CONTRA PRIVILÉGIOS DE ARMADORES E TRANSPORTADORES MARÍTIMOS

Por um sistema de responsabilidades mais rigoroso e justo

19/08/2020 às 18:51
Leia nesta página:

Artigo em que os privilégios normativos aos armadores são criticados e uma regulamentação mais eficaz é exigida para o bem comum.

 

CONTRA PRIVILÉGIOS DE ARMADORES E TRANSPORTADORES MARÍTIMOS

Por um sistema de responsabilidades mais rigoroso e justo

 

 

 

O transporte marítimo internacional de cargas tem de ser urgentemente repensado.

Trata-se de um segmento importantíssimo para a economia mundial, mas que carece de bons marcos regulatórios.

Ainda hoje, muitos transportadores marítimos, armadores, atuam de forma temerária, e não respondem pelos danos e prejuízos que causam.

Isso é inadmissível.

No mundo atual, não há mais como admitir que toda uma categoria empresarial goze de benefícios ilimitados e de responsabilidades limitadas.

Vivemos em uma sociedade de riscos, e os transportadores marítimos são potenciais causadores de danos. Por isso, deles se exige especial cuidado no exercício das atividades.

Sobre isso, a sociedade de riscos e a responsabilidade dos transportadores, eis o que defendi em seminário (taller) na Universidade de Salamanca, Espanha, por ocasião do 46º Curso de Pós-graduação em Direito, Especialização em Contratos e Danos, ora parcialmente reproduzido:

 

Taller 3: Sociedad del risgo, nuevas amenazas y derechos fundamentales

 

Título de la comunicación: Em uma sociedade de riscos não se pode mais admitir normas de limitação de responsabilidade dos causadores de danos.

 

Resumen:

                        Responsabilidade Civil – Sociedade de Riscos – Primazia do Princípio da reparação civil ampla e integral – Anacronismo e ilegalidade das espécies normativas com objetivo de limitar responsabilidade do causador do dano – Defesa da vítima.

 

       Vivemos tempos de grandes mudanças e de enormes desafios, tempos da Quarta Revolução Industrial.

       A cada dia, o engenho humano se desenvolve e as atividades econômicas se fortalecem. Por mais que as tecnologias busquem a excelência, os ricos aumentam.

       Tanto que o Direito também evoluiu substancialmente e hoje já se tem por certo, como um direito fundamental, o de ninguém ser vítima de um dano, algo muito maior e mais profundo do que o antigo neminem laedere.

       O Direito atual trabalha até mesmo com a ideia de responsabilidade civil pela expectativa de dano potencial.

       Para muito além da responsabilidade civil objetiva, essa ideia dispõe que o potencial de dano que alguém pode causar à outrem é, dependendo das particularidades do caso concreto, o bastante para se cogitar em dever de reparação.

       Algo fantástico e, talvez, essencial para o desenvolvimento da cidadania.

       Já não se trata de se aceitar ou não os chamados punitive damages, mas de tentar assegurar, de um modo ou de outro, o direito que todo o mundo tem de não ser vítima de dano.

       Vanguardista? Sem dúvida, mas algo que tem que estar presente em toda e qualquer discussão séria a respeito da responsabilidade civil, seus desdobramentos e sua invulgar dimensão social.

       Muito aproveita atentar que antes mesmo dessa visão mais recente e inovadora, o anseio pela necessidade de compensação justa do dano sofrido pela vítima e punição exemplar do seu causador já se fazia notar pelo princípio da reparação civil integral, presente em quase todos os ordenamentos jurídicos do mundo.

       No caso específico do Brasil, o princípio se encontra taxativamente previsto no art. 944 do Código Civil e implicitamente presente no inciso V do art. 5º da Constituição Federal, que assegura a reparação civil ampla e integral.

       Considerando que o art. 5º trata dos direitos e garantias fundamentais e é marcado com o selo de cláusula pétrea, pode-se dizer que no Brasil a reparação civil integral é, mais do que um princípio de natureza civil, um direito fundamental constitucional, ancorado na cidadania.

       Por isso, inaceitável a existência, nos dias de hoje, salvo em casos muito específicos, absolutamente especiais e extraordinários, normas, regras, cláusulas, enfim, qualquer espécie normativa, que tenha por objetivo a limitação de responsabilidade do causador do dano.

       Toda limitação de responsabilidade do causador de um dano é o esvaziamento da direito da vítima, do ofendido.

       Acrescento, com fundamento no Direito Natural e na própria ordem moral, que a limitação de responsabilidade aplicada em benefício do autor do ato ilícito ofende a dignidade da vítima e do Direito como um todo.

       Não há superposição do conceito de Justiça ao de Direito se este é usado para beneficiar quem causa dano indevido à outrem. O Direito se torna claudicante, deformado, inimigo da Justiça.

       Isso porque quem causa dano tem que arcar integralmente com os resultados e efeitos de sua conduta inidônea, nada aquém, talvez tudo além.

       Por isso, a insurgência, quase com ares de uma Cruzada Santa, às normas legais e/ou contratuais limitadoras de responsabilidade.

       (...)

       Justamente por conta das atuais tecnologias, as faltas e avarias apuradas nas cargas confiadas para transportes nada mais são do que vulgares desídias operacionais, incúrias administrativas, falhas empresariais inescusáveis das transportadoras. Merecem, então, benefícios normativos como os de limitações de suas responsabilidades? Isso é justo e moralmente ordenado em relação aos donos das cargas ou seus seguradores?

       Afirma-se, aqui, com categórica convicção: não, não é justo nem mesmo tolerável aos olhos da moral!

       A preocupação da renomada Universidade de Salamanca em estudar “Sociedad del risgo, nuevas amenazas y derechos fundamentales” há que passar necessariamente pelo princípio da reparação integral e o repúdio ao conceito de limitação de responsabilidade, mesmo a de natureza tarifada.

       (...)

       Aliás, é a vítima que tem que ser o alvo de todas atenções da hodierna responsabilidade civil, não o causador do dano. Na proteção máxima da vítima que reside o bem social e as funções restauradora, reequilibradora, principiológica e edificante do Direito, braço concreto da Justiça.”

 

 

Muito aproveita o texto acima reproduzido para se defender a necessidade de maior regulamentação do setor marítimo.

E nem se diga que existem Convenções Internacionais de Direito Marítimo, pois todas, com maior ou menor intensidade, concedem muitos privilégios a armadores e protegem-nos de responsabilidades mais robustas.

Felizmente, o Brasil não é signatário dessas convenções (e a única que assinou, não ratificou), permitindo ao seu ordenamento jurídico um tratamento mais rigoroso de alguns temas do Direito Marítimo e a legítima proteção dos exportadores, importadores e seguradores de cargas nacionais.

 

Mas isso não basta, pois o tratamento mais rigoroso se dá apenas nas relações entre donos ou seguradores de cargas e transportadores, sendo todos os demais temas uma espécie de mar aberto, com ondas de irresponsabilidades.

Passou do tempo de os armadores assumirem responsabilidades e arcarem com os danos que causam, sejam eles ambientais, materiais ou pessoais.

Um bom meio para que isso possa bem ocorrer surge pelo reconhecimento de clubes de proteção e indenização como devedores solidários ou, pelo menos, subsidiários. Imputar responsabilidades aos clubes é algo que bem se ajusta aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e isonomia, e se mostra necessário para a busca constante do bem comum e da redução de assimetrias.

Merecem revisão também os registros dos navios. Pôr fim às tais “bandeiras de aluguel ou de conveniência” é passo importante e decisivo para se ordenar moralmente o universo dos transportes marítimos.

Sobre as bandeiras de aluguel, expus em meu livro Prática de Direito Marítimo no item destinado ao armador:

 

 

Do Armador

O armador, como visto, ao menos em termos de transporte marítimo propriamente dito, não é o principal personagem do Direito Marítimo, uma vez que a sua figura não se confunde com a do transportador marítimo, este sim o personagem principal.

Armador e transportador marítimo, embora pessoas distintas, guardam profunda intimidade, sendo certo dizer que um depende do outro, em regra.

Armador é uma pessoa jurídica, estabelecida e registrada, com a finalidade de realizar o transporte marítimo, local ou internacional, através da operação de navios, explorando determinadas rotas, e que se oferece para transportar cargas de todos os tipos de um porto a outro. Pode também ser uma pessoa física.[1]

Em outras palavras, conforme define Carla Adriana Comitre Gibertoni,[2] “Armador (Owner) é a pessoa, física ou jurídica, que arma a embarcação, isto é, coloca-a nas condições necessárias para que possa ser empregada em sua finalidade comercial, e que opera comercialmente, pondo a embarcação ou a retirando da navegação por sua conta (art. 15, RTM)”.

O armador não precisa ser necessariamente proprietário de navios. Apenas tem que operar os navios, cuidar da armação dos mesmos, podendo usar navios alugados (afretados) de terceiros.

Armação, o ato praticado pelo armador, pode ser tecnicamente definida como o preparo, o aparelhamento de um ou mais navios. Trata-se do conjunto de operações de equipagem e aprovisionamento de um navio.

Enfim, proprietário ou não do navio, é o armador o responsável por sua qualificação para a expedição marítima, o organizador geral das condições necessárias para a viagem.

O armador não responde por eventuais danos às cargas confiadas para transporte, salvo se ele for, além de armador, o transportador marítimo, ou seja, o emitente dos conhecimentos marítimos.

Mas, a rigor, quem arma não transporta, falando em termos contratuais. Também em regra, o comandante do navio é preposto do armador, razão pela qual, subsistindo sua responsabilidade num determinado evento danoso, os transportadores marítimos poderão pleitear em regresso os prejuízos reparados aos consignatários de cargas ou seus seguradores.

É errada, pois, a ideia de que o armador é, a priori, o responsável pela carga, respondendo juridicamente por eventuais faltas ou avarias. Esta é, pois, a responsabilidade do transportador marítimo, como visto, o emitente do conhecimento marítimo. Somente se dará esta espécie de responsabilidade se o armador também assumir, no caso concreto, a figura do transportador marítimo.

Todo armador tem uma nacionalidade, portando a bandeira respectiva a sua nacionalidade. Normalmente, a nacionalidade do armador é a do país onde estiver sediado. Mas, nem sempre tal regra é seguida, haja vista a existência das chamadas bandeiras de aluguel.

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O armador, mesmo não sendo, em regra, ou necessariamente, o transportador marítimo, é o detentor da gestão náutica do navio.

Ter a gestão náutica do navio significa ser o responsável por todos os atos praticados pelo capitão e, em última análise, pelos danos causados a terceiros, ressalvando-se, muito importante frisar, que a responsabilidade por faltas ou avarias nas cargas transportadas será, a rigor e em primeira análise, do transportador marítimo, ou seja, do emitente do conhecimento marítimo, cabendo a este, se for o caso, o direito de regresso em face do armador.

 

 

Dada a importância do tema, convém esclarecê-lo com outras palavras: o armador, sendo ou não o proprietário do navio, é quem tem sua gestão náutica, sendo o capitão o seu preposto, na forma da lei civil.

Logo, todos os danos causados pelo navio a terceiros são de responsabilidade do armador.

De se ressaltar, contudo, que, para os donos das cargas responsáveis, pouco importa saber quem é efetivamente o armador e dono da gestão náutica do navio, mas, sim, quem se responsabilizou, contratualmente, pelas cargas, quem assinou o contrato de transporte marítimo, ou seja, o conhecimento marítimo. Este é o transportador marítimo.

Somente no campo tributário é que pode haver confusão entre as pessoas do armador e do transportador marítimo, pois para o Direito Tributário é relevante saber quem vai arcar com os ônus tributários decorrentes de faltas e avarias quando da descarga, razão pela qual seu campo de abrangência é diferenciado em relação ao do Direito Marítimo.

Assim, afirma-se mais uma vez que a denunciação da lide do armador não tem cabimento em lides forenses envolvendo o transportador de fato e de direito da carga, ou seja, aquele que emitiu o conhecimento marítimo

 

Das Bandeiras de Aluguel

 

Tomamos este tema como incidental ao assunto de fundo: o armador, personagem do Direito Marítimo.

A bandeira de aluguel, também conhecida como bandeira de conveniência, é uma prática muito comum no mundo marítimo.

Nos dias correntes, estima-se que quase metade da frota mundial ostenta as bandeiras de aluguel.

Pavilhões ou bandeiras de conveniência nada mais são do que a outorga de alguns Estados de sua nacionalidade a alguns navios. São navios que, sendo propriedade de pessoas domiciliadas em um país, são matriculadas em um outro país, devido aos benefícios auferidos com a legislação dos mesmos.[3]

Podemos resumir o assunto da seguinte forma: alguns Estados soberanos outorgam suas respectivas nacionalidades a alguns navios. Os proprietários e/ou armadores destes navios com a outorga têm vantagens econômicas, mormente de natureza tributária, com legislações mais brandas existentes nos Estados outorgantes.

 

 

Quando analisamos a questão das bandeiras de aluguel com tudo o que diz respeito ao tempo atual e aos avanços do Direito especialmente no campo da responsabilidade civil, temos que aquelas não mais se ajustam a estes e que as mudanças normativas se fazem necessárias.

Até que a comunidade internacional consiga criar elementos normativos para proteger donos de cargas, pessoas e o meio ambiente de forma eficaz, impondo não mais privilégios, mas responsabilidades severas aos armadores (transportadores), é necessário que o Brasil tome as devidas medidas para dar ao assunto um manto de justiça.

Tomo a liberdade de sugerir ao governo federal e ao congresso que criem uma Guarda Costeira, ouçam os especialistas no assunto, criem normas de proteção específica ao meio ambiente, ao patrimônio dos usuários dos serviços de transportes e às pessoas em geral, potenciais vítimas diretas ou indiretas das atividades.

Proteger não é inibir o negócio de transportes, mas revesti-lo de justos deveres.

Outro meio de se ter maior equilíbrio na situação depende de um olhar diferenciado por parte do Poder Judiciário.

Todo estudante de Direito sabe a famosa máxima “o que não está nos autos, não está no mundo” — que é verdadeira. Todavia, para que melhor os autos respondam ao bem maior, é importante ver o negócio de transporte tal como ele é no mundo.

Este olhar permitirá maior rigor no trato de questões envolvendo danos praticados por armadores, sejam eles contratuais ou não, imputando-lhes as devidas responsabilidades, sempre de forma ampla e integral, e não mais aceitando defesas meramente fundadas em casuísmos formais, que nada têm a ver com o bem da vida de cada litígio.

Outra forma de a Justiça contribuir para que a justiça seja sempre feita é flexibilizar os procedimentos de arrestos e embargos de navios, além de exigir garantias dos armadores quando do início dos litígios, já que são todos pessoas jurídicas estrangeiras, e os agentes marítimos no país são meramente mandatários comerciais, sem responsabilidades vinculadas.

A Justiça é uma das melhores modeladoras sociais que existe, e ela pode e deve fazer a diferença se compreender a volatilidade do segmento de transportes e seu enorme potencial para a promoção de danos, muitas vezes não reparados.

 

O rigor, normativo e judicial, a ser empregado aos armadores não beneficiará apenas o meio ambientes, os donos e seguradores de cargas, os terminais, os trabalhadores marítimos e portuários, a sociedade em geral, mas também a eles próprios, ao menos os que são sérios e respeitáveis, capazes de responder ao rigor com eficácia, eficiência e comprometimento diante dos danos.

 

Paulo Henrique Cremoneze, é sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB-SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

 


[1]     KEEDI Samir e outro. Op. cit. p. 71.

 

[2]     Teoria e prática do direito marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 105.

 

[3]     GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Op. cit., p. 58.

 

Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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