1. INTRODUÇÃO
O trabalho doméstico, cuja existência tem origem no período de escravidão e do colonialismo, desperta importantes e emergentes reflexões, sobretudo pela possibilidade da ampliação da desigualdade e opressão nessa relação num momento de desestruturação do sistema de proteção dos trabalhadores no Brasil.
Desta forma, vislumbramos que um dos temas que exigem uma análise científica e propositiva é o relativo à jornada de trabalho desses trabalhadores, pela importância não apenas concernente a fatores biológicos, físicos e sociais e consequentes repercussões na vida, na saúde, na convivência familiar e social desses trabalhadores.
Os domésticos, até pouco tempo atrás, no Brasil, poderiam trabalhar sem limite de horas em suas jornadas, o que os fragilizava em direção a que fossem vítimas de danos existenciais e em trabalho análogo ao de escrevo, sendo, ademais, essa possibilidade fática, um dos resquícios de uma injustiça social que atingia gravemente a categoria.
Nesse contexto, em que pese outros diplomas normativos tenham paulatinamente reconhecido direitos aos trabalhadores domésticos, foi com os adventos da Emenda Constitucional 72 e da Lei Complementar n. 150, de 2015, que a categoria obteve a garantia do trabalho submetido a uma jornada máxima de trabalho.
Nessa perspectiva, não obstante a necessidade de que festejemos e prestigiemos a novel disciplina legal em torno do limite da jornada de trabalho dos empregados domésticos, surge a necessidade de analisar aspectos dessa nova disciplina, mais especificamente em torno daqueles trabalhadores domésticos que eventualmente estejam em trabalho incompatível com a fixação da jornada de trabalho.
De tal modo, assim, destacamos neste artigo o trabalhador doméstico que exerce a atividade de “caseiro”, na medida em que a atividade desse trabalhador, em muitos casos, se opera longe da fiscalização ou controle do seu empregador, situação na qual se poderia considerar que estaria incluso no art. 62, inciso I, da CLT por aplicação análoga ao previsto no supracitado dispositivo.
Tratamos, inicialmente, do quadro normativo atual no qual está inserido o trabalho doméstico perpassando pelas origens e bases materiais e filosóficas do trabalho doméstico. .
2. O EMPREGADO DOMÉSTICO NO QUADRO ATUAL DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL
O trabalhador doméstico, que é o integrante da categoria profissional que presta serviços no âmbito residencial da pessoa ou família com continuidade, mediante remuneração e sem que o seu trabalho tenha conteúdo econômico (art. 1º da Lei Complementar 150), obteve melhoria considerável do seu status jurídico.
Assim, com o advento da Lei Complementar 150 foi instituído um microssistema de regulação do trabalho doméstico, passando a inovar, portanto, o regime previsto anteriormente e regulamentando, em grande parte, os direitos previstos em normas de eficácia limitada criadas pela EC 72/2013, inclusive ao permitir a aplicação subsidiária da CLT, desde que observadas as peculiaridades do trabalho doméstico (LEITE, 2018, p. 210).
No plano histórico, é possível constatar que essa categoria foi consequente do trabalho escravo, razão pela qual foi tratada, do ponto de vista legislativo, até bem pouco tempo e por déficit civilizatório, com um nível de desigualdade e de opressão consectários do regime escravagista que vigorou legalmente no Brasil até o final do século XIX (SOUZA JUNIOR, 2015, p. 19).
Ângela de Castro Gomes (2002, p. 9) ensina que uma das principais características do início de uma luta por direitos do trabalho no Brasil foi a necessidade de enfrentar a dura herança de um passado escravista, que marcou profundamente toda a sociedade, nas suas formas de tratar e de pensar seus trabalhadores.
Desde sempre e até a Constituição Federal de 1988, inclusive, os domésticos estiveram vários passos atrás em termos de reconhecimento de direitos em se considerando os demais trabalhadores, o que Mauricio Godinho Delgado (2017, p. 420) retrata como sendo um extenso período em constrangedor limbo jurídico.
Na década de 1940 quando entrou em vigor no Brasil a Consolidação das Leis do Trabalho, que disciplinava o trabalho em regime de emprego, reconhecendo significativos direitos aos trabalhadores urbanos, os trabalhadores domésticos, foram excluídos expressamente do principal diploma legislativo de proteção dos trabalhadores, conforme a regra do art. 7º, alínea “a”.
Na sequência, os diplomas legislativos que se seguiram, mantiveram os trabalhadores domésticos em posição jurídica diferenciada e inferior aos demais trabalhadores, o que era “justificado” pelo conteúdo não econômico deste trabalho, ou seja, porque o trabalho doméstico produz valor de uso e não valor de troca para seu empregador (DELGADO, 2017, p. 416).
Melhor explicando, os empregados comuns têm o seu trabalho reunido a outros elementos, capital e bens, para a geração de riqueza do tomador dos serviços, o que não ocorre com o trabalhador doméstico, enquanto o trabalhador doméstico exerce atividade meramente de consumo, economicamente não produtiva (GOMES; GOTTSCHALK, 2011, p. 100).
Não obstante essa diferenciação pelo conteúdo do trabalho prestado e o seu valor na ótica capitalista, Orlando Gomes e Elson Gottschalk (2011, p. 101) salientam que a tradição legislativa de não se aplicar aos domésticos a ampla tutela, que cobre a classe trabalhadora em geral, se explicaria pelo fato de que tal ampla proteção, sendo aplicável a essa classe, levaria a prejudicar a relação entre doméstico e empregador, vez que existe, em muitos casos, intimidade entre as partes, ocasião que faria com que o trabalhador reivindicasse suas condições pessoais.
Assim, o trabalho doméstico aparecia entre nós com um incômodo déficit civilizatório, o que acontecia, por exemplo, pela não limitação da jornada de trabalho desses empregados, principalmente porque os trabalhadores dessa categoria tinham a restrição de direitos que não se justificava pelo fundamento da natureza não econômica do trabalho prestado e tampouco por razões de relacionamento interpessoal.
Não obstante, a situação dos trabalhadores domésticos foi alterada consideravelmente pela Emenda Constitucional 72, de 02 de abril de 2013, que estendeu a essa categoria, no plano constitucional, diversos direitos que foram excluídos originalmente pelo constituinte de 1988, o que foi consequência do aprofundamento das discussões em torno da injustificável situação jurídica desses trabalhadores, conforme bem observa Carla Teresa Martins Romar (2018, p. 204):
Em resposta às discussões sobre a desigualdade de tratamento constitucional entre os trabalhadores urbanos e rurais e os trabalhadores domésticos, e atendendo aos anseios dessa última categoria, que somente no Brasil soma mais de sete milhões de trabalhadores, a Emenda Constitucional n. 72/2013 estabeleceu uma nova ampliação aos direitos do empregado doméstico.
A Emenda 72, portanto, abriu oportunidade a que legislação complementar pudesse disciplinar o trabalho doméstico de modo a equipará-lo à disciplina protetiva e dignificante dos demais trabalhadores urbanos e rurais.
De fato, veio em seguida a Lei Complementar 150, de 1º de junho de 2015, com uma esclarecedora e importante disciplina do trabalho doméstico. A Lei Complementar, por exemplo, cessou a controvérsia em torno da quantidade de dias necessários para a configuração do trabalho em regime de emprego doméstico estabelecendo que configura a relação de emprego o trabalho prestado em mais de dois dias na semana, de acordo com art. 1º.
Por outro lado, a Lei Complementar excluiu do trabalho doméstico os menores de 18 anos, reafirmando o Decreto n. 6.481/2008 e se adequando à Convenção n. 182 da Organização Internacional do Trabalho, criando, assim, uma importante exceção à maioridade trabalhista, que começa aos 16 anos para os demais trabalhadores.
Ademais, a lei complementar estabeleceu, de modo pormenorizado, o regime da jornada de trabalho desses profissionais, intervalos no curso da jornada, intervalo semanal e sistema de compensação de horas.
Disciplina significativa na Lei Complementar 150, ademais, foi a do trato da inclusão do trabalhador doméstico no regime do FGTS e sua participação no seguro-desemprego. Nesse contexto, a referida lei passou a prever, também, o contrato a tempo parcial, os contratos por prazo determinado, inclusive para a contratação excepcional em substituição de trabalhador permanente e o estabelecimento de regras em torno da ruptura do contrato de trabalho.
Ressaltamos, por fim, uma das alterações mais relevantes na disciplina da lei específica dos trabalhadores domésticos foi a determinação da aplicação subsidiária da CLT à respectiva categoria. Desta forma, destaca-se que antes da LC 150, os domésticos eram excluídos da CLT (art. 7º, a, CLT) e alguns de seus artigos eram utilizados apenas para dar eficácia aos direitos constitucionais que lhe eram estendidos e não regulamentados por lei especial (CASSAR, 2018, p. 41).
3. A FIXAÇÃO DE UMA JORNADA DE TRABALHO PARA OS EMPREGADOS DOMÉSTICOS NO BRASIL: UMA CONQUISTA DA CIVILIZAÇÃO
O Direito do Trabalho surgiu como reação dos trabalhadores à opressão imposta pelo capitalismo e pelos capitalistas, entre outras coisas e, principalmente, pelo pagamento de salários aviltantes e pela exigência de jornadas extenuantes.
É que a imposição de jornadas de trabalho demasiadamente elásticas, de 14, 16 ou 18 horas, tem o potencial de comprometer a saúde, a integridade física do trabalhador e de até retirar-lhe a dignidade, na medida em que a vida de uma pessoa não deve se restringir ao trabalho (JORGE NETO; FERREIRA, 2019, p. 631).
Ademais, jornadas de trabalho alongadas atuam contra a qualidade e a quantidade do produto e do serviço prestado, o que afeta a economia e os interesses da produção. Por outro lado, num contexto de crise do emprego, jornadas mais longas retiram postos de trabalho e geram desemprego.
Esses aspectos todos, assim, determinaram que os legisladores, inicialmente, e que as categorias de trabalhadores e empregadores, num momento histórico posterior, tratassem da limitação das jornadas de trabalho na legislação editada pelo Estado e pelos atores da relação de trabalho.
Não obstante, no Brasil se seguiu que os trabalhadores domésticos, diferentemente dos demais trabalhadores, não fossem alcançados pela limitação de sua jornada de trabalho.
Em primeiro lugar, a CLT, que trata do regime de jornada de trabalho em capítulo específico, não se aplicava aos domésticos, por força do art. 7º, alínea “a”.
Em segundo lugar, porque a lei específica que primeiramente tratou dos trabalhadores domésticos no Brasil, a Lei n. 5.859/1972, não tratou dessa limitação, o que se renovou na Constituição Federal de 1988, que previa direitos sociais e trabalhistas aos domésticos no Parágrafo único do art. 7º, mas não o relativo à limitação da jornada de trabalho.
É evidente que o tratamento legislativo ordinário e depois constitucional do trabalho doméstico no Brasil preservava para esses trabalhadores uma condição aviltante que atentava contra a dignidade da pessoa e que nos remetia ao período escravocrata, do qual se sugere que o trabalho doméstico seja remanescente.
Incontroverso, ademais, que esse quadro revelava um significativo e vergonhoso quadro de déficit civilizatório que requeria fosse ultrapassado pela firme atuação dos atores do mundo do trabalho.
Finalmente, porém tardiamente, o legislador brasileiro sanou esse vergonhoso problema equiparando o trabalhador doméstico aos demais trabalhadores para limitar a sua jornada de trabalho, o que se operou por meio da promulgação da Emenda Constitucional 72, de 2013, festejada Ricardo Resende (2016, p. 186) como sendo a principal alteração legislativa na Emenda:
A alteração mais importante trazida pela EC nº 72/2013 foi o reconhecimento do direito do doméstico à limitação da duração do trabalho. Com efeito, até então se entendia que o doméstico não tinha a jornada de trabalho tipificada, razão pela qual não fazia jus aos limites legais e, consequentemente, à remuneração diferenciada das horas extras e das horas noturnas trabalhadas, bem como aos descansos trabalhistas.
A Lei Complementar 150 que passou a regular o trabalho doméstico pós Emenda 72, garantiu detalhadamente o gozo dos direitos decorrentes da equiparação aos demais trabalhadores urbanos e rurais, o que incluiu uma importante e clara disciplina da jornada de trabalho, intervalos e sistemas de compensação de horas. Ademais, e por fim, tornou-se obrigatório o registro de horário de trabalho do doméstico (art. 12).
4. O EMPREGADO DOMÉSTICO EM TRABALHO INCOMPATÍVEL COM A FIXAÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO E A SUA EXCLUSÃO DAS REGRAS QUE TRATAM DAS JORNADAS DE TRABALHO
Não é exagero afirmar que a Emenda Constitucional 72 reconheceu dignidade ao empregado e ao trabalho doméstico ao conferir a essa categoria, ainda que tardiamente, como afirmado em outro momento, direitos iguais aos trabalhadores urbanos, quase sem exceção. Dentre os direitos reconhecidos, um dos mais relevantes, em nossa opinião, foi o relativo à limitação da jornada de trabalho desses empregados.
A Constituição Federal, que previa jornada máxima de oito horas diárias e de quarenta e quatro horas semanais, salvo acordo ou convenção coletiva, passou a se aplicar a essa categoria, que em pleno século XXI poderia ser explorada desmedidamente quanto ao tempo de permanência no trabalho, executando ou aguardando ordens.
Na sequência da alteração constitucional veio a Lei Complementar n. 150, disciplinando os direitos que foram estendidos aos trabalhadores domésticos, dentre eles o relativo à limitação da jornada diária e semanal.
A Lei Complementar 150 previu a possibilidade de compensação de horas; o adicional noturno; a dobra para o trabalho em domingos e feriados; o adicional para horas em viagens; a possibilidade de jornada de 12X36; o repouso no curso da jornada; e a necessidade de que as horas de trabalho sejam registradas pelo empregador.
Nos termos da lei em consideração, a compensação de horas necessita ser ajustada por escrito e as horas extras compensáveis no mês não podem ultrapassar o total de 40 horas excedidas da jornada normal, de ordinário, conforme os incisos do § 5º do art. 2o. A lei previu, ademais, a compensação de domingos e de feriados.
A Lei Complementar 150, por outro lado, permitiu expressamente o contrato a tempo parcial, de 25 horas semanais, com salário proporcional às horas ajustadas e a possibilidade de acréscimo de uma hora extra por dia, conforme o art. 3º. Essa possibilidade, expressamente prevista, pôs fim ao conflito doutrinário e jurisprudencial quanto à legalidade desse tipo de ajuste na relação de emprego doméstico.
Relativamente ao delicado trabalho em viagens, ou seja, quando o trabalhador acompanha o empregador ou pessoa da família numa viagem, o art. 11 da Lei Complementar 150 estatuiu que só serão consideradas as horas efetivamente trabalhadas, não se supondo que todo o tempo da viagem seja considerado na forma de tempo à disposição. As horas excedentes da jornada normal, no entanto, poderão ser compensadas, observadas as regras do art. 2º da lei.
O trabalho do empregado doméstico em acompanhamento do empregador em viagens, porém, precisa ser condição prevista no contrato ajustado por escrito entre empregador e trabalhador. Noutras palavras, se não há contrato escrito com cláusula de acompanhamento, o empregador não pode exigir esse tipo de trabalho.
A Lei Complementar concebeu, ainda, quanto ao trabalho em acompanhamento em viagens, um adicional salarial de 25% sobre as horas trabalhadas nesse regime, § 2º do art. 11, que poderá ser transformado em banco de horas. Caberá ao empregado, nesse caso, decidir quando será a folga compensatória do trabalho nessas condições, de acordo com o § 3º do art. 11, o que é uma inovação significativa, já que na forma tradicional de compensação cabe ao patrão a escolha dos dias de folga.
No art. 10 da Lei Complementar 150, o legislador previu a possibilidade do ajuste direto, entre trabalhador e empregador, da jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso, o que a jurisprudência, até então, só admitia para os empregados urbanos comuns, desde que sob previsão de convenção ou acordo coletivo.
Quanto aos intervalos no curso da jornada, intervalos não remunerados, o legislador complementar assegurou aos domésticos, art. 13, o intervalo mínimo de uma hora e máximo de duas em cada jornada, sendo possível a redução do intervalo a 30 minutos, por meio de acordo escrito entre trabalhador e empregador. O legislador considerou, ademais, a possibilidade de que o trabalhador resida no local de trabalho, quando os intervalos poderão ser na forma do § 1º do art. 13.
Relativamente aos intervalos, ademais, o legislador estatuiu o intervalo entre duas jornadas de trabalho, que deve ser de no mínimo 11 horas, e o intervalo semanal remunerado, preferencialmente em domingos, e o repouso remunerado em feriados – art. 16.
Mantendo-se inovador em relação aos domésticos, o legislador da Lei Complementar reconheceu à categoria, ainda, o trabalho noturno como sendo das 22h às 05h, tendo a hora noturna duração de 52 minutos e 30 segundos e com a previsão de um adicional salarial de 20% em face do desgaste maior que o trabalho nesse horário impõe ao trabalhador.
A Lei Complementar exige, noutro ponto, em seu art. 12, o registro da jornada de trabalho do empregado doméstico por qualquer meio idôneo, manual, mecânico ou eletrônico, o que significa, na prática, que a ausência dos registros transferirá para o empregador o ônus da prova das jornadas cumpridas, em caso de judicialização da matéria, conforme a interpretação que consta na súmula 338 do TST.
Lamentamos, contudo, que o legislador não tenha tratado do trabalho do empregado doméstico em atividade incompatível com a fixação de horário de trabalho, o que é objeto desta nossa reflexão, inclusive porque o trabalho doméstico contempla diversas possibilidades e expressões de sua ocorrência. Por isso, temos o trabalho doméstico do motorista, do cuidador de idosos, das babás, do caseiro etc.
O caseiro é o trabalhador doméstico que guarda essa condição e atua na limpeza, na preparação de alimentos para a família, no cuidado com animais domésticos, no cuidado e limpeza de piscinas e/ou na guarda, na vigilância e manutenção do imóvel de lazer da família, quase sempre residindo em imóvel do empregador na mesma propriedade.
Esse trabalho apresenta a especificidade de ser executado, no mais das vezes, longe do controle e da fiscalização do empregador. É que, como dissemos, o trabalho do caseiro é executado em propriedade imóvel, normalmente utilizado pelo empregador e sua família em finais de semana, feriados e férias. O caseiro, assim, na maioria dos dias, executa as suas atividades sem que o empregador execute sobre elas qualquer fiscalização ou controle.
A CLT, no art. 62, traz três hipóteses de exclusão do trabalhador do regime de controle da jornada de trabalho, a saber: os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho; os gerentes e assemelhados que recebam gratificação diferenciada, na forma da lei; e os trabalhadores em regime de teletrabalho e, em nossa perspectiva, o trabalho do caseiro nas condições acima descritas, ou seja, sem o controle e a fiscalização do empregador, de pessoa da família ou de preposto, se enquadra na exceção do inciso I do art. 62 da CLT ao menos por analogia.
Note-se que a razão para a exclusão dos empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho do capítulo da CLT que trata da duração do trabalho é, precisamente, a impossibilidade do controle e da fiscalização do trabalho pelo empregador (MARTINEZ, 2018, p. 451).
Assim, a submissão do trabalhador ao regime de mensuração da jornada de trabalho pressupõe fiscalização e controle dessa jornada por parte do empregado. Se o trabalho do empregado não é controlado pelo empregador, não há que se falar em medida da jornada de trabalho, inclusive para fins de pagamento de suposta jornada excedente do limite legal (RESENDE, 2016, p. 478).
Importante, nesse contexto, a lição da saudosa Alice Monteiro de Barros (2016, p. 445), que ensinava que a exceção prevista para a exclusão do controle de jornada no inciso I do art. 62, deve se verificar não em razão da função ou cargo, mas da fiscalização e controle ou não das atividades desenvolvidas pelo trabalhador. Ademais, a referida autora, também destacava que o art. 62, I da CLT era meramente exemplificativo, o que nos permite interpretar que os caseiros estão inclusos no inciso I do supracitado dispositivo, quando o seu trabalho for executado sem controle e fiscalização do empregador.
Alguns tribunais trabalhistas brasileiros, enfrentando pedidos de horas extras de trabalhadores domésticos nesse quadro de trabalho sem controle e fiscalização de jornada pelo empregador deram significativas decisões:
HORAS EXTRAS E REPOUSO SEMANAL REMUNERADO. EMPREGADO DOMÉSTICO RESIDENTE NO PRÓPRIO LOCAL DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE CONTROLE E FISCALIZAÇÃO DA JORNADA. ÔNUS DA PROVA DO AUTOR, DO QUAL NÃO SE DESINCUMBIU. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 818 DA CLT, C/C O 373, I, DO CPC/2015. IMPROCEDÊNCIA. No caso, trata-se de empregado doméstico (caseiro e serviços gerais); que reside com a sua família no próprio local de trabalho (reclamante, esposa, três filhos, um genro e um neto); em casa fornecida e mantida pelo reclamado; sendo ausente o efetivo controle e fiscalização da jornada de trabalho (nem escrito nem eletrônico); e sem qualquer outra prova nos autos contundente e robusta do alegado labor extraordinário. De fato, constata-se que o depoimento da única testemunha do reclamante foi frágil, contraditório e inconsistente. Sendo assim, considerando que não restou comprovado o serviço extraordinário, como também o autor não demonstrou que não usufruía do repouso semanal, não há que se falar em pagamento de horas extras e RSR. Por outro lado, restou comprovado nos autos que o reclamante fazia diversas tarefas domésticas em sua própria casa e que também trabalhava na roça nos arredores de sua moradia em proveito próprio e de sua família. Sendo assim, na hipótese em que o reclamante reside no próprio local da prestação do serviço, é seu o ônus de provar não apenas o labor extraordinário, como também que sua jornada seria efetivamente controlada e fiscalizada, o que não ocorreu nos presentes autos. É que, nesta hipótese, existe a presunção de que o trabalhador poderia dispor do seu tempo para cuidar tanto de suas tarefas profissionais quanto de seus interesses pessoais, o que de fato ocorreu neste caso. Destarte, caberia ao reclamante o ônus de comprovar o trabalho extraordinário e nos dias de folga, por se configurar fato constitutivo do seu direito, conforme prescreve o art. 818, da CLT, c/c o art. 373, I, do CPC/2015, ônus do qual não se desincumbiu. Sentença mantida. Processo 00001581-11.2017.5.22.0004, Rel. Francisco Meton Marques De Lima, Tribunal Regional do Trabalho da 22a Região, 1a Turma, julgado em 03/09/2018.
HORAS EXTRAS. AUSÊNCIA DE CONTROLE E FISCALIZAÇÃO. EMPREGADO RESIDENTE NO PRÓPRIO LOCAL DE TRABALHO. Na hipótese em que o reclamante reside no local da prestação do serviço, é seu o ônus de provar não só o labor extraordinário, como também que sua jornada é efetivamente fiscalizada e que há controle sobre os serviços que presta, tendo em vista a presunção de que pode dispor do seu tempo para cuidar tanto de suas tarefas profissionais, quanto de seus interesses pessoais. (TRT18, RO - 0011582-76.2014.5.18.0261, Rel. SILENE APARECIDA COELHO RIBEIRO, TRIBUNAL PLENO, 19/08/2015).
TRABALHADOR RURAL. VAQUEIRO. HORAS EXTRAS. FERIADOS. AUSÊNCIA DE CONTROLE DA JORNADA DE TRABALHO. A constatação de que o autor, laborando como vaqueiro, residia na fazenda junto com sua família, bem como era ele o único encarregado pelos serviços ali prestados e que não estava submetido a supervisão e controle de sua jornada de trabalho, torna incabível a condenação do empregador ao pagamento de horas extras, domingos e feriados porventura laborados. (TRT18, RO - 0000188-73.2012.5.18.0251, Rel. ALDON DO VALE ALVES TAGLIALEGNA, 1ª TURMA, 05/12/2012).
RECURSO ORDINÁRIO. EMPREGADO RESIDENTE NO LOCAL DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE PROVA DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO DE VIGIA NOTURNO E DO CUMPRIMENTO DE HORAS EXTRAS. À falta de prova cabal do exercício da função de vigia noturno ou mesmo da alegada inidoneidade dos controles de ponto trazidos à colação, tem-se por correto o entendimento a quo, no sentido de que o autor não exercia a função pretendida, bem como que não cumpria a jornada descrita na inicial. (Processo RO 13141520105010054 - RJ. Órgão Julgador: Oitava Turma; Publicação: 2012-03-07. Relator: Alberto Fortes Gil).
Antônio Umberto de Souza Junior (2015, p. 160) sugere, inclusive, a aplicação das exceções do art. 62 a outros trabalhadores domésticos. Vejamos:
(i) trabalhadores externos não sujeitos a controle (pense-se no motorista com grande liberdade para gestão do tempo de suas atividades, embora voltadas ao atendimento das necessidades da pessoa ou família empregadora); ou (ii) gerentes com confiança especialíssima e com salário no mínimo 40% superior ao salário dos demais empregados da residência (de que podem ser exemplos, no campo doméstico, as governantas, verdadeiras prepostas patronais com incumbências administrativas e financeiras, normalmente representando ali a família empregadora).
Ora, é princípio de interpretação jurídica que às mesmas situações se apliquem as mesmas regras, vez que ao interpretar um diploma legal deve-se cotejar o preceito normativo com outros do mesmo diploma legal referentes ao objeto idêntico ou comum, visto que, examinando as prescrições normativas, conjuntamente, é possível verificar o sentido de cada uma delas e a aplicabilidade de soluções similares às questões normatizadas (SOARES, 2017, p. 43).
É preciosa a lição de Caio Mário da Silva Pereira (2018, p. 155):
Pesquisa-se a razão da norma e verifica-se o que se pretendeu obter com a sua votação. Leva o intérprete em conta não existir o dispositivo isolado, porém, articulado com outros dispositivos, e que a vontade legislativa não decorre do isolamento das emissões estanques, mas da conjugação dos princípios que se completam e se esclarecem: “incivile est nisi tota lege perspecta una aliqua particula eius proposita, iudicare vel respondere”.
Veja-se, destarte, que a mesma ratio para a exclusão dos trabalhadores urbanos do regime do capítulo da jornada de trabalho, porque exercem trabalho que não permite a fiscalização e o controle do empregador, está presente no caso dos domésticos caseiros, quando o trabalho deles é executado longe dos “olhares” do empregador, porque executado em propriedade utilizada pelo patrão e pela família apenas em dias específicos, finais de semana e feriados.
Por fim, diversamente, se o trabalho do empregado doméstico caseiro for exercido sob controle e fiscalização do empregador, quando o empregador reside no local da prestação de serviços ou exerce o controle dessa atividade por meios eletrônicos, como câmeras, por exemplo, ele estará vinculado ao regime de jornada de trabalho da legislação de regência.
5. CONCLUSÕES
Conforme exposto no presente artigo, foi destacado o cenário de discriminação, injustiça e exploração, que os trabalhadores domésticos tiveram que enfrentar como base de sua mão de obra no qual foi pautado em um sistema de desvalorização cujo propósito se justificava pela necessidade de prover seu próprio sustento.
Desta forma, reforçamos a atuação do Estado, enquanto função legiferante, donde permaneceu inerte por longas décadas, sem qualquer esforço para reconhecer que os trabalhadores domésticos necessitavam de amparo legal, e sobretudo, constitucional.
Adiante, o texto mencionou a evolução legislativa no que tange aos domésticos que pouco a pouco foi conquistando arduamente seu espaço e, os aspectos mínimos de sua relação de trabalho passou a ser regulado, tendo como exemplo fundamental, a fixação de uma jornada de trabalho para a respectiva categoria como consequência, portanto, de um status civilizatório.
Noutro ponto, o presente trabalho confrontou acerca dos empregados domésticos que exercem atividade incompatível com o horário de trabalho e, por conseguinte, devem ser excluidos das regras que tratam da jornada de trabalho tendo em vista que um dos postulados normativos da ciência jurídica é a integridade e coerência da legislação, desta forma, situações semelhantes devem receber tratamento análogos sob pena de comprometer a segurança jurídica.
Por fim, defendemos que o trabalhador doméstico que exerce atividade de caseiro deve ter sua relação de trabalho excluída das regras de tratam da jornada de trabalho porque um dos princípios norteadores da relação de trabalho é a princípio da primazia da realidade. Nesse sentido, na maioria dos casos, não é possível controlar e fiscalizar a jornada de trabalho deste trabalhador. Assim, a realidade fática demonstra um ônus para o seu empregador no qual não lhe é possível desincumbir: comprovar a jornada efetiva de seu doméstico caseiro, ocasião que ele deve estar incluso no art. 62, I da CLT.
REFERÊNCIAS
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