Feminicídio na Pandemia

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22/08/2020 às 18:24
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Além da letalidade do Covid-19 a violência doméstica e o feminicídio vem progredindo na pandemia. Precisamos denunciar e salvar as vítimas e suas famílias.

Palavras-Chave: Direito Penal. Direito Processual Penal. Direito Constitucional. Feminicídio. Homicídio qualificado. Violência doméstica. Lei Maria da Penha.

 

 

Além de muitos óbitos e doentes a pandemia do covid-19[1] intensificou a violência de gênero[2] e, principalmente, tornou a casa o lugar mais perigoso para mulheres e meninas.

 

Essa foi a conclusão da coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Juliana Martins. E, recentemente, o Fórum divulgou em 01.06.2020 uma pesquisa que apontou um crescimento de 22,2 em casos de feminicídio nos meses de março e abril do corrente ano em comparação com igual período do ano passado.

 

Feminicídio é termo referente ao crime de ódio baseado no gênero, correspondente ao assassinato de mulheres dentro do contexto de violência doméstica, ou em aversão ao gênero da vítima (misoginia), pois as definições variam dependendo do contexto cultural.

 

O assassinato de mulheres em contexto peculiares e marcados pela desigualdade de gênero ganhou uma designação específica: feminicídio.

Trata-se de crime hediondo desde 2015. É importante nomear de definir o delito, mas principalmente coibir os assassinatos femininos é relevante para se poder implementar efetivas ações de prevenção.

 

O conceito de feminicídio foi ao longo de quarenta anos ganhando ênfase entre os ativistas, pesquisadores e também organismo internacionais. Somente recentemente o feminicídio passou a ser incorporado às legislações dos diversos países da América Latina, incluindo o Brasil, através da Lei 13.104/2015 que objetiva debelar tais raízes discriminatórias da invisibilidade e ainda coibir a impunidade.  Em verdade é uma qualificadora do crime de homicídio contra mulheres tendo contexto sociológico e histórico. A palavra é nova para apontar algo antigo e persistente, principalmente, por indicar que as mulheres continuamente sofrem violência até culminar com sua morte.

 

A Lei que definiu feminicídio fora criada a partir de recomendação da Comissão Parlamentar MIsta de Inquérito sobre a Violência contra a mulher (CPMI-VCM) que apurou dados sobre a violência contra as mulheres no Brasil no período compreendido entre março de 2012 a julho de 2013.

 

O texto original, no entanto, sofrera alterações durante sua tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado, e no momento da aprovação no Congresso nacional, diante de forte pressão de parlamentares de bancada religiosa, a palavra "gênero" fora retirada do texto da lei.

É importante compreender as desigualdades que atuam como gatilhos para as mortes violentas, principalmente, para se obter uma atuação preventiva.

 

Afinal, o feminicídio é o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição do sexo feminino. Portanto, o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. O homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.

 

 Ao incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, o crime foi adicionado ao rol de crimes hediondos, tais como estupro, genocídio e o latrocínio, entre outros.

 

 

O feminicídio é homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato de ser mulher, em fraca prática misógina onde se destila o menosprezo pela condição feminina ou materializando a discriminação de gênero, fatores que também pode envolver também violência sexual, ou ainda, em decorrência de violência doméstica.

 

A Lei 13.104/2015 mais conhecida como a Lei do Feminicídio, alterou o Código Penal brasileiro, incluindo como qualificador do crime de homicídio o feminicídio.

 

Precisamos perceber que a Lei do feminicídio não enquadra, indiscriminadamente, qualquer assassinato de mulheres como um ato de feminicídio. O desconhecimento do conteúdo da lei levou diversos setores, principalmente os mais conservadores, a questionarem a necessidade de sua implementação. Devemos ter em mente que a lei somente aplica-se nos casos descritos a seguir:

 

Violência doméstica[3] ou familiar é quando o crime é praticado junta a ela, ou seja, quando o homicida é um familiar da vítima, ou já manteve algum laço afetivo com esta. Esse tipo é o mais trivial. Ao contrário de outros países da América Latina, em que a violência contra a mulher é praticada comumente por desconhecidos geralmente juntamente com a violência sexual.

 

Menosprezo ou discriminação contra a condição da mulher, quando o crime resulta da discriminação de gênero, manifestada por misoginia e pela objetificação da mulher.

 

Importante ressaltar quando o assassinato de uma mulher for decorrente, por exemplo, de latrocínio, ou de simples briga entre desconhecidos, ou é praticada por outra mulher, não há configuração de feminicídio.

 

Em razão dos elevadíssimos índices de crimes contra as mulheres que fazem o Brasil[4] assumir o quinto lugar mundial no ranking da violência contra a mulher, há a necessidade urgente de leis que tratem com rigidez tal tipo de crime.

 

Os recentes dados do Mapa da Violência revelam que, somente em 2017, ocorreram mais de sessenta mil estupros no Brasil. Ademais, nossa cultura se conforma com a discriminação da mulher seja por meio da prática, expressa ou velada da misoginia e do severo patriarcalismo. Redundando na objetificação da mulher, o que resulta em casos mais graves, no feminicídio.

 

Os tipos de feminicídio são basicamente aqueles apresentados pela lei em decorrência de violência doméstica e da misoginia havendo ou não violência sexual. A pesquisadora Jackeline Aparecida Ferreira Romio, doutora de Demografia pela UNICAMP, qualifica outro tipo de feminicídio, o reprodutivo que decorre de abortos clandestinos feitos em clínicas ilegais ou por meio de métodos caseiros, não menos letais.

 

O feminicídio também é decorrente estruturalmente, de um sistema legal que imprime a misoginia na forma de controle social sobre a mulher. E, a proibição do aborto[5] é uma forma de controlar o corpo e, concomitantemente, de manter um certo tipo de poder sobre as mulheres, além de não ser uma medida eficaz contra a prática.

 

Observa-se comprovadamente por estatísticas[6] que a proibição legal não cessou o número de abortos cometidos, mas fez com que as mulheres procurassem clínicas ilegais, que são em geral, locais sem condições sanitárias mínimas para realizar qualquer procedimento de saúde, ou até aborteiras que se utilizam de métodos caseiros igualmente perigosos e, por vezes, até letais.

 

A Lei 13.104/15, mais conhecida como Lei do feminicídio, introduz um qualificador na categoria de crimes contra a vida e altera a categoria dos chamados crimes hediondos, acrescentando nessa categoria o feminicídio.

 

Confira a lei, in litteris:

Feminicídio (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Aumento de pena

§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;

III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (NR)

 

Art. 2º O art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte alteração:

“Art. 1º

I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV, V e VI);

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

Brasília, 9 de março de 2015; 194º da Independência e 127º da República.

 

Também houve alteração da seção dos crimes hediondos (lei nº 8.072/90) por meio da lei 13.104/15, que colocou o feminicídio na mesma categoria desses crimes, o que resultou na necessidade de se formar um Tribunal do Júri, ou o conhecido júri popular, para julgar os réus de feminicídio.

 

Em verdade, a violência de gênero[7] vem aumentando desde antes da pandemia. Tanto que já há maior número de registros que dependem da presença da mulher nas delegacias caíram. A casa se traduz, infelizmente, um dos lugares mais perigosos para as mulheres e meninas.

 

Em relação às meninas, Juliana lembra que outro levantamento do Fórum apontou que mais de 50% das vítimas de violência sexual têm 13 (treze) anos e que a maioria dos agressores é conhecida dos familiares.

 

Ao olhar para esse momento da pandemia, Juliana afirma que é importante lembrar que a mulher está confinada com o agressor, o que impõe uma série dificuldades.

 

"Além dos riscos do confinamento, há uma precariedade financeira, o fato de que muitas têm filhos com o agressor. Assim, é uma mistura de sentimentos que as fazem denunciar ou querer voltar atrás."

 

A pesquisadora ressalta que os boletins de ocorrência indicam casos em investigação, ou seja, quando a autoridade policial já registrou oficialmente como feminicídio. Segundo ela, após o encerramento dos inquéritos, o número de mulheres mortas por serem mulheres pode ser ainda maior[8]. "Há casos de homicídios que podem terminar como feminicídio. Trata-se de um crime cultural[9] assimilado ao longo da história da humanidade.

 

Além da vulnerabilidade financeira e de uma possível perda de renda por parte das mulheres neste contexto pandêmico, não raro, elas perdem parte da rede de apoio. "Elas não estão saindo ou tendo contato com amigos e familiares, pessoas que poderiam enxergar os problemas e conflitos que estão enfrentando."

 

Para frear ou diminuir esses índices, uma medida importante seria o fortalecimento dessa rede de proteção. "Dependendo da situação, elas não confiam nessas autoridades policiais", afirma a coordenadora.

 

O feminicídio, diz a pesquisadora, é a expressão mais cruel dessa violência, que expõe relações de poder em jogo. "É preciso buscar meios de registrar essas ocorrências."

 

Os relatos de brigas de casal crescem 431 por cento na pandemia, é o que afirma a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e incluem levantamentos oficiais sobre a violência doméstica.

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O estudo serve como referencial e termômetro para avaliar nas famílias no decorrer da quarentena em diversos estados brasileiros, analisou 52.315 menções no twitter, plataforma em que os internautas se manifestam mais espontaneamente sobre acontecimentos do cotidiano.

 

O problema é que a mulher em situação violência, confinada com seu agressor não está conseguindo acessar os equipamentos públicos[10] para realizar denúncia.  Em outro levantamento produzido pelo mesmo Fórum analisou dados oficiais de feminicídio e homicídios de mulheres, fornecidos pelas secretarias estaduais da Segurança de São Paulo, Pará[11], Acre, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Rio de Janeiro.

 

Na primeira atualização de um relatório produzido a pedido do Banco Mundial, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) destaca que os casos de feminicídio cresceram 22,2%, entre março e abril deste ano, em 12 (doze) Estados do país, comparativamente ao ano passado. Intitulado Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, o documento foi divulgado hoje (1º.06.2020) e tem como referência dados coletados nos órgãos de segurança dos Estados brasileiros.

 

Os fatores que explicam essa situação são a convivência mais próxima dos agressores, que, no novo contexto, podem mais facilmente impedi-las de se dirigir a uma delegacia ou a outros locais que prestam socorro às vítimas, como centros de referência especializados, ou, inclusive, de acessar canais alternativos de denúncia, como telefone ou aplicativos.

 

Por essa razão, especialistas consideram que a estatística se distancia da realidade vivenciada pela população feminina quando o assunto é violência doméstica, que, em condições normais, já é marcada pela subnotificação.

 

Por isso, é preciso que parentes, vizinhos, amigos, conhecidos e até desconhecidos ao tomarem conhecimento de prática de violência contra a mulher deve denunciar.

 

Contrariando o velho ditado que diz que “em briga entre marido e mulher, ninguém deve meter a colher”. Para preservar a dignidade humana toda intervenção é relevante e capaz de evitar tragédias para as famílias e para sociedade[12].

 

 

 

 

 

Referências:

BRASIL. Lei nº LEI Nº 13.104, DE 9 DE MARÇO DE 2015. Brasília, DF, mar, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm

BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Reforma do Judiciário. A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil. Brasília: SRJ, 2014. Disponível em http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/ uploads/2015/04/Cejus_FGV_feminicidiointimo2015.pdf.

FEMINICÍDIO: a realidade brasileira. Produção: FOLHA, Állison A. et al. 20 min, colorido. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UuLfMufHL0Y. Acesso em: 01 set. 2019.

GARCIA, L. & SILVA, G. D. M. da. Texto para discussão: Mortalidade de mulheres por agressões no brasil: perfil e estimativas corrigidas (2011-2013). Brasília; Rio de Janeiro: Ipea, 2016.

MENEGHEL, S.N. et al. Femicídios: narrativas de crimes de gênero. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.523-33, jul./set. 2013.

PÉREZ, Victoria A. Ferrer; FIOL, Esperanza Bosch. Violencia de género y misoginia: reflexiones psicosociales sobre un posible factor explicativo. Papeles del psicólogo, n. 75, p. 13-19, 2000.

PORFíRIO, Francisco. "Feminicídio"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/feminicidio.htm. Acesso em 17 de agosto de 2020.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (ORG). Atlas da violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.

 

Obs.: PL 1.444/2020 altera a Lei 13.979, de 2020, que define regras para o enfrentamento da Covid-19. De acordo com a proposta, União, Distrito Federal, Estados e municípios Devem estabelecer medidas protetivas[13] excepcionais para atender a mulher e os dependentes em situação de violência doméstica e familiar.

 

O texto determina o afastamento imediato do agressor, caso a mulher ou os dependentes tenham a vida ou a integridade física ameaçadas[14]. Se esse afastamento não for possível, as vítimas devem ser acolhidas em centros de atendimento, casas-abrigos ou abrigos institucionais.

 

Se a violência doméstica for cometida durante a pandemia, a polícia deve enviar ao juiz em 24 (vinte e quatro) horas um pedido para a concessão de medidas protetivas de urgência. O prazo em vigor é de 48 horas.

 

O Poder Judiciário também tem 24 (vinte e quatro) horas para decidir. Entre as medidas protetivas, o magistrado pode determinar a realização de visitas periódicas pela polícia na casa da mulher em situação de violência.

 

De acordo com o projeto, as Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher (Deams) devem garantir atendimento domiciliar para o registro de ocorrências.

 

A regra vale para crimes de estupro e feminicídio ou ainda para situações de risco iminente. O texto também prevê a divulgação de dados sobre violência doméstica e abuso sexual, classificados por tipo de crime, idade, raça e cor das ofendidas.

 

O PL 1.444/2020 prevê a destinação de “recursos emergenciais” para garantir o funcionamento de centros de atendimento, casas-abrigos e abrigos institucionais durante a pandemia. Caso não haja vagas, o Poder Público deve ampliar a oferta por meio do aluguel de casas, quartos de hotéis e espaços privados.

 

Os locais devem garantir distanciamento físico entre as diferentes famílias abrigadas; ambientes ventilados e higienizados periodicamente; alimentação, itens básicos de higiene; e roupas de cama e banho. O texto também determina a oferta de equipamentos de proteção individual; segurança para os abrigados e sigilo.

 

Pelo projeto, alguns serviços devem ter funcionamento prioritário durante a pandemia. Entre estes, o canal “Ligue 180”, para o atendimento psicológico das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, e o “Disque 100”, para os demais grupos vulneráveis. O texto também recomenda o funcionamento ininterrupto das Deams.

 

O PL 1.444/2020 altera também a Lei 13.982, de 2020, que prevê o pagamento o auxílio emergencial de R$ 600 por mês durante a pandemia. A norma em vigor já estabelece que a mulher que cuida sozinha dos filhos tem direito a duas cotas do benefício. Mas o projeto aprovado pela Câmara estende o auxílio à mulher “em situação de violência doméstica, sob medida protetiva decretada”. Fonte: Agência Senado

 

 

 

 

 

 

 

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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