MONTAIGNE E O PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO SOCIAL
O princípio do não retrocesso social, também denominado de princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, ou conhecido como princípio da proibição do retrocesso, é deveras importante, tem efetiva repercussão na vida da sociedade humana, mas nem sempre é colocado em prática; nem sempre é observado pelo hodierno hermeneuta, desconhecendo este, não raras vezes, o instrumental jurídico-principiológico previsto na Carta Política de 1988. Com efeito, o moralista Michel de Montaigne se debruçou sobre o tema, com peculiaridade própria, e fê-lo quando tratou da interpretação do texto legal, da jurisprudência, da justiça, do costume, do hábito e de não se dever mudar uma lei aceita pela coletividade. Evidentemente - o esclarecimento talvez não se fizesse necessário - que o princípio ora sob exame foi analisado pelo filósofo moralista no justo ambiente renascentista, na sua época, ou seja, em pleno século XVI. Mas, é de somenos importância para a rotulação que se dê; não se coloca em relevo a forma como o princípio, por assim dizer, ficando adstrito à época em que Montaigne tomou da pena, sobrelevando salientar que o filósofo apresentou importantes reflexões, que cabem ser consideradas no século XXI. Diz o pensador humanista, autor de célebre e perene obra literária, que há grande dúvida sobre se podemos obter tão evidente benefício na mudança de uma lei aceita, qualquer que seja ela, quando há prejuízo em mudá-la, porque um governo é como uma construção com diversas peças, interligadas com tal coesão que é impossível mover uma sem que todo o corpo o sinta. O legislador dos turienses ordenou que toda pessoa que desejasse abolir uma das velhas leis ou estabelecer uma nova e apresentasse ao povo com a corda no pescoço, para que, se a novidade não fosse aprovada por todos, ele fosse enforcado incontinenti[1]. Com efeito, o princípio do não retrocesso social está intimamente ligado aos direitos sociais previstos na Constituição Federal e também ao princípio da dignidade da pessoa humana, o mais importante de cunho constitucional. Não obstante a sua magnitude e importância, conforme dito alhures, o princípio em comento, não raras vezes, passa ao largo dos discursos de cunho jurídico, deixando de ser aplicado nos casos concretos. Entrementes, o princípio é largamente estudado, analisado e efetivamente aplicado em países como Alemanha e Portugal[2], e esse aspecto, por si só já basta para apontar a enorme fissura cultural que existe entre estes e o Brasil. Despiciendo tecer comentários a respeito.
Consoante bem esclarece Luís R. Barroso, o princípio da proibição de retrocesso decorre justamente do princípio do Estado Democrático e Social de Direito; do princípio da dignidade da pessoa humana; do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais; do princípio da proteção da confiança, e da própria noção do mínimo essencial[3]. Montaigne diz que, antes de observar as leis em geral, cabe à sociedade fazer cumprir as leis do lugar onde está cada pessoa[4], mas antes de observar, respeitar e obedecer tais leis, não podem elas [essas mesmas leis] ser direcionadas ao cidadão sem qualquer contextura com a realidade na qual este se insere (a respeito, Emilio Betti). Dito de outro modo, primeiramente a lei, que visa o bem-estar e a harmonia social, deve estar em sintonia com a realidade, e aqui seria o caso de rememorar a vida na Idade Média, onde o direito brotava do seio da sociedade e não era imposto como uma espada, pela autoridade, tal como se observa no novo século (Paolo Grossi). E, mais do que antes, o papel fundamental do jurista é a exegese, é a interpretação do texto legal apresentado pelo Estado. Nesse passo, não cabe a radical alteração da lei, para inverter a ordem natural que vinha ocorrendo em relação aos direitos sociais, por exemplo. Caso se resolva alterar a lei posta pelo Estado, tal mudança não pode ser abrupta para fins de restringir direitos e garantias, por exemplo, mas terá de ser apresentada uma [nova] lei com caráter deveras ampliativo, para fins de manter a paz social e resguardar o direito adquirido do cidadão, as garantias e direitos fundamentais previstos na Carta Política do país. Segundo o entendimento esposado por Ingo W. Sarlet, o princípio da proibição de retrocesso tem estreita ligação com a segurança jurídica[5], asseverando, pois, que o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha vem reiterando o entendimento segundo o qual a segurança jurídica constitui um dos elementos nucleares do princípio do Estado de Direito, no sentido de que o particular encontra-se protegido contra leis retroativas que afetem os seus direitos adquiridos, evitando assim que venha a ter frustrada a sua confiança na ordem jurídica, já que a segurança jurídica significa, em primeira linha, proteção de confiança, que, por sua vez, possui hierarquia constitucional[6]. Mas um pequeno parêntesis aqui desde logo deve ser feito para dizer que o princípio da segurança jurídica - não obstante sua profundidade, extensão e importância - deve ser sempre estudado com muita cautela, pois, não raras vezes, é utilizado pelos detentores do poder, os reacionários, os conservadores, para fins de manter incólume esse mesmo poder constituído.
O que se deve ter em mente é a necessidade de mudança lingüística, uma nova forma, por assim dizer, de enxergar o direito, sem as lentes deformantes do dogmatismo, do positivismo, enfim, do formalismo jurídico ainda imperante. Então, e agora já para fechar o parêntesis, em vez de utilizar a palavra reacionário, cabe adotar um outro termo, que nada mais é do que o vocábulo revolucionário, no sentido de mudança de paradigma, de revolução científica, tal como bem esclarece Thomas Kuhn em sua obra de fôlego; cabe, enfim, a abertura interpretativa, colocando em degrau bem superior a hermenêutica filosófica e afastando a filosofia da consciência, a fim de que o sujeito cognoscente perceba a amplitude da realidade na qual se insere o objeto cognoscível. É o objeto que domina o sujeito, e não ao contrário.
Ainda no que diz com a proibição de retrocesso Ingo Sarlet assevera que o princípio decorre de vários outros, dentre eles o do Estado democrático e social de direito; da dignidade da pessoa humana e a proteção de confiança[7], de modo que o princípio da aplicação progressiva dos direito sociais, muito embora há muito já tenha sido referido, mesmo que de forma indireta por Michel de Montaigne, merece estudo amplo, pois tal princípio tem estreita ligação com a dignidade da pessoa humana, princípio maior da Constituição Federal de 1988.
[1] Os Ensaios. Livro I. 2a edição. São Paulo:Martins Fontes, 2002, p. 178. Tradução:Rosemary Costhek Abílio.
[2] Ver a respeito do tema, a obra de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional.
[3] Interpretação e Aplicação da Constituição. 3a edição. São Paulo:Saraiva, 1999, p. 151.
[4] Op. cit., p. 178.
[5] A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8a edição. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 442.
[6] Op. cit., p. 442, em nota de rodapé.
[7] Op. cit., pp. 457-458.