MONTAIGNE: O JURISTA, A PRUDÊNCIA E O JUÍZO DE VALOR
Michel de Montaigne, filósofo francês do século XVI, escreveu obra que é atual - Os Ensaios -, cujo eixo principal é justamente a renúncia a julgamentos absolutos, estando em relevo a prudência, tal como assevera Adone Agnolin. O ensaísta não se compraz com o dogmatismo de seu tempo e se recusa a externar julgamentos, ao contrário do que ocorre hodiernamente. Ao tomar da pena para escrever Os Ensaios, relata experiências, sua visão a respeito do homem comum, da natureza e do mundo, permanecendo em dúvida, sempre. Assegura que a verdade e a razão são comuns a todos, e não pertencem a quem as disse primeiramente mais do que a quem as diz depois[1].
Ao contrário de Descartes, cujas idéias são centralizadas na certeza, na racionalidade crítica iluminista, Montaigne se mostra homem prudente, de bom senso, , moderado, de equilíbrio e ponderação ao analisar suas experiências e o seu próprio tempo. Especialmente a partir de 1572, quando deu início à escrita de sua obra, o filósofo expõe com clareza que é necessário ao homem se afastar do júbilo constante e também que não tenha visão turva a respeito das pessoas e dos fatos. Montaigne, ao contrário dos ideários cartesianos, tinha o espírito renovado e ávido, totalmente despido de ortodoxia, a fim de melhor se conhecer, e continuar na busca incansável pelo saber. Seu espírito era aberto, sempre à espera de novas respostas aos questionamentos.
Homem de sensatez ímpar e prudência redobrada no trato das coisas [e das opiniões a respeito dos homens], assevera que a sinceridade e a verdade pura, em qualquer época que seja, inda têm aplicação e curso[2]. O ideário montaigniano é no sentido de que suas idéias, crenças e valores não são absolutos, e o próprio título da obra em comento já sugere que nada é permanente, eterno, perpétuo, até mesmo porque nenhum homem soube nem saberá nada de certo[3]. O livro do ensaísta se torna mais do que moderno, por apresentar diversidade de temas [com inclinação dialética], que inclusive são do interesse do jurista do século XXI.
Do que interessa ao presente texto, extrai-se o seguinte excerto da obra referenciada: Saber de cor não é saber: é conservar o que foi entregue à guarda da memória. Do que sabemos efetivamente, dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para o livro. Desagradável competência, a competência puramente livresca! Espero que ela sirva de ornamento, não de fundamento, segundo o parecer de Platão, que afirma que a firmeza, a honradez, a sinceridade são a verdadeira filosofia, enquanto as outras ciências e que visam alhures são apenas ouropéis[4].
Com efeito, compete ao jurista, de acordo com sua experiência - e aí a questão já envereda pela seara da linguagem jurídica e nível de conhecimento de cada jurista[5] – perceber que o Direito é linguagem pura, está acima do Estado; Cabe ao hermeneuta, mediante ferramental próprio, interpretar a lei posta por esse mesmo Estado. Cabe a ele ter a consciência hermenêutica, defendida por Paolo Grossi[6]. Assevera o pensador italiano que o jovem jurista não pode eximir-se da tarefa de ampliar seu olhar num momento de crise das fontes de produção jurídica como a atual, perturbadora mas, ao mesmo tempo, muito fértil para que não tenha temor do novo[7].
Para que o próprio direito não se coagule; para que não se faça do processo judicial palco para discussões outras que não aquelas que realmente interessam ao deslinde da controvérsia; para que se evite, quanto possível, o perecimento do direito material [sendo este sim perseguido pelos litigantes no processo], o jurista deverá nutrir a idéia firme de que, quando em juízo, representa os interesses únicos e exclusivos da parte. Compete-lhe portar-se de forma elegante, combativa, discreta, sem arroubos retóricos e sempre dentro dos limites éticos, do bom senso, da moral e da razoabilidade.
O discurso jurídico há de ser pautado dentro da ética, de modo que a argumentação - até mesmo a mais eloquente em momentos periclitantes e desfavoráveis ao constituinte -, jamais poderá desviar para outra seara. Não cabe ao jurista, no âmbito do processo, externar juízo de valor pessoal em relação a quem quer que seja, por evidente. Cabe-lhe sim, agir dentro da legalidade e em consonância com os princípios que norteiam a postura mínima necessária e aguardada pela constituinte e pela própria sociedade como um todo.
Aliás, escreve Montaigne: não faço o erro comum de julgar um outro de acordo com o que sou. Dele aceito facilmente coisas que diferem de mim[8]. E o mesmo filósofo vai mais além, ao afirmar que aprecio as naturezas equilibradas e moderadas. A falta de moderação, mesmo para com o bem, não se me choca, espanta-me e causa-me dificuldade para batizá-la[9].
Cabe ao jurista moderno [ou pós-moderno, se assim se entender] observar a hemenêutica jurídica [Gadamer e Heidegger], varrer definitivamente a filosofia da consciência e afastar-se da síndrome de Abdula, referida por Lênio Streck[10]. Só assim haverá o resgate do direito na sua amplitude, tal como busca Grossi. A visão turva e empedernida a respeito dos fatos e do próprio direito só contribuem para o engessamento total deste.
[1] Os Ensaios – Livro I. São Paulo:Martins Fontes Editora, 2002, p. 227.
[2] Os Ensaios – Livro III. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2001, p. 7.
[3] Os Ensaios – Livro I, cit., XCV.
[4] Os Ensaios - Livro I, cit., p. 228.
[5] Dir-se-ia, depende do repertório de cada um.
[6] Primeira lição sobre o direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 99.
[7] Op. cit., p. 89.
[8] Os Ensaios – Livro I, cit., p. 342.
[9] Os Ensaios – Livro I, cit., p. 295.
[10] Hermenêutica jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 3ª edição. 2001.