A DEFESA DO NOME EMPRESARIAL E DOS CONSUMIDORES DO SEGURADO, O SEGURO DE TRANSPORTES E A BUSCA DO RESSARCIMENTO EM REGRESSO: UMA REFLEXÃO IMPORTANTE

03/09/2020 às 08:14
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Neste artigo defendo a importância da preservação do nome empresarial de um segurado em relação ao seguro de transporte e a possibilidade de recusar a parte da carga aparentemente boa em sinistro de transporte e os desdobramentos no ressarcimento.

A DEFESA DO NOME EMPRESARIAL E DOS CONSUMIDORES DO SEGURADO, O SEGURO DE TRANSPORTES E A BUSCA DO RESSARCIMENTO EM REGRESSO: UMA REFLEXÃO IMPORTANTE

 

 

“Uma sociedade constituída mediante pacto social só é sociedade no sentido que esse vocábulo tem para o direito civil, isto é, uma associação (...) Sem pretender resolver agora com um gesto dogmático, de passagem e voando, as questões mais intrincadas da filosofia, do direito e da sociologia, eu me atrevo a insinuar que estará seguro quem exigir, quando alguém falar de um direito jurídico, que lhe indique a sociedade portadora desse direito anterior a ele”.

José Ortega y Gasset

 

 

Sempre entendi e expus que uma empresa tem direito inalienável a defender os interesses dos consumidores de seus produtos e também o seu próprio nome.

Aliás, defender os interesses dos consumidores, mais do que direito, é dever da empresa. Faz parte das boas práticas negociais.

E a defesa dos seus consumidores, ato empresarial saudável, é a melhor forma de proteger a dignidade do seu nome.

Longe das discussões teóricas sobre o nome empresarial ser direito de propriedade ou direito de personalidade (ou de qualquer outra categoria), entenda-se, aqui, o direito de uma empresa produtora de bens em não ver seu nome comprometido pelo desgosto dos consumidores em razão de produto defeituoso.

A um só tempo a empresa protege seu nome, em muitos casos mais valioso do que a produção propriamente dita, e demonstra profundo respeito ao público consumidor.

 

 

Pois bem, e o que isso tem a ver com o mercado de seguros ou, mais especificamente, com o seguro de transportes?

Ora, é direito da empresa segurada, por exemplo, recusar toda uma remessa de bens que foi vítima de sinistro de transporte, ainda que parte não tenha sido efetivamente danada.

Claro que essa recusa não é direito absoluto; depende de predicados e circunstâncias.

Para que haja a possibilidade de recusa total ancorada do direito de preservação do nome empresarial e dos interesses dos segurados é muito importante observar aquilo que os italianos chamam de fattispecie.

Mais do que a tipificação legal de alguma situação, o conceito de fattispecie compreende, para a boa resposta jurídica, a análise detalhada e cuidadosa de todos os fatos do caso concreto.

Haverá direito de recusa total se, observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, parte da carga não diretamente afetada pelo sinistro não comprometer, de algum modo, os interesses dos consumidores.

Evidentemente que se fala do aproveitamento para os fins originais, o que não se confunde com o conceito de salvados.

Para isso, há de se observar, além do estudo técnico dos danos, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Quer dizer que é necessário que o pleito do segurado, dono da carga vítima de sinistro de transporte, seja razoável e proporcional ao contexto geral dos fatos.

Confirmando-se todas as circunstâncias autorizadoras, o segurado poderá recusar a remessa toda e fazer jus à indenização integral.

Insisto: isso não é verdade absoluta, algo líquido e certo, mas uma ideia que se submete ao crivo das circunstâncias.

 

 

 

Todo esse cuidado não deriva de excesso de escrúpulos da seguradora, mas de zelosa atenção aos direitos e interesses do colégio de segurados.

Nunca é demais lembrar que uma seguradora não atua apenas em seu nome, mas no de todos os segurados, por força do mútuo que encarna.

Daí o cuidado em respeitar os legítimos interesses do segurado sem significar, com isso, tergiversação alguma em relação ao contrato de seguro e aos demais segurados.

E, claro, uma vez indenizado o segurado, o segurador sub-rogado exercitará o ressarcimento em regresso contra o transportador também de modo integral.

Isso porque a causa do prejuízo total foi o sinistro de transporte.

Houvesse o transportador cumprido fielmente sua obrigação, observado o dever geral de cautela e a cláusula de incolumidade, a discussão sobre a amplitude da indenização de seguro não teria espaço.

Sempre defendi isso, e ainda defendo. Mas agora com ressalvas.

Antes era quase uma confissão de fé, um credo jurídico, agora é um postulado que reclama nova atenção.

Continuo a acreditar nessa forma de encarar o Direito, mas em nome da dialética e mesmo da honestidade intelectual, sou forçado a dizer que a questão do ressarcimento em regresso não é tão segura quanto defendo ou gostaria que realmente fosse.

Recente derrota, como advogado, em litígio de Direito Marítimo me fez repensar o assunto.

A seguradora em boa-fé pagou indenização integral ao segurado, dono da carga.

O segurado recusou a carga toda, apesar de só parte ter sido efetivamente danada pelo incêndio a bordo do navio. Foi razoável na recusa, por se tratar de lote de bens de informática, muito sensíveis e de altíssima tecnologia.

 

 

A parte aparentemente não afetada ficou exposta a um calor quase solar, o que é de se presumir que comprometeria sua eficácia.

A fim de preservar seus consumidores e seu nome empresarial, o segurado, em boa fé, quis a destruição total do lote, e a seguradora, também em boa fé, pagou a indenização pelo valor total e não pela parte concretamente avariada.

Toda essa boa fé, imersa na função social do contrato de seguro, deveria repercutir na busca do ressarcimento em regresso, certo?

Infelizmente, não foi o que aconteceu.

Em longa batalha, com julgamento estendido, rios de tinta, muitos memoriais, duas sustentações orais a cada advogado das partes, o Tribunal entendeu que o transportador não era obrigado a ressarcir a seguradora pela parte não danada da carga.

Basicamente, com outras palavras, o Tribunal disse: se a Seguradora pagou pela carga não direta e comprovadamente afetada pelo sinistro, isso foi opção sua, exclusivamente. O transportador nada teria a ver com isso, e não poderia ser obrigado a ressarcir segundo critérios subjetivos. Até mesmo o famigerado pagamento ex gratia foi cogitado.

Por mais que tenha sido explicado ao grupo de julgadores a essência do negócio de seguro e a justeza do pagamento, da razoabilidade e da proporcionalidade, da boa-fé e de outras coisas justificadoras da postura da seguradora (que entendo correta) e, consequentemente, do ressarcimento.

Divirjo do Tribunal não por ser advogado da Seguradora vencida na lide, mas porque acredito que a causa do pagamento da indenização foi o sinistro, o dano contratual, o inadimplemento do transportador, sendo menos relevante o critério de indenização adotado do que a indenização em si.

Divirjo ainda, sempre com respeito, porque a razoabilidade esteve presente, e o pagamento se deu por razões contratuais, legais e até morais: o absoluto respeito ao mercado consumidor dos produtos do segurado.

 

Isso deveria bastar para a determinação do ressarcimento simétrico, até porque a causa de tudo não foi a vontade do segurado, mas o dano que o transportador causou.

Enfim, esse mesmo ato-fato, agasalhado em outros pleitos de ressarcimento em regresso de seguradoras sub-rogadas contra transportadores de carga faltosos, infelizmente não foi reconhecido no caso comentado.

A decisão é um Precedente? Não, ao menos segundo a cultura dos Precedentes instaurada pelo novo Código de Processo Civil. Trata-se de uma decisão importante, negativa para o mercado segurador, mas não um Precedente, ao menos com a letra “P” maiúscula.

É um alerta, porém.

Mesmo os mais entusiasmados com o conceito de preservação do nome empresarial no seio do Direito do Seguro devem reconsiderar ideias, argumentos e fundamentos, ao menos quando o Direito do Seguro se casar com o de Transportes.

O que quero dizer com isso? Que o fato de a seguradora respeitar, quando razoável, proporcional e devido, o desejo do segurado em receber indenização total, mesmo quando só parte da carga foi efetivamente atingida por dano de transporte, não significa necessariamente que conseguirá o ressarcimento integral.

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Há risco de o Poder Judiciário entender que ao transportador faltoso compete pagar apenas o valor dos bens efetivamente atingidos de modo incontroverso, em um sinistro.

O Direito é dialético por excelência, e as duas teses – se é que assim se pode falar: teses – são juridicamente defensáveis, e com bons argumentos, fundamentos legais e jurídicos de escopo.

Continuo a entender que tanto o pagamento da indenização de seguro como o ressarcimento da parte da carga não afetada diretamente são corretos, quando verdadeiramente devido o primeiro, porém é meu dever expor que o entendimento contrário também se vem mostrando respeitável, e encontra eco no cenário jurisprudencial.

Por isso desejo destacar o valor da vistoria durante a regulação do sinistro. Vistoria técnica, exercida por profissionais qualificados, atenciosos, detalhistas, preferencialmente bilateral e antecedida por convite formal ao transportador (com a prova documental do convite formal, será possível argumentar pela renúncia tácita e assunção indireta de resultado pelo transportador, caso ele não compareça).

Procedimentos acerca da carta-protesto (art. 754, CC) podem ser abrandados, encarados de forma mais elástica, e redesenhados; mas os de comprovação e quantificação dos danos e prejuízos, não. A vistoria é sempre importante, não bastando confiar no conceito legal de presunção legal de responsabilidade do transportador por ser devedor de obrigação de resultado e manejador de fonte de risco.

A regulação eficaz do sinistro de transporte é aquela que prima pela vistoria e ampla coleta de documentos e instrumentos. E quando o segurado cogitar a recusa e destruição da parte da carga aparentemente não afetada pelo sinistro, com recebimento da indenização de seguro pelo valor total, é importante demonstrar, de algum modo técnico, as razões desse segurado.

Um pequeno laudo de especialista declarando a legitimidade da preocupação do segurado com o eventual produto defeituoso é recomendável, e constituirá no futuro pleito judicial de ressarcimento um interessante meio de prova. Não perderá a natureza subjetiva, mas ao menos permitirá maior robustez na tentativa de convencimento dos magistrados.

Evidentemente que existe a questão operacional, mais bem traduzida pelo binômio custo-benefício, mas nos casos mais graves, envolvendo valores muito expressivos, o investimento na produção de provas vale muito a pena.

A própria Ação de Produção de Provas poderá ser ferramenta eficaz. E não significará, desde que devidamente explicado o propósito ao segurado, elemento de atrito, mas de garantia, de segurança.

 

Garantia e segurança para o segurado, para a seguradora e para todo o colégio de segurados, pois se por meio dela for mostrado que é justo o pleito do segurado de recebimento de indenização sobre o valor total da carga, também justo, na mesma medida, será o pleito de ressarcimento em regresso contra o transportador, anelado pela estampa perito-judicial, inegavelmente a mais consistente que existe.

Enfim, o exercício da boa arte da regulação de sinistro é o caminho ideal para a plena saúde do ressarcimento em regresso, não permitindo ao transportador, causador de dano, se ver livre do dever de ressarcimento em regresso por meio de defesas distanciadas da realidade fenomênica, mas amparadas no formalismo exagerado, ainda que inteligentemente trabalhado.

Garantir o êxito do ressarcimento em regresso no seguro de transporte não interessa apenas ao segurador, mas também ao segurado, ao colégio de segurados e, reflexamente, ao seio social. E a abordagem técnica, abrangente e ao mesmo tempo detalhada é a melhor forma de se obter essa garantia, seja pela via extrajudicial, seja pelas mãos fortes do Judiciário.

 

Paulo Henrique Cremoneze, é sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB-SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

 

 

 

 

 

Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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