A contribuição de Michel de Montaigne para o Direito. Parte I

25/08/2020 às 16:16
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O texto apresenta algumas das contribuições de Michel de Montaigne para o Direito.

Parece-me que nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder real. É a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas sociedades foi elaborado. No Ocidente, o direito é encomendado pelo rei[1]                                

                       

                                  A Contribuição de Michel de Montaigne para o Direito

 

                                                                        Parte I

 

O presente texto tem o propósito escrever algumas linhas a respeito da contribuição de Michel de Montaigne para a ciência do direito. De fato, o pensador moralista francês, nascido em 1533[2], teve várias e importantes atividades: foi filósofo, advogado, ensaísta, conselheiro da Corte de Impostos de Périgueux, conselheiro do Parlamento de Bordeaux, fidalgo de gabinete do rei de Navarra e, ainda, prefeito da cidade de Bordeaux, em duas ocasiões. Montaigne [assim como os demais filósofos de nomeada], não pode [e não deve] ser considerado como um pensador apenas de seu tempo, do século XVI.

Como uma simples leitura de seus Ensaios, percebe-se claramente que Montaigne também é da pós-modernidade, pertence ao século XXI, porquanto, tem muito a ensinar.

Sua forma de pensar; a maneira como vê o mundo e as pessoas; seus conceitos a respeito de tudo e de todos, são mais do que presentes em tempos que cada vez mais se afastam da era moderna. A obra de Montaigne se tornou perene e o leitor, ao primeiro contato com os escritos [Os Ensaios], inexoravelmente terá a sensação de que o pensador moralista tomou da pena para descrever seu eu apenas agora, em 2020.

Ao se tornar, efetivamente, a verdadeira matéria de seus Ensaios, recolhendo-se no segundo andar da torre de seu castelo [a partir de 1572], até mesmo considerando o desapontamento com a vida[3], Montaigne, efetivamente, não descreve somente o seu eu, não sonda a si mesmo. Não. Vai bem mais além de tal descrição, pois, o pensador lida com assuntos deveras importantes, até mesmo o direito.

Com efeito, o fidalgo, ao optar pelo voluntário exílio, resolve, de fato, escrever belos axiomas, deveras profundos e que merecem, sem qualquer dúvida, a atenção do intérprete atual, especialmente porque este se vê [ainda] indisfarçavelmente atrelado ao positivismo jurídico[4]. Ao molhar sua pena em temas palpitantes, como a morte, a moral e a ética, dentre outros não menos relevantes, Montaigne demonstra com muita facilidade sua forma elegante, polida, leve e agradável de escrever. A maneira contundente como analisa certos fatos históricos, e por que não dizer, a própria vida, demonstra um estilo particularíssimo de enxergar o mundo.

Estudados os escritos de Montaigne por quem não tem, efetivamente, qualquer formação acadêmica em filosofia, e sim em direito, não desconsiderando as limitações deste que escreve, cabe aqui apresentar algumas reflexões do pensador moralista especificamente acerca de tal ciência – o direito -, com o firme propósito de demonstrar à saciedade o quão importante é a obra de Montaigne, sempre repisando o fato de que os presentes escritos não saíram da pena de um filósofo, mas sim de um advogado.

O que existe de mais recente, especialmente no Brasil, é a tradução dos Ensaios levada a efeito por Rosemary Costhek Abílio [obra editada pela Martins Fontes][5], sendo que os três volumes servirão de base para este texto e os demais, a serem publicados na seqüência[6]. Considerando a extensão da obra de Montaigne, evidentemente que nem aqui, e muito menos nos demais escritos far-se-á uma abordagem ampla acerca de todos os pensamentos do filósofo a respeito do direito. A parte 1 dos escritos restringir-se-á a algumas reflexões constante do Livro I dos Ensaios, sendo que as transcrições ocorrem em forma sequencial, tudo de acordo com a leitura da referenciada obra.

A respeito da interpretação da lei; da razoabilidade que deve nortear os atos; do verdadeiro papel do hermeneuta, que é justamente o papel de interpretar a lei, Montaigne assim se posiciona: há uma grande diferença entre a causa de quem segue as formas e as leis de seu país e a de quem faz por dirigi-las e mudá-las. Aquele alega como justificativa a ingenuidade, a obediência e o exemplo: não importa o que faça, não pode ser malícia; é, no máximo, má sorte. E mais o que diz Isócrates, que a falta tem parte maior na moderação do que o excesso. O outro está em situação bem mais difícil, pois quem se aventura a escolher e a mudar usurpa o poder de julgar, e tem de comprometer-se a ver a falha do que afasta e o benefício do que introduz[7].

Cabe ao hermeneuta, ao intérprete sistemático da lei, colocar em prática a hermenêutica filosófica, deixando de lado, definitivamente, a filosofia da consciência, como bem pondera Lenio L. Streck[8]

Nesse passo, no que diz especialmente com a linguagem, Montaigne assim se expressa: o falar que aprecio é um falar simples e natural, tanto no papel como na boca; um falar suculento[9] e musculoso, breve e denso, não tanto delicado e bem arrumado como veemente e brusco[10]. E vai mais além, fazendo constar que assim como no trajar-se é pobreza de espírito querer distinguir-se por alguma característica particular e inusitada, da mesma forma na linguagem a busca de expressões nova e de palavras pouco conhecidas provém de uma ambição pueril e pedantesca[11]. O discurso pós-moderno carrega, sem qualquer dúvida, certo fetichismo quanto ao modo de produção do direito, ainda atrelado o positivismo jurídico, onde a lei é tudo; é a mais importante fonte do direito.

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De fato, o direito é linguagem, consoante pondera Castanheira Neves[12], não menos certo que é de ser afastada, conforme aqui já exposto à saciedade, a ultrapassada Filosofia da Consciência [sujeito-objeto], para se colocar em prática [permanente] a Filosofia da Linguagem (ou Hermenêutica Filosófica [sujeito-sujeito], percebendo o exegeta, finalmente, que a lei é apenas e tão somente uma das fontes do direito e que este está acima do Estado.

Evidentemente que a obra de Montaigne é de grande profundidade e não cabe resumi-la[13] aqui, no quadro estreito que se apresenta, mas cabe, isso sim, demonstrar que Os Ensaios se constituem instrumento riquíssimo de pesquisa, inclusive quanto à forma [correta] de aplicação do direito. Michel Montaigne apontou, há 400 [quatrocentos] anos, que o intérprete não deve ter visão turva, deveras limitada e estreita a respeito da lei, e principalmente do direito, cabendo-lhe, pois, agir com moderação, prudência, sem ostentação no discurso jurídico.   

Não menos certo que a eloquência traz prejuízo às coisas, quando nos desvia para si mesma[14]. O que se quer dizer, em resumo, é que todos os ensinamentos de Montaigne são no exato sentido de que o intérprete deve bem compreender qual é o [real] sentido da lei posta pelo Estado.

Para tanto compete ao sistemático intérprete, isso sim, colocar em prática verdadeiro empreendimento interpretativo, sempre com um olhar na atual Constituição Federal brasileira, que coloca ao dispor deste mesmo hermeneuta um leque de [inúmeros] princípios que podem [e devem] ser utilizados nas mais variadas manifestações lançadas em processos judiciais, por exemplo.

Quem sabe, a dita viragem linguística do modo de interpretação do direito, pode ter partido [de fato] da pena de Montaigne há mais que 400 [quatrocentos] anos.   

 

 

 


[1] Foucault, Michel. Microfísica do Poder. 22ª edição. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006, p. 180.    Tradução: Roberto Machado. A respeito do positivismo jurídico, vale a pena ler e reler [dentre outros importantes pensadores contemporâneos] as obras de Paolo Grossi.

[2]  E falecido em 13 de setembro de 1592. Montaigne morreu em seu leito, localizado no primeiro andar da torre de seu castelo, que ainda se encontra edificado. Note-se que o pensador era um fervoroso cristão.

[3] Após o falecimento de seu melhor amigo Étienne de La Boétie  e de seu pai, Pierre E. de Montaigne, parece que o pensador fidalgo não mais teve o mínimo gosto pela vida [sendo a morte o sincero e real objetivo de sua caminhada], resolvendo se isolar de tudo e de todos, por assim dizer. Ainda, percebe-se que, para o filósofo moralista, era de somenos importância qualquer espécie de glória do mundo em que vivia, tendo alma bem diferente dos demais, dos vulgos. Aliás, a ideia primordial do pensador era afastar sua alma da multidão, a fim de que desfrutasse de plena e inexorável liberdade, inclusive para se debruçar sobre os seus mil livros.  Queria desfrutar tão somente de seu eu.

[4] Que por sua vez apresenta exacerbado formalismo jurídico [Hans Kelsen] e racionalismo [René Descartes], isolando-se em relação a outras ciências não menos importantes para a resolução dos conflitos intersubjetivos e transindividuais, e acreditando ser autossuficiente, com evidente visão limitada e míope do mundo. Esse mesmo positivismo jurídico não raras vezes se olvida da realidade e nem sempre o hermeneuta [considerando o instrumental teórico disponível e principalmente o fato de que se vê deveras atrelado ao texto legal] está, de fato, preparado para tratar de assuntos trans-individuais. Há de se colocar em significativo relevo a hermenêutica filosófica, valendo a pena ler e reler os escritos de Lenio L. Streck, dentre outros autores de nomeada.

[5] Também tendo, sempre, como pano de fundo os escritos de Pierre Villey, de fato considerando  o  maior intérprete da obra de Michel de  Montaigne.

[6] Aqui não ingressar-se-á [dada a limitação do espaço] no estudo da obra Diário de Viagem, publicada em 1774. De fato há outra tradução dos Ensaios de Montaigne, levada a efeito por Sérgio Milliet, que também vale a pena ser lida.

[7] Os Ensaios. Livro I, p. 181.

[8] Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 3ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

[9] Conforme nota constante da obra: cheio de sentido.

[10] Op. cit., p. 256.

[11] Idem, p. 257. E citando Sêneca, o discurso que está a serviço da verdade deve ser simples e sem artifício.

[12] Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 90. A propósito, ver, dentre outras, a obra de J.J. Calmon de Passos: Direito, Poder, Justiça e Processo. Julgando os que nos Julgam. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.

[13] E a pretensão não existe.

[14] Os Ensaios. Livro I, cit., p. 257.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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