1. Exposição fático-jurídica[1]
A pena foi vista originalmente como uma forma de se retribuir o mal que uma dada pessoa havia infligido à outra, ou mesmo à sociedade ou grupo (tribo, clã) do qual fazia parte.
Mais tarde, a esta finalidade da pena, jungiu-se a de que, a pena também continha um caráter de prevenção. Prevenção esta, vista em duas dimensões: a primeira, para que a pessoa que delinquiu não mais voltasse a reincidir na prática criminosa (prevenção especial); a segunda, no sentido de que a punição do transgressor da lei servisse como exemplo para toda a sociedade de que, atitudes daquele jaez, não seriam admitidas (prevenção geral).
Mais tarde, os estudiosos passaram a ver na pena mais do que uma função apenas retributivo-preventiva, mas também, com um conteúdo reeducativo e ressocializador. Portanto, uma função de conteúdo terapêutico para aquelas pessoas ainda socialmente inadequadas, de comportamentos antissociais.
Ocorre que, referida função terapêutica não demonstrou os resultados que estavam sendo esperados pelos estudiosos. E um destes evidentes sinais de falência da função terapêutica da pena foi que, em muitos lugares, a criminalidade não apenas não sofria a esperada redução, mas, continuava a aumentar consideravelmente.
Quanto à função terapêutica da pena, já no século passado, o grande jurista Francesco Carrara, advertia de que punir e curar são duas finalidades diametralmente opostas. Assim faz constar Élio Morselli, catedrático de Direito Penal da Universidade de Perugia, na Itália, em artigo intitulado “Função da pena à luz da moderna criminologia”, Publicada na Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal nº 03 - AGO-SET/2000, pág. 5, que assim faz constar:
Deixando de lado o fracasso dos esforços voltados para a prevenção especial, a doutrina, de qualquer modo, tem se certificado de que a ideologia do tratamento não é capaz de dar nenhuma resposta válida e coerente à interrogação "por que se pune?". Como advertiu já no século passado, o nosso grande FRANCESCO CARRARA, punir e curar, punir e reeducar, punir e corrigir, são coisas totalmente incompatíveis e contraditórias entre si. Punir quer dizer, de fato, acarretar um mal, uma aflição, um malum passionis, enquanto curar, reeducar, corrigir quer dizer exatamente o contrário, isto é, acarretar um bem enorme.
Diante disso, percebe-se que, os opostos não podem significar a mesma coisa. Isso não visão de Carrara.
Isso trouxe, evidentemente, uma grande frustração aos estudiosos, havendo, inclusive, quem justificasse o fracasso da função terapêutica, na inadequada utilização dos recursos terapêuticos aplicáveis ou na insuficiência dos mesmos.
Mais tarde, houve os que tentaram reavivar a função retributiva da pena, dizendo que, a pena é uma reação natural da sociedade, uma necessidade que esta sociedade tem e senti, diante do cometimento de um determinado crime, de ver o infrator da norma ser punido. Portanto, estamos diante de uma visão de psicologia das massas, que reage diante de determinados acontecimentos.
Todavia, este reavivamento da função (meramente) retributiva da pena, não satisfez a muitos doutrinadores. Aliás, diga-se de passagem, que, estas pulsões emocionais contidas no subconsciente coletivo, é justamente algo contra o qual se deve lutar, uma vez que é expressão da irracionalidade do homem e que coloca em xeque a dignidade da pessoa humana.
Se a existência do Direito visa, justamente, o apaziguamento da barbárie humana e o estabelecimento de um mínimo de harmonia entre seus membros, chega-se à conclusão de que, dar vazão a estas necessidades emotivas de punição coletiva, coloca em risco este objetivo do Direito e, notadamente, do Direito penal.
Seria, evidentemente, um grande contrassenso, posto que, se criaria uma ciência para a consecução de um determinado objetivo e, posteriormente, se utilizaria referido instrumento para a defesa de situação inversa. Isso seria uma flagrante antinomia.
Acerca da temática do reavivamento da função retributiva da pena, que foi chamada por alguns de concepção “neo-retributiva”, assim o professor Élio Morselli (loc. cit.) faz constar, litteris:
Associando-se a uma série de grandes dogmáticos, como ERNST BELING, RICHARD SCHMIDT, HELLMUTH MAYER e outros, e inspirando-se sobretudo na psicologia dinâmica ou do profundo, muitos observaram, entre eles STRENG que a pena constitui uma reação da sociedade às suas profundas e inconscientes "necessidades emocionais". Em outros termos, diante de um delito, surge na sociedade uma profunda exigência de represália, voltada a desencadear sobre o réu as cargas agressivas suscitadas pela frustração derivada do alarme social ou coletivo.
Com essa teoria das necessidades emotivas de punição latentes no âmago da sociedade, a concepção retributiva encontraria, então, uma nova força, e pode, pois, ser chamada de "neo-retributiva". Não se trataria mais de uma exigência abstrata e mecânica de compensar o malum actionis com o malum passionis, como os grandes pensadores - de PLATÃO a TOMAZ DE AQUINO, de KANT a HEGEL - teriam configurado a instância retributiva. Tratar-se-ia, ao contrário, de um fenômeno com profundas raízes na natureza humana. Tal fenômeno - por mais que possa parecer irracional e pouco apreciável do ponto de vista ético -, tem uma profunda e necessária justificação na Natur der Sache, ou seja, na natureza das coisas.
Todavia, esta solução para o problema do fundamento da pena, voltado para um "revival", o revivamento da retribuição não satisfaz uma parte considerável da doutrina. O reconhecimento de tais necessidades emocionais de punição não constitui, para aqueles autores, motivo suficiente para que possam aceitá-lo, e, nem tampouco, legitimá-lo. Aliás, argumenta-se que a sociedade deveria se opor a tais exigências inconscientes, exatamente porque são irracionais e não respeitáveis da dignidade humana: o homem - afirma, por exemplo, EUSEBI - não pode ser instrumentalizado para a satisfação dessas suas baixas exigências. De qualquer maneira - insiste DOLCINI -, ainda que a consciência social aceitasse incondicionalmente tais exigências, nem por isso o legislador deveria fazer outro canto. Aliás, seria seu dever controlar e reprimir as mesmas o mais possível, em nome de superiores instâncias ético-jurídicas.
Nesta perspectiva, a retribuição da pena surgiria não de forma mecânica, mas, como uma necessidade, uma exigência que a sociedade faria diante do problema da criminalidade. Ou, como diz Élio Morselli: “Tratar-se-ia, ao contrário, de um fenômeno com profundas raízes na natureza humana”.
Assim, a função retributiva passava a se justificar. Mas, como dito, referida visão “neo-retributiva” não foi bem vista pelos pensadores, uma vez que a mesma tenta justificar uma situação que o Direito visa evitar, qual seja a eclosão desenfreada de sentimentos humanos poucos nobres, como é o caso da vingança.
Estes sentimentos mais nobres, como dissemos, são as “superiores instâncias ético-jurídicas” invocadas por Élio Morselli.
O homem, enquanto valor filosófico, ético e juridicamente considerado, não pode se transformar em objeto ou instrumento para a consecução de uma determinada finalidade, notadamente, porque o homem é um fim em si mesmo.
Como se percebe, um problema começou a surgir. Alguns paradoxos começaram a se tornar evidentes para alguns doutrinadores. Quem melhor esclarece este fato é Élio Morselli, que assim faz constar:
Então, é certo que a doutrina, como foi vista anteriormente, não pode se refugiar na solução especial-preventiva representada pela ideologia do tratamento. É também verdade, porém, que se de um lado esta rejeita a concepção retributiva, não pode, por outro, nem mesmo acolher a clássica concepção geral-preventiva no sentido da ameaça.
Neste ponto, uma cômoda solução foi recentemente apresentada por aqueles que criticaram a nova concepção retributiva, ou "neo-retributiva", em favor de uma, diferente, nova concepção de prevenção geral.
A pena não podia ser vista como uma forma de tratamento porque, em momento algum, sua imposição aos transgressores da lei mostrou-se apta a, pelo menos, diminuir os índices de criminalidade. Logo, a visão terapêutica da pena passou a não ser vista como uma realidade aceitável. Assim, perdeu terreno sua concepção especial-preventiva. Efetivamente a pena nada prevenia.
De outro lado, a visão retributiva representava um vazio, na medida em que era vista apenas como uma reação mecânica a um ato anteriormente praticado por uma determinada pessoa. Uma interpretação simplista da lei física de ação e reação, ou seja: para cada ação há uma reação, de mesma intensidade, porém, em sentido contrário. Este ato era a transgressão da norma penal. Houve transgressão, há a presença da pena. Mas, estas visões até aqui expostas, não resolvem a secular pergunta: POR QUE SE PUNE?
Se tivermos uma visão eminentemente mecanicista da pena, ou seja, apenas retributiva, quais garantias a sociedade tem de que o indivíduo penalizado não voltará a delinquir e, portanto, a reincidir no crime anteriormente cometido ou cometer um de outra espécie?
Simples: por essa visão não há qualquer garantia. Ao contrário, ela possibilita e incentiva a reincidência, vez que mostra ao apenado que, em momento algum, esta sociedade que o estigmatiza está preocupada com seu bem-estar, bem como com o bem-estar de sua família.
Sem esta garantia, a desestabilidade social é uma constante. Não basta apenas retirar (estigmatizar) a pessoa que delinque do seio social, é necessário dar à mesma, mais do que apenas oportunidades de reintegração social, mas, fundamentalmente, instrumentos de reflexão, cujo escopo é lhe proporcionar o aprendizado de um processo cognoscitivo, que o leve a pensar a realidade e o entorno social no qual está inserido. Eis a função ressocializadora. Uma função que, pelo menos para a realidade carcerária do Brasil e de países do terceiro mundo (subdesenvolvidos), tem se mostrado bastante distante e utópica.
A circunvizinhança que está ao redor do que delinque, deve, quando do momento de sua volta ao seio da mesma, recebê-lo de braços abertos, na certeza de que o mesmo teve condições de pensar e compreender as consequências de seus atos pretéritos e não mais irá reprisá-los. Esse o verdadeiro objetivo da pena.
A pena não pode, seja qual for a discussão que se tenha em relação à mesma, perder seu conteúdo humano. É essa visão que dá sustentáculo ao Princípio da Humanização das Penas que, no Brasil, possui ancoragem constitucional, ex vi do inciso III, do Art. 1º da Constituição Federal de 1988, que consagra, como um dos fundamentos da República, o princípio da dignidade humana.
Mais tarde, como ressaltado acima, alguns doutrinadores pensaram no reavivamento da visão retributiva da pena, mas, agora, sem o viés mecanicista.
Viam na pena uma função retributiva de cunho psicológico, ou seja, a retribuição era uma exigência da sociedade que, frente à transgressão da norma, exigia, dentro de sua psique, a imediata reação, ou seja, a imposição de uma determinada penalidade.
Essa foi a visão “além da retribuição”, além da prevenção geral dada inicialmente à pena. Este aspecto, na visão de seus defensores, era positiva, ou integradora, pois, gerava na sociedade um sentimento de justiça. E este sentimento, na visão dos defensores da política “neo-retributiva” é necessária.
Assim faz constar o professor Élio Morselli:
Assim, na Alemanha, ROXIN, HASSEMER, JAKOBS e outros, e, na Itália, MARIO ROMANO, PAGLIARO e outros, distinguiram a clássica prevenção geral ameaçadora ou negativa, de um diferente tipo de prevenção geral, agora chamada positiva ou integradora.
Segundo tal perspectiva, a pena exerce função de prevenção geral não só quando opera negativamente, através de ameaças coercitivas, mas também quando - pelo simples fato de ser infligida, após a primeira fase da cominação - reforça ou consolida o sentimento coletivo de confiança na autoridade do Estado e na eficiência da ordem jurídica.
A pena, assim, faz com que a sociedade não perca sua confiança no Estado, dando, ademais, em nossa concepção, diante desta visão, legitimidade ao seu poder de agir, perseguindo (ius persequendi) e punindo (ius puniendi) o infrator da norma.
Como testemunhas desta reação do ordenamento jurídico, frente ao cometimento de um ato tipificado como criminoso, reforça-se, psicologicamente, um sentimento de fidelidade das pessoas à lei. É como se ficasse carimbado na psique da coletividade o preço da transgressão da lei e a certeza de que, não há comportamento impune, em temática penal.
Diante disso, foi “"descoberto" que a pena, além dos efeitos negativos-defensivos da aflição e da ameaça, tem também outros efeitos do tipo positivo-construtivo. Isto enquanto exerce a função de sustentar e considerar a ordem infligida pelo delito e, mais precisamente, de sustentar e consolidar a consciência social, mediante a satisfação ou "reintegração" do sentimento comum de justiça. Em outras palavras, a pena reforça nos cidadãos uma atitude durável de fidelidade à lei”. (Morselli, lócus citatum).
Ocorre que, no entendimento de Élio Morselli, estes efeitos já estão presentes na visão retributiva clássica. Na visão deste jurista, a função preventiva da pena já está inserta na ideia de retribuição. Estas as palavras de Élio Morselli:
Mas o erro dos autores da chamada prevenção geral integradora ou positiva, consiste em atribuir tudo isto à função geral preventiva da pena, quando, na nossa maneira de ver, trata-se simplesmente dos efeitos típicos da função retributiva, exatamente conforme a ótica da concepção clássica, iluminada pela visão psico-dinâmica neo-retributiva. Em outras palavras, o erro daqueles que criticam a concepção retributiva ou neo-retributiva da pena, consiste em atribuir a ela uma dimensão distorcida e extremamente restritiva.
É precisamente o conceito de retribuição que apresenta, de facto, sempre, uma dupla dimensão: negativa e positiva. Retribuição não é sinônimo de sádico desabafo de instintos agressivos, sic et simpliciter, e nem é necessariamente sinônimo de retorsão, ou vingança a fim de si mesmo. Não é nem mesmo uma resposta à exigência meramente abstrata e mecânica para compensar ou nivelar um malum actionis com um malum passionis. Essa interpretação negativa do clássico pensamento é, repetimos, profundamente distorcida e restritiva, e ofende a idéia inspiradora que residia na mente e no coração daqueles grandes escritores "retribucionistas", tais como PLATÃO, DANTE ALIGHIERI, TOMAZ DE AQUINO, LEIBNIZ, KANT, VICO, HEGEL, etc., para nos limitarmos aos pensadores não juristas. É equivocado pensar-se que todas estas inteligências conceberam a pena simplesmente como pubblica vindicta, e, portanto, limitaram-se a entendê-la como mero desabafo das exigências emotivas intra-psíquicas de punição por parte da sociedade. Se olharmos bem as suas obras, veremos que foram justamente eles que conceberam a pena em função da realização, e, portanto, da consolidação e do reforço dos sentimentos profundos de justiça, e, por conseqüência, dos sentimentos de fidelidade à lei e à ordem constituída.
Em outros termos, não é de "prevenção geral integradora" que se deve propriamente falar, mas sim, de retribuição integradora, ou melhor, de restituição do significado positivo e construtivo que sempre foi próprio da clássica idéia retributiva. A prevenção geral não é outra coisa que prevenção de futuros delitos; mas esta prevenção não é senão um "efeito induzido" da retribuição: efeito negativo de aflição e efeito positivo sobre o sentimento coletivo de justiça.
Diante desta visão, não podemos deixar de ver na pena, de fato, uma retribuição pelo mal causado. Mas, causado a quem? Primeiramente, à vítima direta do crime, posto ser esta quem sofre diretamente um dano em seu bem jurídico, penalmente tutelado, e, em segundo lugar, à sociedade, posto que, se entendermos a sociedade como um conjunto coeso e harmônico de pessoas e, se partirmos do pressuposto de que, somente se cada um dos membros estiver em paz consigo mesmo e com o todo, o conjunto estará em equilíbrio, então poderemos perceber que, de fato, uma atitude criminosa afeta a todos.
Ademais, na ausência da pena, nada impede que, no amanhã, outro membro venha a ser vítima do ato criminoso, ou protagonista do mesmo.
O pensador alemão Hegel, citado por Élio Morselli, assim afirmava: “HEGEL diz que a pena é "a negação da negação" representada pelo delito, ou, mais precisamente que die Strafe ist das Aufheben des Verbrechens, das sonst gelten würde, und ist die Wiederstellung des Rechts, isto é, "a pena é a remoção do delito e, de tal modo, a reconstituição do direito"”. Hegel defendia a chamada retribuição jurídica.
Pela visão hegeliana, ao ser imposta a pena ao transgressor da lei, duas situações, concomitantes, se fazem presentes, quais sejam: cessa a prática do crime e reconstrói-se o Direito. As regras são uma garantia para todos os membros de uma determinada sociedade. Se há regras é possível conhecer-se o padrão comportamental, geralmente aceito e seguido, por aquelas pessoas.
Daí a necessidade de se respeitar o princípio da legalidade ou da reserva legal e o princípio da anterioridade da lei penal. O que quer dizer que uma pessoa apenas pode ser condenada por um determinado crime se, quando do cometimento do mesmo já houver, dentro do ordenamento jurídico de seu país, lei que tipifique a conduta praticada. Portanto, antes do cometimento do crime (princípio da anterioridade), deve haver lei que o preveja (princípio da legalidade ou da reserva legal).
Diante desta visão, é preciso ainda buscar, na moderna psicologia do dinâmico ou do profundo, algo mais que possa dar sustentação à função retributiva da pena.
Na visão de Élio Morselli, a retribuição da pena àquele que comete um determinado ato criminoso, não tem a função de satisfazer os instintos da massa, ou da coletividade (pubblica vindicta) que, diante do fato, busca a vingança, mas sim, tem o objetivo de fazer cessar a comoção, quer individual (de cada membro), quer coletiva, que a notícia do crime cria no inconsciente de todos os membros da coletividade.
Esta restituição do equilíbrio intra-psíquico de todos os membros da coletividade é de fundamental importância para que as pessoas tenham condições de continuar a viver suas vidas, na certeza de que, o império da lei restou inabalado, mesmo diante de um fato definido em lei como criminoso e, portanto, ofensivo dos bens jurídicos que a sociedade reputa tão preciosos.
Estas as lições do professor italiano Élio Morselli (loc. cit.), tem-se:
Parece-nos que, revendo-a à luz da atual ótica científica, esta afirmação pode ser assim ulteriormente traduzida, em termos modernos de psicologia dinâmica ou do profundo: "a pena serve para remover do campo da consciência o turbamento, isto é, o alarme social provocado pelo fato delituoso, com a conseqüente reconstituição do equilíbrio intra-psíquico, quer individual, quer social, ou seja, da ordem coletiva, e, portanto, da ordem jurídica constituída".
É ao próprio HEGEL que devemos a máxima expressão filosófica da concepção retributiva (retribuição jurídica). Esta foi uma intuição genial, que nos oferece, agora, a chave para a solução "moderna" do problema do fundamento da pena.
O mecanismo pelo qual a sociedade inflige um sofrimento, ou seja, um malum passionis a quem tenha cometido um malum actionis, não tem a finalidade voltada para si mesmo; nem tampouco deseja satisfazer necessidades emocionais de punição, entendidas no baixo sentido de necessidades sociais de vingança, mas exerce uma função muito mais profunda e construtiva no âmago da psique humana.
Didaticamente, ao explicar referido fenômeno, o professor Élio Morselli dá o seguinte exemplo:
Na Itália, e acredito que também em muitos outros países, existe até hoje a tradição - embora vá perdendo a sua força -, de jogar para fora da janela, à meia noite da festa de São Silvestre, os objetos velhos e inúteis. Que função intra-psíquica possui esta tradição? Simplesmente aquela de remover de modo definitivo do campo da consciência, e com isso da própria memória, todos os episódios "ruins" e suas conseqüências negativas que perturbaram o equilíbrio intra-psíquico durante o decorrer do ano velho que está por terminar. Diz-se de fato: "Ano novo, vida nova".
Pois bem, a pena age no íntimo através de um mecanismo de regeneração e de reequilíbrio, que é substancialmente o mesmo acima descrito. O delito, com o seu conseqüente alarme social, perturba o equilíbrio ínsito na consciência coletiva. Eis, então, que intervém a pena para reconstituir este equilíbrio neutralizando os efeitos do delito, e, com isso, o perigo do desequilíbrio e da conseqüente ruptura da ordem interior. Tal neutralização intra-psíquica não é senão um dos fundamentais mecanismos de defesa do Eu, voltado às finalidades sadias e vitais, a tal ponto que, sem ele, a vida do homem seria impossível: exatamente o mecanismo que a psicologia dinâmica costuma chamar de remoção (em alemão, Verdrängung). Punindo o delinqüente, o delito é, por assim dizer, eliminado da consciência, e, por conseguinte, da lembrança coletiva.
Como se percebe, a imposição da pena não faz plasmar a vingança coletiva (pubblica vindicta), mas, remove do consciente coletivo todo medo e insegurança que o crime causou, remove todas as marcas nefastas que a produção do fenômeno criminoso causa no consciente coletivo.
Diante disso, tem-se que:
A pena é integradora, ou melhor, reintegradora dos valores fundamentais da vida coletiva, somente quando for considerada em função retributiva, ou seja, como correspondente do mal infligido pelo réu à sociedade. Se perder de vista este necessário significado de decorrência de um malum actionis, considerando, assim, a pena unicamente como um instrumento de política criminal, então, não mais será possível conseguir a já descrita neutralização do alarme social, nem, por conseguinte, a reconstituição do equilíbrio intra-psíquico individual e coletivo. Conseqüentemente, nem o sentimento de justiça e nem a consciência jurídica-social, encontrarão a necessária satisfação e consolidação”. (Morselli, locus citatum)
Concluindo seu posicionamento, assim faz constar o professor Élio Morselli: “Deveria ficar claro para todos que, negando-se a natureza retributiva da pena, nega-se que a culpabilidade reside na base da responsabilidade penal”.
Esta, diga-se de passagem, é a visão do professor italiano Élio Morselli que, como se verá, não acredita muito no viés político-criminal da pena, como defende o professor alemão Klaus Roxin. Estas são suas palavras, litteris:
Existe, hoje, uma tendência cada vez mais acentuada na doutrina alemã e italiana, de abandonar os tradicionais esquemas dogmáticos, baseados no princípio fundamental de culpabilidade, ou seja, de responsabilidade ético-jurídica. Seja a teoria do crime, seja a da pena, são hoje reconstruídas por autores como ROXIN e JAKOBS, segundo significados pragmáticos, unicamente orientados e preocupados em soluções de política criminal. A justificação da pena no quadro da prevenção geral integradora - que aqui examinamos e criticamos - é, exatamente, um dos tantos frutos - o mais evidente, mas também o mais capcioso - desta nova concepção da dogmática criminal. Através da demonstração de sua inconsistência e de sua esterilidade justamente no plano dos efeitos práticos, acreditamos ter oferecido uma contribuição central na defesa da perspectiva dogmática tradicional.
Se, além disso, atribuir ao conceito de culpabilidade um significado diferente daquele tradicional, que é o de "reprovabilidade, por ter agido diversamente de como se deveria", então não mais se conseguirá discernir qual a pena justa, isto é, capaz de compensar o mal cometido. Termina-se por não se entender o que é exatamente a pena.
Finalmente, se não se basear a pena na culpabilidade, então não se compreenderá mais qual é o próprio fundamento do conceito de crime, desde que o fato cometido pelo sujeito não culpável - enquanto não imputável - puder, afinal, ser considerado um puro ilícito administrativo.
Chegar-se-á, portanto, a estas inaceitáveis conseqüências se conceber-se a dogmática penal em base não mais ontológica, mas somente de política criminal, renunciando a idéia da retribuição para fundamentar a pena exclusivamente no objetivo de prevenção geral.
Ousamos discordar do professor Élio Morselli em alguns pontos.
Não há, de fato, como não ver na pena uma função retributiva, isto é, deve haver um fato anterior que a justifique, sendo ela, igualmente, a retribuição por um mal injustamente causado. Ademais, a pena surge como uma reação a algum comportamento que se fez no mundo fenomenológico.
Qualquer fenômeno? Evidente que não. Dentro da dogmática penal, esposamos o entendimento minimalista, ou seja, o Direito penal deve ser conclamado a atuar somente nos casos verdadeiramente importantes, é dizer, nos quais os bens jurídicos mais relevantes e penalmente tutelados forem lesados. É preciso que se puna a pessoa que demonstrou requintes de crueldade e perversidade ao agir.
Além disso, os crimes que devem demandar as consequências mais severas são aqueles em que há violência e/ou grave ameaça à pessoa. Para crimes patrimoniais as penalidades devem ser menores. Uma realidade que, infelizmente, não foi abraçada pelo Código Penal brasileiro, de 1941. Em nosso diploma repressivo pune-se mais e mais severamente os crimes patrimoniais e menos severamente os crimes conta a pessoa.
Ainda esposamos, ademais, o entendimento de que, o grau de civilidade de um povo é medido pelo uso que o mesmo faz do Direito penal. Portanto, quanto mais uso este povo fizer do Direito penal, mais incivilizado e bárbaro ele haverá de ser. Em sentido inverso, quanto menos uso fizer de referido instrumento punitivo, maior será seu grau de civilidade.
Diante disso, não podemos perder de vista que, todo ato legislativo (princípio da reserva legal ou da legalidade) tendente a criminalizar um comportamento, bem como, inversamente, a descriminalizá-lo, deve ter, como um de seus suportes cognitivos, os estudos de política criminal, bem como da criminologia, da sociologia, psicologia e demais ciências correlatas. A interdisciplinaridade é uma necessidade mais do que premente neste século XXI.
A política criminal, através de seus postulados e metodologia científica dirá quais penas são as mais eficazes para reprimir determinada conduta delitiva. Já a criminologia, fornecerá os elementos necessários para a compreensão do fenômeno criminoso, através da dissecação dos componentes integrantes do mesmo, ou seja, o delinquente, a vítima e o crime em si.
Para uma definição mais científica desta importante ciência (a criminologia), vale transcrição do conceito de Sutherland, assim cunhado: "A Criminologia é um conjunto de conhecimentos que estudam o fenômeno e as causas da criminalidade, a personalidade do delinqüente e sua conduta delituosa e a maneira de ressocializá-lo".
Estas ciências (criminologia e política criminal), auxiliares e autônomas (posto possuírem metodologia própria), são as grandes ferramentas de que o Direito penal deve se valer para que a pena não perca sua finalidade.
Cada conduta criminosa requer uma determinada penalidade, que seja consentânea e proporcional, além de razoável (Princípio da Proporcionalidade e da Razoabilidade) com as consequências que traz para a vítima e para a sociedade.
Além disso, a pena, que não será eterna (perpétua), pois, o sistema jurídico-penal brasileiro veda esta modalidade de sanção, terá que reestruturar a personalidade do criminoso, de tal forma que o mesmo, através de um programa de reeducação, possa voltar ao convívio de seus pares, ressocializado.
Logo, a função puramente retributiva da pena, sem um fim útil (utilitarismo) faz com que o Direito penal perca sua finalidade. É a visão puramente retributivista do Direito penal, que forma o estofo ideológico das penas de morte e de caráter perpétuo, pois, em referidas penas, não há a menor intenção de se fazer com que o criminoso volte ao seio da sociedade do qual foi estigmatizado.
Ademais, é esta visão, pouco humanizada do Direito penal, que instiga e fundamenta o recrudescimento do mesmo, através de penas cada vez mais severas, para delitos de pouca gravidade. Esse recrudescimento é decorrente da ala extremista do Direito penal, conhecido como Movimento de lei e ordem. Aqui o Direito penal é criado para punir, e nada mais.
Sobre o Movimento de Lei e Ordem, assim a professora Alice Bianchini, em texto escrito para o curso de pós-graduação em Ciências Criminais (parceria LFG-UNAMA), no módulo de Política Criminal, intitulado “Os grandes movimentos de Política criminal na atualidade: movimento de lei e ordem, minimalismo penal e abolicionismo”, assim fez constar, litteris:
O final da década de oitenta se caracteriza pela acolhida, no campo político brasileiro, de movimentos em prol do recrudescimento do Direito penal, os quais vinham ganhando força na Europa, principalmente a partir da falência do Estado de bem-estar social, e cujas premissas básicas confrontavam, totalmente, com a perspectiva cunhada na legislação brasileira.
De conformidade com ALBERTO SILVA FRANCO, “o Movimento da Lei e da Ordem compreende o crime como o lado patológico do convívio social, a criminalidade como uma doença infecciosa e o criminoso como um ser daninho. A sociedade era separada num traço simplificado, entre pessoas sadias incapazes da prática de atos desviados e pessoas doentes prontas para a execução de atos transgressivos. [...] Cada infrator tem uma qualidade negativa que o marca como um estigma: é o outro que merece escarmento e que não pode permanecer entre as pessoas honestas”. (FRANCO, 2000, p. 82)
Esta nova perspectiva passa a dominar o cenário político-social, tendo sido responsável pela edição de inúmeras leis cujas características principais repousam na idéia de que o Direito penal deve representar um instrumento de combate à criminalidade, sendo que para tal há que se instituir uma ordem penal o máximo possível repressiva, reduzindo cada vez mais benefícios de ordem penal e processual penal.
Nos EUA, a década de 70 é marcada pelo surgimento do Movimento de Lei e Ordem. Suas propostas dirigiam-se, basicamente, no sentido de uma maior intervenção legal, judicial e policial contra a criminalidade de massa e a criminalidade de rua (patrimonial e violenta) (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 24).
Muito embora o desenho do Movimento de Lei e Ordem tenha sofrido alguma alteração, suas premissas ideológicas, bem como seus requerimentos foram mantidos e tiveram acolhida em outros países. Vê-se, atualmente, em todas as partes do mundo, um fenômeno identificado por SILVA SÁNCHEZ como expansão do Direito penal.
Desde logo há que se fixar que são duas as espécies de expansão do Direito repressivo. Há aquela razoável, a que se sustenta em uma emergência; há uma outra que se fulcra, na expressão de SÉRGIO MOCCIA, em uma “perene emergência”.
Visto desta forma, podemos dizer que:
(a) expansão razoável: obedece à aparição de novos bens jurídicos (informática, engenharia genética, por exemplo), bem como à maior valoração que aquelas já preexistentes passam a experimentar perante a sociedade (é o caso do meio-ambiente, do preconceito racial, do assédio sexual, etc.)
(b) expansão emergencial: sustenta-se praticamente na idéia do aparecimento de novos riscos (sociedade de riscos – Ulrich Beck), bem como na configuração de uma sociedade de “sujeitos passivos”.
Nesta última perspectiva, surge a denominada “sociedade da insegurança sentida (ou sociedade do medo)” (SILVA SANCHEZ). Esta é a característica das sociedades da era pós-industrial, nas quais o item segurança passa a integrar as principais pautas de reivindicação social, supondo, equívoca e ingenuamente, que o Direito penal é instrumento hábil para dar cumprimento a tal querela.
Todas essas questões desembocam no denominado Direito penal do risco, assunto a ser desenvolvido na terceira aula de nossa disciplina. Com exceção das Leis 9.099/95 (juizados especiais), 9.072/98 (penas alternativas) e 9.271/96 (Lei da revelia), praticamente todas as outras normas penais editadas após a Constituição Federal carregam tal concepção ideológica.
O recrudescimento verificável da criminalidade gera um crescente desconforto na população, já que a segurança é, corretamente, tida por bem prioritário. Os meios de comunicação de massa dramatizam e potencializam a violência, acentuando a insegurança. Neste contexto, tornou-se comum ouvir-se, a todo tempo e em todo lugar, discursos que debitam às leis tidas por “fracas” o aumento da taxa da criminalidade, desconhecendo-se, ou evitando-se discutir sobre a complexidade do problema.
Esta análise perfunctória, equivocada e simplista acaba por legitimar a ação de movimentos como o de Lei e Ordem, nos (e com a intermediação dos) quais, dentre outras conseqüências, são revigoradas as defesas de penas severas e de longa duração, além de serem propostas restrições a uma série de benefícios de caráter prisional.
De acordo com JOÃO MARCELLO ARAÚJO JÚNIOR,
“nos últimos anos, especialmente a partir da guerra do Vietnã, o mundo vem assistindo a um progressivo aumento da criminalidade, embora, algumas vezes, apenas aparente. Tal fato e, especificamente, os crimes atrozes são apresentados pelos mass media e por alguns políticos como um fenômeno terrificante, gerador de insegurança e conseqüente do tratamento benigno dispensado pela lei aos criminosos, que, por isso, não lhe têm respeito. Essa propaganda maciça de fatos assustadores provoca na população um verdadeiro estado de pânico, do qual se aproveitam movimentos políticos, geralmente autoritários, para se apresentarem como detentores da fórmula infalível contra a onda criminosa, que querem inculcar existir. O remédio milagroso outro não é senão a ideologia da repressão, fulcrada no velho regime punitivo-retributivo, que recebe, agora, o enganoso nome de Movimento de Lei e Ordem.” (1991, p. 70)
A Lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), e suas sucessivas alterações (Leis 8.930/94, 9.677/98 e 9.695/98), representa, no Brasil, o marco inicial deste movimento, o qual recebeu quase que irrestrito acolhimento dos membros da sociedade.
Concordar com a assertiva, à qual reiteradamente alguns setores sociais apelam, por má manobra ou por manobra má, de que o problema da criminalidade repousa na qualidade das leis é atitude ingênua ou que aposta na ingenuidade. Legislação mais severa — a experiência de vários países já tratou de demonstrar — não equaciona o problema da criminalidade.
Conforme LUIZ FLÁVIO GOMES, desde a edição da Lei dos crimes hediondos a criminalidade só aumentou. Para o autor, “esse modelo de política criminal, paleorepressiva, baseada na vingança, só sabe dar resposta aparente a esse tormento (inevitável) que se chama delito.” (Prefácio In: TORON, 1996, p. 7)
O criminoso convencional, no presente contexto, funciona como “bode expiatório”, debitando-se-lhe a total responsabilidade pela onda de violência vivenciada em sociedade. É nele que se concentra todo o sentimento de vingança que irrompe na sociedade, em face de um histórico de inexistência de cidadania, contribuindo para o aparecimento de uma “catarse coletiva” na qual o principal punido é aquele que já é vítima dos processos de exclusão social. Em se tendo por correto que a desigualdade social representa o principal fator de criminalidade, assiste-se à estarrecedora situação em que não se busca a solução do problema por meio de ações propensas a erradicar sua causa, mas sim, absurdamente, sua conseqüência.
Já há tempos idos, ainda sob a égide da primeira Constituição brasileira (1824), PIMENTA BUENO expressava preocupação com a desigualdade material. Conforme o autor,
“é uma desgraça e um perigo ver ao lado de uma opulência espantosa, de gozo e luxo requintados, uma multidão de seres humanos mortos de fome, sepultados mais que os brutos na miséria! Será isso compatível por muito tempo com a manutenção tranqüila do Estado? As grossas somas que ele gastará para entreter forças repressoras não serão mais bem aplicadas em melhorar essas tristes condições?” (1954, p. 412)
Um século e meio transcorreu e a lúcida inquietação do autor permanece atual. O que se vê, no entanto, é o exercício do inverso. As produções legislativas requerem o incremento da repressão, os atos administrativos premiam projetos que a contemplem, as decisões judiciais não exercitam a imaginação de alternativas. A opinião pública, rancorosa e equivocada, pede e obtém mais formas de vingança e retaliação, modos de talionato, sem se dar conta de que contraria o discurso que ela mesma faz sobre direitos fundamentais, o qual, por sua vez, pressupõe a aplicação de princípios democráticos de Direito penal, seja no momento em que se elabora a lei, seja quando se a aplica e executa.
A pena não pode ser apenas uma retribuição pura e simples, decorrente de um mal causado, mas deve buscar uma finalidade mais utilitarista, qual seja, a reinserção social daquele que foi estigmatizado da sociedade.
Enclausurar uma pessoa dentro de um estabelecimento penitenciário e deixá-la à própria sorte, sem dar-lhe condições de refletir acerca do ato que praticou é tentar resolver, temporariamente, um problema que, certamente, voltará a se fazer presente (reincidência/multirreincidência).
Portanto, hodiernamente, não há como se retirar a função, pelo menos assim deveria ser, ressocializadora da pena. Até porque, como já dito alhures, aquele que é condenado à estigmatização social, é dizer, ao cárcere, não ficará no mesmo eternamente. Até porque a pena de caráter perpétuo é vedada em nosso ordenamento jurídico, ex vi da alínea “b”, do inciso XLVII, do Art. 5º da Constituição Federal.
Um dia esta pessoa terá que retornar ao convívio social. E quando este momento chegar, qual será o comportamento daquele que retorna (egresso do sistema prisional), e daqueles que o recebem de volta (sociedade)?
Certamente ainda será de medo e raiva. Medo por parte dos que o recebem em seu convívio novamente, e de raiva, por parte daquele que retorna.
Aquele que retorna do cárcere tem raiva por dois motivos: primeiro, acredita que a sociedade é a responsável pelo estado de miserabilidade no qual, muitas vezes, se encontra; segundo, sabe que será alvo de discriminações por parte de seus pares, que não mais o aceitarão em seu meio, de boa vontade.
Inquestionavelmente, muitas pessoas apenas aceitam o egresso por uma imposição legal. Se não fosse a existência de um ordenamento jurídico, hoje, estruturado nos primados da dignidade da pessoa humana e do respeito aos seus direitos fundamentais, certamente a sociedade, sem titubear, colocaria para fora de seu convívio aquele que um dia cumpriu pena em um estabelecimento penitenciário.
Uma das razões na qual se funda a aceitabilidade das pessoas (sociedade), em relação ao egresso, diz respeito ao fato de que, uma vez cumprida a pena anteriormente imposta, não há mais óbice que impeça o egresso de voltar ao convívio social. Ademais, modernamente, existem leis que punem o ato da discriminação, logo, é com muito pesar que ainda constatamos que, o respeito ainda é mais uma imposição legal, do que necessariamente, um imperativo ético-moral. As pessoas respeitam, porque têm medo de serem penalizadas pela falta de respeito.
O Direito penal do século XXI não pode deixar de se enfileirar com os primados da dignidade da pessoa humana, adotando um conteúdo humanista e garantista.
O processo penal, que se inicia com o inquérito policial, deve ser um instrumento de proteção, e não de execração do acusado.
Todos os meios de defesa devem ser legalmente garantidos ao investigado. A pessoa acusada da prática de um determinado ato, penalmente tipificado, é inocente (princípio da presunção de inocência), até que o órgão acusador (Ministério Público) prove o contrário, posto que o acusado não é obrigado a fazer prova contra si mesmo – princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere, nemo tenetur ipsum accusare, privilegie against self-incrimination etc.).
E, caso haja dúvida quanto à autoria do delito, esta deve beneficiar o réu (in dubio pro reo) e não prejudicá-lo, pois, a condenação de um ser humano à estigmatização social, deve ser escorada em provas robustas e contundentes, quanto a ser a pessoa acusada, aquela que, efetivamente, cometeu o delito que lhe é imputado.
2. Conclusão
Assim, defendemos que, a pena, inquestionavelmente, possui uma função retributiva, dentro da qual está inserta a idéia de prevenção especial (impedir a reincidência) e geral (criar na consciência coletiva o medo pelo desrespeito da lei); além disso, a pena restabelece o equilíbrio intra-psíquico, tanto em nível individual, quanto coletivo e que a atitude criminosa havia rompido; ademais, a pena restitui o Direito, fazendo com que as pessoas sejam fiéis à lei.
No entanto, a pena deve ter finalidades utilitaristas mais profundas, possibilitando ao recluso instrumentos que lhe possibilitem a reflexão acerca do ato cometido e, diante desta reflexão, opte pelo retorno ao convívio social sem raiva, ou medo, consciente de que, para a manutenção da paz e do equilíbrio sociais, todos os membros da coletividade devem colaborar para este desiderato.
Fica registrado nosso posicionamento e respeito a todos os posicionamentos contrários.
[1] Este artigo foi elaborado com base em nossa obra, Lei de Drogas Comentada – artigo por artigo. 3ªed. Curitiba: Editora Belton, 2015, e a qual sugerimos a leitura para aprofundamento da temática ora abordada.