Não se pode mais permitir que o ensino, de graduação ou pós-graduação, simplesmente despreze o DNA, a origem e a função dos institutos e categorias ensinados (para o que é fundamental o recurso a saberes afins ao Direito, como a história, economia, antropologia, sociologia etc.) e se faça pela comodíssima recitação de textos de lei e de doutrina apartados de seu real contexto, os quais, como cadáveres repetidamente dissecados, acabam por reencarnar, ‘ad seculum seculorum’, em petições, decisões e livros que resistem, empedernidos, às ainda escassas sessões de descarrego e exorcismo pelos poucos que ousam destoar da catequese autoproclamada clássica (que de clássica, na acepção nobre do termo, nada tem)[1]
MONTAIGNE E O PEDANTISMO
Ao tomar da pena para escrever sua obra perene, Michel de Montaigne tratou de tema deveras palpitante, atualíssimo, sem dúvida, em plena pós-modernidade[2] [ou uma evidente modernidade tardia, se se considerar o Brasil]: o pedantismo. O presente artigo lida justamente com tal assunto, sendo que o escrito é arrimado [principalmente] nos escritos do epicurista Montaigne e outros pensadores de nomeada.
Primeiramente, segundo o Dicionário Houaiss[3], pedante é o imodesto; é o que se exprime exibindo conhecimentos que não possui, é o que se expressa ostentando [falsa] cultura e erudição. Pedante, em resumo, é o que ostenta erudição em seu discurso [de forma verbal ou escrita], defendendo uma “verdade” discutível. Aliás, nesse passo, Demócrito adverte que, em realidad no sabemos nada. La verdad yace al fondo de un abismo[4]. Com efeito, quem fala de um modo adequado e correto não o faz por obedecer a uma regra, mas convicção de instaurar desse modo uma eficaz relação com seus semelhantes, conforme adverte Paolo Grossi[5].
Em capítulo próprio o virtuoso estóico Montaigne combateu incisiva e profundamente - e com sabedoria peculiar -, aquilo que denominou de falsa ciência, e confessa textualmente que não consegue entender, efetivamente, como uma alma rica do conhecimento acerca de tantas coisas não se torne mais viva e que, por outro lado, um espírito “grosseiro e vulgar” possa abrigar as reflexões e opiniões dos mais excelentes espíritos que o mundo já viu[6]. De fato, talvez não exista resposta ao questionamento em um momento histórico da humanidade que bem se traduz no individualismo.
O pensador se baseou nos escritos de um dos seus grandes autores, justamente o moralista estóico Lucius Anaeus Sêneca. Este filósofo textualmente afirma: querer saber mais que o necessário é uma forma de intemperança. Não? Essa mania das artes liberais torna os homens pedantes, verbosos, importunos, satisfeitos de si mesmos, e incapazes de aprender o indispensável porque aprendem o supérfluo[7]. Com efeito, prossegue o sábio empirista Montaigne – que também se tornou grande seguir do genial e formidável Plutarco[8] -, afirmando que não se pode considerar alguém mais importante simplesmente porque possui mais patrimônio que o vulgo; diz que aquele que se considera superior não está acima do comportamento deste [comum], e que na verdade os maus eruditos estão situados abaixo do comportamento comum, do vulgo.
Por outro lado, no que se refere especificamente aos grandes filósofos – aqueles com notável saber -, eram, sem embargo, bem maiores nas ações diárias, e não permaneciam apenas no discurso ao vento. Noutros termos, em vez de contemplar sua manufatura, buscavam defender seu país; colocavam a imaginação acima da fortuna e do próprio mundo. No que diz com a ciência, o moralista entende que pelo modo como somos instruídos, não é de admitir que nem os alunos nem os mestres se tornem mais inteligentes, embora se façam mais doutos nelas. Na verdade, os cuidados e a despesa de nossos pais visam apenas a nos encher a cabeça de ciência; sobre o discernimento e a virtude pouco se fala[9].
Acima de tudo, seu modo de pensar é no sentido de que se deve voltar os olhos [inexoravelmente] ao mais ponderado, pois, seria preciso perguntar quem sabe melhor, e não quem sabe mais[10]. O ponto crucial de seu pensamento reside justamente neste aspecto: não é prudente encher a memória com a ciência, não cabendo deixar de lado o entendimento, a apreensão, do que se leu, do que se estudou etc., e o pensador manifesta seu pensar no sentido de que descabe vomitar e lançar ao vento a ciência, não raras vezes mal apreendida[11]. Esta mesma ciência [carente de entendimento e consciência], para o cético Montaigne, passa de mão em mão, com a única finalidade de ser exibida, de entreter os outros, de fazer contas como com uma moeda vã, inútil para qualquer outro uso e emprego exceto contar e lançar fichas[12].
O pensador vai bem mais além, textualmente afirmando que qualquer outra ciência é prejudicial para quem não tem a ciência da bondade[13]. É deveras interessante notar o caso do rico romano - citado pelo filósofo francês -, que tinha ao seu redor homens [de fato] competentes e sábios em relação a todas as ciências. Quando este romano se deparava com uma situação que determinava sua fala, transferia a palavra a um de seus homens, aquele mais indicado para a ocasião, a fim de que suprissem sua incapacidade de discursar a respeito de determinado tema. Ele, o rico romano, ao transferir a palavra a um de seus subordinados tinha a falsa impressão de que era de sua cabeça que saíam as mais lindas e belas frases e pensamentos, assim como fazem também aqueles cuja capacidade está alojada em suas suntuosas bibliotecas[14].
Um dos pontos mais relevantes dos escritos de Montaigne é justamente quando assevera: atentamos para as opiniões e o saber dos outros, e isso é tudo. É preciso fazê-los nossos. Parecemos exatamente alguém que, precisando de fogo, fosse pedi-lo em casa do vizinho e, encontrando um belo e grande, lá ficasse a se aquecer, sem mais lembrar-se de levar um pouco para sua própria casa. De que nos servirá ter a pança cheia de comida, se ela na for digerida? Se não se transformar dentro de nós? Se não nos fizer crescer e fortalecer?[15].
E Dênis, citado pelo pirrônico Montaigne, simplesmente zomba dos músicos que afinam suas flautas e não afinam seu comportamento; dos oradores que se aplicam em falar de justiça, não em faze-la[16] .
No que diz especificamente com a lei, os sabichões já encheram a cabeça das pessoas com leis, e no entanto ainda não compreenderam o nó da causa. Sabem a teoria de todas as coisas; procurai quem a ponha em prática[17]. O pensador simplesmente detesta aquelas pessoas com certa dificuldade em tolerar vestimentas e comportamentos externos dos semelhantes; aquelas pessoas que avaliam os homens por seus modos e por suas botas, e não por sua alma [que pode, inexoravelmente, estar tingida com o saber, com a bondade e com a benevolência].
Voltando a Gevaerd, o pensador, com inequívoca propriedade, bem assevera que não se pode mais advogar, para o direito, o ‘status’ de saber autônomo e, em sim, competente, cujas categorias se firmam através da monocórdia repetição de conceitos artificiais e que s arroga uma certa vaidade em não recepcionar aportes da filosofia, antropologia, sociologia, economia ou outras disciplinas tidas por ‘extrajurídicas’, maldito epíteto com que se esconjura entre nós, ancestralmente, a multi e interdisciplinaridade[18], cabendo repensar a respeito da forma como se vê e, principalmente, como se aplica o direito hodiernamente, sem descuidar que as leis têm, ou deveriam ter, uma referência permanente à constituição do governo, aos costumes, ao clima, à religião, ao comércio, à situação de cada sociedade[19]. Insiste-se, então, na tese de que cabe ampliar [bem,] o campo de visão do hermeneuta em relação ao modo de produção do direito, que evidentemente não se subsume - apenas e tão-somente - à lei posta pelo Estado.
Portanto, as lições do circunspecto Michel de Montaigne (que se recusou a julgamentos definitivos [na justa medida em que era uma alma ciente da falibilidade do conhecimento do ser humano]; jamais sustentou qualquer certeza quanto a tudo o que examinava; nunca esgotou qualquer escrito seu; sempre buscou agir com prudência e bom senso e, principalmente, recusou falar em dogmatismo), lições materializadas nos Ensaios há mais de 400 [quatrocentos] anos, talvez sejam importantes em plena era pós-moderna.
[1] GEVAERD, Jair. Responsabilidade Social, Inclusão e Sustentabilidade: Vértices Empresariais dos Direitos Fundamentais. In – CANEZIN, Claudete C. [coord.] Arte Jurídica. Vol. I. Curitiba:Juruá, 2004, p. 192. O escrito deveras denso de Gevaerd é, sem qualquer dúvida, um daqueles textos que merecem leitura e releitura acurada, considerando o grau de profundidade e extensão com que examina [dentre outros temas não menos relevantes] o mal-estar nas graduações e pós-graduações de direito. E o mal-estar decorre justamente do fato de que a lei [e aqui o vocábulo está em sentido amplíssimo] foi realmente sacralizada, colocada em degrau bem superior em relação às demais fontes do direito, sendo apresentada como única e exclusiva fonte desse mesmo direito [com inequívoco ranço napoleônico. A propósito, diz Napoleão: in claris cessat interpretatio. E tal sentença não mais tem qualquer sentido]. O direito é posto [ou melhor, imposto!] pelo Estado, exatamente tal como se nos apresenta hodiernamente (e nesse passo vale a pena ler o texto de Paolo Grossi: A Formação do Jurista e a Exigência de um Hodierno “Repensamento Epistemológico”. Curitiba:Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Vol. 40 [2004]. Tradução:Ricardo Marcelo Fonseca). O direito foi, pois, totalmente encapsulado pelo primado genérico, pela abstração rígida da lei vinda de cima para baixo, expedida pelo poder estatal. E como diz Paul-Michel Foucault, o direito é encomendado pelo detentor do poder. Impera, ainda – e em novo século -, o dogmatismo, o formalismo, o positivismo jurídico, pois, de fato, talvez seja bem mais cômodo para quem legisla e para quem, não raras vezes, deveria interpretar a lei consoante regras e princípios de cunho constitucional [e, para Grossi, os juristas abdicaram de um papel ativo. Op.cit., p. 8]. Não menos importante é a leitura de outra obra do mesmo pensador italiano: Primeira Lição Sobre Direito. Rio de Janeiro:Forense, 2006. Tradução:Ricardo Marcelo Fonseca. Por outro lado, e o aspecto não pode passar incólume ao exegeta, é de se ponderar acerca do pensamento de David Hume, segundo o qual a lei [em tese] tem como objetivo o bem da humanidade, sendo imprescindível à paz social [Uma Investigação sobre os Princípios da Moral. Campinas:Editora da UNICAMP, 1995, p. 48. Tradução:José O. de A. Marques]
[2] A propósito, e neste passo específico, vale a pena ler [também] a obra The Postmodern Condition, de Jean-François Lyotard.
[3] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1a edição. Rio de Janeiro:Objetiva, 2001, p. 2162.
[4] Diógenes Laercio. Vidas de Los Filósofos Ilustres. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 492. Traducción: Carlos García Gual.
[5] Op. cit., p. 24.
[6] Os Ensaios. Livro I. São Paulo:Martins Fontes, 2000, pp. 199-200. Tradução:Rosemary Costhek Abílio.
[7] Aprendendo a Viver. São Paulo:Martins Fontes, p. 129. Tradução do texto específico “Sobre os Estudos Liberais”: Carlos Nougué.
[8] Plutarco foi, para Montaigne, o mais importante pensador.
[9] Op. cit., p. 203.
[10] Idem, p. 203.
[11] Ibidem.
[12] Idem, p. 204.
[13] Op. cit., p. 210.
[14] Idem, p. 205.
[15] Ibidem.
[16] Op. cit., p. 206.
[17] Idem, p. 207.
[18] Op. cit., p. 191. Grifos no original.
[19] HUME, David. Op.cit., pp.54-55.