SENTENÇA QUE DESCONSTITUI FILIAÇÃO E AVERBAÇÃO NO REGISTRO CIVIL
Rogério Tadeu Romano
I – A DECISÃO DO STJ NA MATÉRIA
Segundo se lê do site do STJ, em 20 de agosto de 2020, “a sentença que desconstitui o vínculo de filiação produz efeitos mesmo sem a sua averbação no registro civil, impedindo, assim, que aquele que foi excluído da condição de filho possa entrar no inventário como se fosse herdeiro do falecido.”
O entendimento foi firmado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao manter acórdão de segunda instância que reconheceu que a decisão que autoriza a expedição de mandado de averbação de sentença de procedência, exarada em ação negatória de maternidade e transitada em julgado em 1992, a fim de instruir pedido de habilitação nos autos de inventário, não ofende direito líquido e certo do impetrante.
Para o colegiado, a averbação de sentença transitada em julgado, a qual declara ou reconhece determinado estado de filiação, constitui consequência legal obrigatória, destinada a conferir publicidade e segurança jurídica ao desfecho declarado e reconhecido judicialmente – o que se dá, ordinariamente, de ofício.
Por esse motivo, o procedimento de averbação não é atingido por prazo prescricional ou decadencial. Além disso, caso não seja realizado dentro dos trâmites normais da ação, pode ser posteriormente determinado de ofício ou mediante requerimento – a qualquer tempo – das partes interessadas, como os herdeiros.
O relator do caso no STJ, ministro Marco Aurélio Bellizze, explicou que a averbação de sentença transitada em julgado que declara estado de filiação constitui consequência legal obrigatória, destinada a conferir publicidade e segurança jurídica à decisão judicial.
"Não existe, assim, nenhuma faculdade conferida às partes envolvidas a respeito de proceder ou não à referida averbação, como se tal providência constituísse, em si, um direito personalíssimo destas", afirmou o ministro.
De acordo com o relator, não é possível confundir o exercício do direito subjetivo de uma ação de caráter personalíssimo – como o processo de desconstituição de filiação, cuja prerrogativa é exclusiva das pessoas inseridas nesse vínculo jurídico – com o ato acessório de averbação da sentença de procedência transitada em julgado.
II – A AVERBAÇÃO
Tratar-se-ia esse necessário registro em Cartório da sentença que desconstitui filiação de efeito secundário da sentença constitutiva.
A averbação é o ato de anotar um fato jurídico que modifica ou cancela o conteúdo de um registro e é feita na sua margem direita já apropriada para este fim.
Nos termos do art. 10, inciso II, do Código Civil, far-se-á a averbação de registro público dos atos judiciais e extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação. Assim, a averbação constitui ato acessório destinado a modificar o teor constante do registro, em virtude de determinação judicial, conferindo-lhe, em atenção ao princípio da veracidade, que rege o registro público, publicidade e segurança jurídica.
A averbação de sentença transitada em julgado, a qual declara ou reconhece determinado estado de filiação - como se dá nas ações negatórias de maternidade/paternidade, em caso de procedência -, constitui consequência legal obrigatória do que restou declarado e reconhecido judicialmente, o que se dá, ordinariamente, de ofício. Tal foi o entendimento traçado no RMS n. 56.941.
Pode-se se dizer que há averbação, quando se torna necessário notar ou declarar à margem do assento de registro, algum fato o ato jurídico relativo ao objeto do mesmo assento e que possa implicar em alteração ou mudança na sua substância.
Filadelfo Azevedo(Registros Públicos, pág. 36) expôs que “impõe-se, como um movimento de suma relevância, evitar qualquer confusão com a anotação ou retificação, pois que estas últimas, embora na forma não se diferenciem da primeira, contudo representam atos de significação diversa, e com funções inconfundíveis e de importância acessória.
A anotação, de forma diferente da averbação, consiste num simples apontamento por escrito; pressupõe algum registro ou averbação, dos quais passa a constituir um elemento de indicação, remissivo dos atos anteriores com os mesmos relacionados.
A anotação é mera remissão a outro ato registral, apenas indicando sua ocorrência e onde foi registrado. Não tem o caráter de segurança, publicidade e eficácia. Não dispensa o acesso ao registro ou averbação em si para comprovação do fato ou ato.
As anotações devem cumprir a continuidade do registro, mas não rigorosamente, o que se busca é a compatibilidade lógica. É a aplicação do registro da continuidade.
São títulos justificativos da averbação: a sentença, o mandado, a certidão ou o documento legal e autêntico.
Averbam-se: reconhecimento de filho; sentença declaratória de filiação; alterações de nome; adoção relativa a maior de idade; adoção unilateral; perda, suspensão e revogação da suspensão do poder familiar; termo de guarda e responsabilidade; alterações de sexo; retificações; tutela e nomeação de tutor; alteração de localidade (criação e desmembramento de municípios); cancelamento do registro; separação; reconciliação; divórcio; nulidade e anulação de casamento; alteração de regime de bens.
Estão compreendidos no Registro Civil das pessoas naturais os seguintes atos: a) os atos de nascimento; b) os de casamento; c) os de óbitos; d) as emancipações por outorga do pai ou da mãe ou por sentença do juiz; e) as interdições; f) as opções de nacionalidade.
Na lição de Serpa Lopes(Curso de direito civil, volume I, 6ª edição, pág. 307), além da inscrição de todos esses atos principais, há a averbação, destinada a anotar à margem da inscrição certos fatos modificativos do estado civil.
III – A FORÇA PROBANTE DO REGISTRO
Na linha do antigo artigo 348 do Código Civil de 1916, reproduzido pelo Decreto-lei nº 5.860, de 30 de setembro de 1943, tem-se:
Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.
A força probante do registro dos atos do estado civil não é absoluta. Ela prevalece, porém, enquanto não for modificado o registro ou cancelado por meio de ação demonstrando a falsidade. E esse registro não é de força absoluta.
Tem-se o caso da retificação do registro nos atos do estado civil e as ações de estado.
Distinguem-se o processo de retificação e as ações de estado civil, visto que a retificação pode envolver matéria de estado.
Ainda para Serpa Lopes(obra citada, pág 310), pode-se dizer que se trata de um processo de retificação, nos seguintes casos: a) se o ato estiver incompleto, para o efeito de integrá-lo; b) se o ato contiver enunciações estranhas, para ordenar a supressão; c) se o ato apresentar inexatidão a respeito dos nomes das partes ou os seus títulos e predicados, ou o sexo, ou o dia e a hora do nascimento.
Tem-se o caput do artigo 109 da Lei dos Registros Públicos:
Art. 109. Quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no Registro Civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos ou com indicação de testemunhas, que o Juiz o ordene, ouvido o órgão do Ministério Público e os interessados, no prazo de cinco dias, que correrá em cartório. (Renumerado do art. 110 pela Lei nº 6.216, de 1975).
IV – AS AÇÕES DE ESTADO
Como ainda ensinou Serpa Lopes(obra citada, pág. 310), a questão do estado civil envolve uma questão de fundo, pois o seu objetivo é estabelecer o estado verdadeiro, seja porque em contradição com os elementos de fato; o processo de retificação, ao contrário, exclui toda a ideia de lide, de controvérsia, e o seu objetivo resume-se em alcançar a regularidade do instrumento de prova ou do estado civil.
As ações de estado civil são processos de natureza contenciosa, ou que, pelo menos, exigem uma sentença constitutiva, nos processos de retificação a intervenção do juiz se faz, não para compor uma lide, senão para tutelar um interesse que toca de perto ao Estado, como disse Serpa Lopes(Tratado dos Registros Públicos, I, n. 159, páginas 338 – 340).
Ora, as ações de estado, comportam sentenças que fazem coisa julgada ius inter omnes.
As questões de estado civil eram encaradas como importando, em relação às sentenças sob re elas proferidas, uma exceção ao princípio da universalidade da coisa julgada, em seu requisito – eadem personae. Condicionava-se tal efeito erga omnes aos seguintes requisitos: a) um contraditório legítimo; b) a não contumácia de alguma das partes; c) a ausência de dolo.
Constitui princípio firme essa eficácia erga omnes da sentença reconhecitiva do estado civil.
Transitada em julgado, averbada no registro de nascimento da parte, tem a mesma força, o mesmo valor, a mesma autoridade que tinha o registro originário, com efeitos erga omnes.
O princípio básico no Registro Público é o de que “transcorrido o lapso legal, a declaração já não mais apresenta aquela segurança de credibilidade ínsita a uma declaração feita oportunamente, como ensinou Serpa Lopes(Tratado dos Registros Públicos, volume I, 5ª edição, pág. 157).
Isso porque o Registro Civil é uma preconstituição da prova. O prazo para o registro de nascimento não representa mero critério arbitrário, senão condição de credibilidade.
V – JURISPRUDÊNCIA
Ao final, anota-se o que segue da jurisprudência:
“A origem do título judicial não o isenta do exame de qualificação registrária, cabendo ao registrador apontar hipóteses de incompetência absoluta da autoridade judiciária, aferir a congruência do que se ordena, apurar o preenchimento de formalidades documentais que a lei reputa essenciais e analisar a existência de obstáculos registrários.” (Apelação Cível 30.657-0/2 - CSM-SP).
“A origem judicial do título não o forra da qualificação registral.” (Apelação Cível 31.244-0/5 - CSM-SP).
Quanto ao não cumprimento do mandado judicial, não se vislumbra nenhuma irregularidade. O Serventuário, indubitavelmente, não é investido de poderes a questionar a soberana decisão judicial. Porém, lhe compete o exame do título à luz dos princípios norteadores dos registros de imóveis, um dos quais o da continuidade.” (Apelação Civil 11.400-0/1 - Conselho Superior da Magistratura-SP).
VI – CONCLUSÕES
Reafirma-se, naquele julgado procedente do STJ, na guarda da lei federal, em processo que tramitou em segredo de justiça, que a averbação da sentença de procedência transitada em julgado é ato acessório.
A decisão judicial constitui o direito/dever nela estabelecido e um mandado judicial extraído desse processo será instrumento hábil para registro.
Em relação à exclusão da filiação, a única maneira dela ocorrer é por meio de um processo judicial. A decisão final desse processo já estabeleceu a exclusão do vínculo de filiação. O registro dará publicidade, possibilitando a legítima comprovação dos efeitos decorrentes da extinção da filiação.
Ora, para o direito registral, a publicidade considera-se necessária, quando intervém no ato jurídico como formador do mesmo ou com o caráter de inoponibilidade em relação a determinados terceiros ou a todos os terceiros em geral, ou em relação ao fato jurídico, em sendo imposta para servir de elemento comprobatório do mesmo a determinar todos os efeitos imediatos que dele possam defluir. Ao contrário, considera-se não necessária, quando destinada apenas a levar a público o conhecimento de fatos ou situações jurídicas de interesse geral, sem que essa publicidade se faça mister à integração jurídica dessas relações.
Não se trataria o caso de uma publicidade constitutiva, que é substancialmente necessária para a constituição de um determinado direito ou à sua evidência.
Por outro há a publicidade declarativa quando concerne a fatos precedentes ou a precedentes negócios jurídicos, como ensinou Barassi(La notificazione necessária, pág. 145).