectiva de tema da saúde pública que, por sua vez, realiza políticas de cuidado da saúde. O Ministro apontou um estudo realizado pelo próprio Ministério da Saúde:

[...]Entendemos que uma política de prevenção, tratamento e de educação para o consumo de álcool e outras drogas necessariamente terá que ser construída na interface de programas do Ministério da Saúde com outros Ministérios, bem como com setores da sociedade civil organizada. Trata-se aqui, de afirmar que o consumo de álcool e outras drogas é um grave problema de saúde

pública[...] (STF, 2015, p. 11)    

O Ministro reiterou a ausência de regulamentação do tema por parte do legislador, bem como da necessidade de taxatividade na lei de drogas, de modo a distinguir parâmetros objetivos de natureza e quantidade pelo qual possibilite a diferenciação entre tráfico e uso. Apontou que é atribuição do legislador realizar tal procedimento de diferenciação.

Exclamou, ainda, que o poder Executivo não deve se eximir de sua responsabilidade de iniciativas de implementações de políticas públicas, uma vez que o poder público tem papel primordial nesta tarefa.

Por fim, o voto do Ministro Fachin foi pelo provimento parcial do recurso, nestes termos:

  1. Declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06, sem redução de texto, específica para situação que, tal como se deu no caso concreto, apresente conduta que descrita no tipo legal tiver exclusivamente como objeto material a droga aqui em pauta;
  2. Manter, nos termos da atual legislação e regulamento, a proibição inclusive do uso e do porte para consumo pessoal de todas as demais drogas ilícitas;
  3. Manter a tipificação criminal das condutas relacionadas à produção e à comercialização      da        droga   objeto  do presente recurso   (maconha)      e concomitantemente declarar neste ato a inconstitucionalidade progressiva dessa tipificação das condutas relacionadas à produção e à comercialização da droga objeto do presente recurso (maconha) até que sobrevenha a devida regulamentação legislativa, permanecendo nesse ínterim hígidas as tipificações constantes do título IV, especialmente criminais do art. 33, e dispositivos conexos da Lei 11.343;
  4. Declarar como atribuição legislativa o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, e determinar aos órgãos do Poder Executivo, nominados neste voto (SENAD e CNPCP), aos quais incumbem a elaboração e a execução de políticas públicas sobre drogas, que exerçam suas competências e até que sobrevenha a legislação específica, emitam, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar da data deste julgamento, provisórios parâmetros diferenciadores indicativos para serem considerados iuris tantum no caso concreto;
  5. Absolver o recorrente por atipicidade da conduta, nos termos do art. 386, III, do Código de Processo Penal.
  6. E por derradeiro, em face do interesse público relevante, por entender necessária, inclusive no âmbito do STF, a manutenção e ampliação do debate com pessoas e entidades portadoras de experiência e autoridade nesta matéria, propor ao Plenário, nos termos do inciso V do artigo 7o do RISTF, a criação de um Observatório Judicial sobre Drogas na forma de comissão temporária, a ser designada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, para o fim de, à luz do inciso III do artigo 30 do RISTF, acompanhar os efeitos da deliberação deste Tribunal neste caso, especialmente em relação à diferenciação entre usuário e traficante, e à necessária regulamentação, bem como auscultar instituições, estudiosos, pesquisadores, cientistas, médicos, psiquiatras, psicólogos, comunidades terapêuticas, representantes de órgãos governamentais, membros de comunidades tradicionais, entidades de todas as crenças, entre outros, e apresentar relato na forma de subsídio e sistematização. (STF, 2015)

4.3 Voto do Ministro Luís Roberto Barroso

Aberta a vista dos autos ao Ministro Barroso, esse iniciou suas anotações para o voto com o seguinte discurso:

Estamos lidando com um problema para o qual não há solução juridicamente simples nem moralmente barata. Estamos no domínio das escolhas trágicas. Todas têm custo alto. Porém, virar as costas para um problema não faz com que ele vá embora. Por isso, em boa hora o Superior Tribunal Federal está discutindo essa gravíssima questão. Em uma democracia, nenhum tema é tabu. Tudo pode e deve ser debatido à luz do dia. Estamos todos aqui em busca da melhor solução, baseadas em fatos e razões, e não em preconceitos ou visões moralistas da vida. (STF, 2015, p. 1)

Após as palavras do Ministro, pelo qual apontou seu ponto de partida, passou-se a análise do recurso, e, desde o início delimitou a questão que irá trabalhar em seu voto, ou seja, utilizando como matéria especificamente a droga em questão (maconha). Destacou a possibilidade de algumas ideias por ele expostas valham para outras drogas. Outras, talvez não.

Tendo isso o Ministro fez menção às terminologias muito utilizadas pelo senso comum, que muitas das vezes, acarreta na discussão moral do tema. Ora, é preciso entender o que se analisa, e o ministro Barroso, felizmente abriu caminho exemplificando de modo sucinto as terminologias utilizadas, quais sejam: descriminalizar, despenalizar e legalizar.

Denota-se, não raro, o senso comum, bem como alguns profissionais, tem certa facilidade ao unificar essas terminologias, fato este que contribui para que o tema não evolua, inviabilizando um debate proveitoso, vez que iniciados os debates quase sempre alguns não deixam de lado os preconceitos enraizados e visões moralistas:

[...]Para a compreensão geral, uma breve unificação da terminologia é conveniente. Descriminalizar significa deixar de tratar como crime. Despenalizar significa deixar de punir com pena de prisão, mas punir com outras medidas. Este é o sistema em vigor atualmente. Legalizar significa que o direito considera um fato normal, insuscetível de qualquer sanção, mesmo que administrativa[...] (STF, 2015, p. 1)

Vale ressaltar aqui que o voto do Ministro Barroso é bem objetivo ao tratar somente quanto a descriminalização, e, ainda tão somente da maconha – objeto do presente recurso, não fazendo menção alguma quanto à legalização das drogas. É corrente equivoco a unificação dessas três terminologias: descriminalizar, despenalizar e legalizar. Conforme o Ministro:

[...]A discussão no presente processo diz respeito à descriminalização, e não à legalização. Vale dizer: o consumo de maconha ou de qualquer outra droga continuará a ser ilícito. O debate é saber se o Direito vai reagir com medidas penais ou com outros instrumentos, como, por exemplo, sanções administrativas. Isto inclui a possibilidade de apreensão, proibição de consumo em lugares públicos, submissão a tratamento de saúde etc. [...] (STF, 2015, p. 1).

Feito a delimitação do objeto, o julgador passou a discorrer quanto à interpretação constitucional. Com ajuda do pragmatismo jurídico e suas características, quais sejam: o contextualismo e o consequencialismo.  O contextualismo consiste que toda e qualquer proposição seja julgada de acordo com as suas necessidades humanas e sociais. Já o consequencialismo, implica que toda e qualquer preposição seja testada através da antecipação das possíveis consequências e resultados.

Nesta mesma esteira, o Ministro destacou que qualquer que seja o critério utilizado – primazia dos direitos fundamentais ou por avaliação pragmática – chega- se a mesma solução do caso.

Acentuou que a guerra às drogas, iniciada na década de 70, implementada pelo governo do Presidente Nixon, nos Estados Unidos, é um fracasso total. Passados mais de 40 anos da dita política, não há nenhum aspecto positivo, qualquer que seja:

[...]A verdade, porém, a triste verdade, é que passamos mais de 40 anos, a realidade com a qual convivemos é a do consumo crescente, do não tratamento adequado dos dependentes como consequência da criminalização e do aumento exponencial do poder do tráfico. E o custo político, social e econômico dessa opção tem sido altíssimo[...] (STF, 2015, p. 3)

Asseverou ainda:

Insistir no que não funciona, depois de tantas décadas, é uma forma de fugir da realidade. É preciso ceder aos fatos. As certezas equivocadas foram bem retratadas em um belo poema de Bertold Brecht, intitulado “Louvor à dúvida” “Não crêem nos fatos, crêem em si mesmos. Diante da realidade, são os fatos que devem neles acreditar.” (STF, 2015, p. 3)

Ora, a partir das colocações do Ministro da Suprema Corte, afigura-se a grande crise política do país, ao passo que o Brasil sofre por não ter uma política de drogas independente, uma vez que as políticas utilizadas em âmbito nacional são idênticas àquelas dos países de primeiro mundo. Portanto, o Brasil utiliza-se de um verdadeiro “ctrl + c” e “ctrl + v[1] da política. Todavia, este ctrl+c e ctrl+v é muito atrasado e não apresenta soluções eficazes. Conforme acentuou em seu voto:

[...]É preciso olhar o problema das drogas sob uma perspectiva brasileira. Olhar o problema das drogas sob a ótica do primeiro mundo é viver a vida dos outros. Lá, o grande problema é o usuário. Entre nós, este não é o único problema e nem sequer é o mais grave. Entre nós, o maior problema é o poder do tráfico, um poder que advém da ilegalidade da droga. E este poder se exerce oprimindo as comunidades mais pobres, ditando a lei e cooptando a juventude. O tráfico desempenha uma concorrência desleal com qualquer atividade lícita, pelas somas que manipula e os pagamentos que oferece. A consequência é uma tragédia brasileira: a de impedir as famílias pobres de criarem os seus filhos em um ambiente de honestidade[...] (STF, 2015, p. 3).

Neste diapasão, passou-se a apontar soluções de médio prazo para neutralizar o poder do tráfico. Achou por bem apontar a seguinte solução: acabar com a ilegalidade das drogas e regular a produção e a distribuição. O ministro apontou um artigo publicado na Folha de São Paulo escrito por Helio Shwartsman, o qual previa a solução eficaz para neutralizar o poder do tráfico. 

Em uma primeira análise, a solução apontada parece-nos impossível de ocorrer no Brasil, já que há um enraizamento do falso moralismo quanto às drogas, fruto do grande Frankensteim[2] criado pelos Estados Unidos, para além do envolvimento de fortes interesses políticos e conservadores de determinadas parcelas da sociedade.

Outro fator importante observado pelo ministro é o superencarceramento de jovens pobres e primários, traficantes de pequena monta – aqueles que trabalham fornecendo as drogas visando trocar sua “mão de obra” pela própria droga. O ministro destacou que a entrada desses jovens de baixa periculosidade nos presídios só propõe que eles cursem a escola do crime, conhecendo quadrilhas e facções que são facilmente encontradas.

 Assim também relatou que o consumidor não deve ser tratado como um criminoso, pois assume o risco que o uso da substância entorpecente provoca. Logo, utilizou de exemplo atividades de alpinismo e mergulho, cujo exercício da atividade oferece risco a quem as pratica.

Tendo feito essas considerações, o julgador passou a iniciar as razões pragmáticas as quais justificam a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. A primeira razão pela qual o julgador entendeu por descriminalizar o porte de drogas para uso, foi senão o fracasso da atual política. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM):

Em contraste com o aumento do consumo de drogas, inclusive a maconha, o consumo de tabaco caiu drasticamente. Segundo dados trazidos pelo IBCCRIM, em 1984, 35% dos adultos consumiam cigarros. Em 2013, esse número caíra para 15%. Informação e advertência produzem, a médio prazo, resultados melhores do que a criminalização. (STF, 2015, p. 4)

Uma segunda razão pela descriminalização é o alto custo para a sociedade. Apura-se que o modelo de criminalização e repressão da atual política, além de ser um fracasso, gera custos altíssimos. Conforme o Ministro:

[...]Da promulgação da Lei de drogas, 2006, até hoje, houve um aumento do encarceramento por infrações relacionadas às drogas de 9% para 27%. Aproximadamente, 63% das mulheres que se encontram encarcerados o foram por delitos relacionados às drogas. Vale dizer: atualmente 1 em cada 2 mulheres e 1 em cada 4 homens presos no país estão atrás das grades por tráfico de drogas. Cada vaga no sistema penitenciário custa, de acordo com o Depen, R$ 43.835,20. O custo mensal de cada detento é de cerca de R$ 2.000. (STF, 2015, p. 5)

Além disso, é necessário um critério objetivo que possa distinguir traficante de usuário. Ora, a atual política demonstra que “ricos com pequenas quantidades são usuários, pobres são traficantes”. Outra preocupação importante à sua guisa, é que a criminalização afeta a saúde pública, uma vez que assume investimentos em políticas de prevenção, educação e tratamento de saúde. O pior disso é que a atual política promove a marginalização do usuário, impossibilitando o acesso a tratamentos. Feito os esclarecimentos das razões pragmáticas apontadas pelo Ministro, concluiu-se “[...] A forte repressão penal e a criminalização do consumo têm produzido consequências mais negativas sobre a sociedade e, particularmente, sobre as comunidades mais pobres do que aquelas produzidas pelas drogas sobre os seus usuários [...]” (STF, 2015, p. 6)

Após sedimentação do entendimento, o julgador realizou análises comparativas com os demais países do mundo, aludindo que os países democráticos e desenvolvidos estão abrandando a política de drogas repressiva, utilizando-se das políticas de redução de danos gerenciamento de danos, as quais apresentam bons resultados (diminuição de consumo entre os jovens) até houve redução da infecção de usuários pelo vírus HIV.

Passados a análise e argumentos interdisciplinares, o julgador enquadrou a criminalização como conflitantes à luz da Constituição, vez que fere ao menos três fundamentos jurídicos, a saber: a violação ao direito de privacidade, a violação à autonomia individual e a violação ao princípio da proporcionalidade. Todos esses já muito bem delimitado por todos os ministros que realizaram seus votos.

O Ministro Barroso utilizou-se da proposta do Ministro Relator Gilmar Mendes, a fim de distinguir o traficante do usuário, quais sejam: 1. o ônus de comprovar a finalidade diversa do consumo pessoal é da acusação. 2. A autoridade que se achar sob a hipótese de aplicação do crime de tráfico, o acusado deve ser submetido imediatamente a audiência de custódia (STF, 2015, p. 11). Todavia, sustentou o Ministro Barroso que apenas tais propostas, a seu ver, são insuficientes. Assim apontou referencial que pode ser seguido como parâmetro. 

Partindo da premissa que critérios objetivos muito baixos aumentariam o problema, de acordo com a realidade brasileira, foi proposta uma referência fixa de 40 gramas e 100 gramas. 40 sendo o critério do Uruguai e 100 gramas adotado pela Espanha. Segundo a ementa do seu voto:

[...]À luz dos estudos e critérios existentes e praticados no mundo, recomenda-se a adoção do critério seguido por Portugal, que, como regra geral, não considera tráfico a posse de até 25 gramas de Cannabis. No tocante ao cultivo de pequenas quantidades para consumo próprio, o limite proposto é de 6 plantas fêmeas[...] (STF, 2015)

O Ministro teceu que seria possível o aumento do consumo em um momento inicial após a descriminalização. Todavia, passado esta fase inicial as estatísticas tendem a cair.

Portanto, não há argumentos para mantença da atual política de drogas. Conforme bem aventado pelo Ministro, todos os receios dos impactos da possível descriminalização do porte para uso pessoal na realidade já estão presentes na sociedade. A criminalização dos usuários, o consumo imoderado, o fácil acesso às drogas, a vulnerabilidade dos usuários, a confusão, por vezes, ao não saber distinguir usuário de traficantes, só tornam o tráfico mais poderoso.

Nesta toada, de acordo com todos os estudos aqui realizados, a descriminalização do usuário é o início de uma política mais humanística, principalmente por restar comprovado tratar-se de política seletiva, a qual sempre apontará aos grupos minoritários: pobres, negros, mulheres, entre outros.  

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise do Recurso Extraordinário 635659 realizada nesse trabalho, chegou-se à conclusão ser necessária a reforma da atual política de drogas. Não há argumentos positivos aptos a manter essa política. 

Como delimitado, com a ajuda do pragmatismo jurídico e filosófico, foram apresentados resultados positivos em contrapartida a atual política de guerra às drogas, mostrando outros meios mais eficazes de enfrentar este problema.

Muitas são as soluções apresentadas para o gerenciamento da questão das drogas, contudo o que não pode persistir é uma política comprovadamente atrasada e ineficaz, na qual o único beneficiado é o crime organizado com altíssimos lucros advindos do comercio ilegal de entorpecentes.

A mercancia ilícita de entorpecentes, como já visto, é uma prática desleal ao mercado econômico, atingindo a economia do Estado e colocando em risco a democracia. Para além disso, tem como público alvo as populações mais carentes de direitos sociais e, passam assim, a ser criminalizadas e colocadas ainda mais a margem da sociedade.O Estado não consegue alcançar com seu braço curto os direitos básicos dos cidadãos das periferias – local onde são disseminadas tais práticas delitivas. 

Restou-se comprovado que a atual política de drogas é caríssima, pelo fato da postura adotada pelo poder público: manter sempre a vigilância ativa das polícias; gastos com presídios; movimentação exarcebada do poder judiciário; entre outros. 

A locomotiva estatal é uma máquina muito cara. Todas as movimentações de trabalho para manter essa política, acima de tudo, para manter essa falsa segurança moral de que a política atual garante a segurança pública dos cidadãos, não apresentam nenhum dado positivo.

Outro fator importantíssimo observado no presente trabalho é a fraca iniciativa na elaboração de políticas públicas autênticas e alinhadas com o contexto do país, pois o Brasil passou assumir posição de clientelismo das políticas dos países de primeiro mundo, quando em cenário nacional, na realidade, o cidadão não tem acesso aos direitos básicos fundamentais. 

A sociedade brasileira, em meio ao caos, segue mendigando direitos fundamentais básicos já garantidos pela norma pátria, o mínimo existencial muito debatido. Segundo apontado pelo Ministro Barroso: “uma verdadeira vivência de vida alheia”[3].

O “Ctrl + C e Ctrl + V”, da política, tema já superado no presente trabalho, expressa a falta de responsabilidade dos governantes, que visam transmitir uma uma imagem de pulso firme e de comprometimento com o enfrentamento as drogas. Entretanto, tais medidas são meramente simbólicas, pois não transformam a realidade daquelas pessoas envolvidas com as drogas, antes a seletividade do sistema penal criminaliza e vitimiza apenas os segmentos já vulneráveis da sociedade. É fundamental observar o lugar de fala ocupado por aqueles que elaboram as leis.

O povo brasileiro também é vítima do sistema, pois continuam escravizados devido a ausência de educação que impossibilita a comoção e ativismo dos grupos sociais.

A primeira solução eficaz apresentada a partir destas premissas científicas e empíricas, que deve ser realizada o quanto antes, é a implementação de políticas de redução de danos, que visam minimizar os impactos sociais e à saúde dos usuários.

O Governo deve investir em políticas públicas que ocasionem impactos positivos. É preciso ter ousadia para solucionar o problema. Inicialmente, a descriminalização do uso de drogas é o primeiro passo para evolução da temática. Não se trata de radicalismo, pois as drogas constituem um problema social e, portanto, frente a falência da atual política, deve ser enfrentado por outras perspectivas.

A dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, é amplamente violadas por essa políticas de drogas “Ctrl + C e Ctrl + V”. Na Suíça, há mais de 20 anos o governo controla a distribuição da heroína, disponibilizando o espaço, materiais (seringas), e as próprias drogas. (OCHSENBEIN, 2014)

Segundo as estatísticas, desde 1994 quando foi introduzido o tratamento, 400 pessoas participavam do tratamento (redução de danos – doses controladas visando a não abstinência). Dois anos depois, os números de pessoas já chegavam em mil. Todavia, como se trata de política a médio prazo, nos últimos 10 anos o número permaneceu estável em 1500 (pesquisa realizada 2012: 1578, dos quais 391 são mulheres) (OCHSENBEIN, 2014)

Este tipo de política permite olhar ao usuário como um ser humano que precisa de ajuda. Há um resultado considerável na implementação desta política. Portugal também é um país referência na política de redução de danos.

Em um debate realizado pelo IBCCrim em 2017 concluiu-se que desde a descriminalização de todas as drogas em Portugal no ano de 2001, tem ocorrido reduções drásticas nas overdoses, nas infecções por HIV e na criminalidade.

Ora, a partir dos apontamentos pergunta-se: por que não adotar tais políticas? Os problemas ocasionados no Brasil ainda não são suficientes para adoção de outras políticas.

Aury Lopes Jr., em uma de suas obras, consegue expressar com objetividade e firmeza sobre o cenário brasileiro frente ao direito penal totalmente seletivista. De acordo com seus ensinamentos:

No Brasil o cenário é ainda mais grave, pois se criou um ciclo vicioso, autofágico até. Temos uma panpenalização (banalização do direito penal), pois acreditamos que o direito penal é a tábua de salvação para todos os males que afligem esta jovem democracia com uma grave e insuperável desigualdade social. Como “tudo” é direito penal, “quase tudo” acaba virando processo penal, com um entulhamento descomunal das varas criminais e tribunais. Não existe sistema de justiça  que funcione nesse cenário e o nosso é um exemplo claro disso. (LOPES JÚNIOR, 2018, p. 87) 

Portanto, o tempo é o nosso arquirrival e o sucateamento das garantias fundamentais é a corrente majoritária na forma de se fazer política no Brasil. Enquanto isso,  o país se aproxima do primeiro lugar do ranking mundial de encarceramento do mundo, vitimizando a população jovem negra e contando com a polícia que mais mata e a que mais morre do mundo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. (1941). Decreto Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.

BRASIL. (1995). Lei 9.099, de 26 de set. de 1995. Lei do Juizado Especial Cíveis e Criminais.

BRASIL. (2006). Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad.

BRASIL. (Constituição Federal 1988). Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro. Constituição Federal.

CORREIO, C. F. (Junho de 2014). Michel Foucault: a genealogia, a história, a problematização. São Paulo.

ESTADOS UNIDOS. XIII Emenda à Constituição dos Estados Unidos, de 6 de abril de 1865. Aboliu oficialmente e continua a proibir em território americano a escravatura e a servidão involuntária, essa última exceto como punição por um crime. Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9cima_Terceira_Emenda_%C3%A0_Constitui%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Unidos>

ESTADOS UNIDOS. Leis Jim Crow, com vigência em 1876 a 1965. Foram lei locais e estaduais, promulgadas nos Estados do Sul dos Estados Unidos, que  institucionalizaram a segregação racial. Fonte: Wikípédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Jim_Crow>.

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Sobre o autor
Wesley Raimundo

Jovem Advogado que ajuda pessoas a reivindicar os seus direitos.

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