Análise Crítica do "Plea Bargain" na atualidade

09/09/2020 às 19:25
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O presente artigo abordará o "plea bargain" sob o enfoque doutrinário e jurídico, vez que o Pacote Anticrime surgiu para promover mudanças no nosso sistema acusatório e nos princípios constitucionais, com a devida análise dos prós e contras da lei.

No Brasil nunca foi implantado o “plea bargain” em sua integralidade, mas isso não significa que sempre rejeitamos seus institutos.

A primeira lei que possibilitou a justiça consensuada (delação premiada) foi editada em 1990 (leis dos crimes hediondos). Depois veio a lei dos juizados criminais e da suspensão do processo (1995). Em seguida apareceu a lei de proteção de vítimas e testemunhas (lei 9.807/99) e mais recentemente a lei do crime organizado (12.850/13), a mais completa sobre a matéria e muito parecida com a experiência estrangeira.

Leis no campo dos crimes financeiros, lei de lavagem de capitais, lei de combate ao tráfico de drogas, todas já permitiram o consenso dentro do processo penal brasileiro, que já não segue o modelo francês puro há 30 anos.

Nesse ínterim, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editou a Resolução no 181, de 07 de agosto de 2017, que dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público.

O objetivo da referida resolução foi atribuir ao órgão ministerial um maior número de recursos e poderes investigatórios no âmbito criminal. Em outras palavras, a norma visa o combate efetivo dos crimes de colarinho branco e corrupção, que atualmente preocupam o país.

Nesse contexto, o Ministro Sérgio Moro apresentou o Pacote Anticrime em fevereiro de 2019, que abarca a aplicação do instituto Plea bargain. De acordo com o teor do projeto, ficou estabelecido, na seção XII da redação, “Medidas para introduzir soluções negociadas no Código de Processo Penal e na Lei de Improbidade.

Vejamos o que dispõe o artigo 18 da Resolução no 181/17 do CNMP:

Art. 18. Nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal, desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento, além de cumprir os seguintes requisitos, de forma cumulativa ou não:

I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima;

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos arts. 91 e 92 do Código Penal;

III – comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail;

IV – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público.

V – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.

VI – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.

Esse modelo de resolução de conflitos penal é, basicamente, uma negociação entre o Ministério Público e o acusado, denominado de Plea bargain, que teve origem na common Law (modelo adotado pelos EUA).

No acordo, o investigado/acusado presta informações ao Ministério Público e o órgão abre mão de iniciar o procedimento investigatório ou a própria persecução penal em seu desfavor.

No Brasil, há um grande volume de processos, que tem abarrotado o Poder Judiciário para cumprir a função constitucional de resolver os conflitos sociais de interesses que sejam levados a sua apreciação.

É certo que ao acervo processual exagerado se somam outros motivos igualmente importantes na análise do nosso sistema judiciário.

Segundo José Aurélio Araújo (2011, p. 169), a má remuneração dos serventuários da Justiça, a baixa qualidade dos cursos jurídicos, a corrupção endêmica e a falta de responsabilidade social de muitos magistrados também contribuem para o estado atual das coisas.

Feitas as devidas considerações, resta esclarecer os pontos favoráveis e as desvantagens que esse sistema acarretaria ao arcabouço processual penal brasileiro.

Pois bem. Uma das maiores vantagens do plea bargain é, indiscutivelmente, a eliminação de julgamentos. Além disso, a tramitação rápida dos processos é outro fator de peso, já que julgamentos se estendem por dias, semanas, meses e até por anos, enquanto o ajuste do acordo e o fechamento do contrato do plea bargain podem ser resolvidos em poucos minutos.

Outrossim, a economia de recursos dos Estados e da própria administração dos tribunais seria notória, assim como ocorre nos Estados Unidos, que utilizam esse sistema e acabam por economizar recursos humanos (tempo) e financeiros, tudo para evitar os custosos julgamentos.

Ademais, com a adoção desse modelo não é necessário lidar com o ônus da prova, isso porque o acusado confessará seus crimes e os de terceiros.

Por esta razão, muitas vezes, os próprios advogados também preferem fechar um acordo, evitando assim, a postergação jurisdicional e o deslinde exauriente da ação.

Segundo o doutrinador Luís Flávio Gomes, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, ninguém é obrigado a fazer o acordo penal. Logo, o “plea bargain” é norteado por muitos princípios, dentre eles, o destaque primeiro é o da autonomia da vontade, ou seja, é o princípio da voluntariedade ou do consensualismo.

O autor do fato negocia se quiser e qualquer tipo de coação anula o acordo. O advogado presente tem o dever jurídico de zelar pela observância desse princípio, que significa a liberdade de decisão.

Outra vantagem que merece ser citada consiste no esvaziamento dos presídios. Mesmo que os réus tenham uma pena privativa de liberdade aplicada em seu desfavor, resultando no seu encarceramento, na maioria dos casos, com o plea bargain a pena será menor. Isso aumenta a rotatividade, reduzindo o tempo de permanência dos réus nas prisões.

O modelo também prioriza o tratamento com vítimas e testemunhas, uma vez que estas podem evitar o trauma e a pressão de um julgamento, muitas vezes postergado e não desejado por elas, isso porque muitas não se sentem confortáveis por estarem na presença do réu e até mesmo do próprio juízo.

Além disso, o acordo também alivia a aflição causada pela incerteza de um desfecho negativo no julgamento. Isso permite ao réu lidar com a consequência de seu crime imediatamente, assim que é feita a negociação e ela é aprovada pelo juiz, o caso está encerrado.

Percebe-se, pois, que se o Ministério Público utiliza-se da proporcionalidade e razoabilidade, evita mais condenações, dessa forma, o plea bargain pode ser benéfico para a sociedade, principalmente com relação aos delitos menos graves, assegurando contudo, os direitos e garantias fundamentais.

Quanto as desvantagens do "plea bargain" no Brasil, há modificações legislativas, com a inclusão do art. 28-A e §§, bem como art. 395-A, §§, do Projeto de Lei Anticrime, in verbis:

Art. 28-A. Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê- lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público;

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; e

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Logo, observa-se que o art. 28-A possibilita o acordo entre o MP e o acusado, limitando crimes com pena inferior a 4 anos, sem violência ou grave ameaça. Tal contrato deve ser feito antes de proposta a ação criminal e seu conteúdo deve envolver necessariamente uma ou algumas das sanções constante nos incisos I ao V do referido artigo, do qual tratam, apenas de penas restritivas de direitos, o que evidencia uma grande aproximação desse acordo com o já existente instituto da transação penal.

No entanto, o atual instituto suprime todos os direitos fundamentais do acusado, vez que os promotores atuam com ampla discricionariedade em face do desconhecimento do processo por parte do acusado, que abre mão do processo penal, e, por conseguinte, de suas garantias processuais, como o contraditório e a ampla defesa, direito de ser julgado por um juízo, a presunção de inocência, a garantia contra a autoincriminação e até o direito de apelar.

A crítica mais grave formulada contra o instituto é a de inconstitucionalidade por supressão de direitos humanos e fundamentais garantido ao acusado. Na doutrina de Lynch (2003, pp. 24-27), o Bill of Rights norte-americano estabelece uma série de salvaguardas para o acusado, incluindo o direito de ser informado das acusações, o direito de não se autoincriminar, o direito a um julgamento público e rápido, o direito a um julgamento em um júri imparcial no local do crime, o direito a questionar as testemunhas de acusação e o direito à assistência por advogado.

A plea bargaining é a principal técnica utilizada pelo Estado para superar as garantias institucionalizadas nos julgamentos criminais. Ele questiona: é legítimo que o Estado use seus poderes de acusação e sentenciamento (charging and sentencing powers) para pressionar o acusado a renunciar a seus direitos?

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Nesse viés, observa-se que o sistema processual penal acusatório e inquisitório se confundem, vez que o Ministério Público conduz o processo de forma que atinge os poderes instrutórios do juiz e a participação das partes no curso processual, podendo optar tanto pelo Adversarial System quanto pelo Inquisitorial System, conforme afirma a jurista Ada Pellegrini (1999, p. 77).

Logo, o plea bargain fere o sistema processual penal misto adotado pelo Brasil, já que o Ministério Público cumula o poder de julgar e acusar, colhendo as provas, impondo os termos do acordo e comprometendo sua imparcialidade, visto que o acusado passa a ser visto como um mero objeto do processo, e não como uma parte.

De acordo com Rodrigo Leite Ferreira Cabral (citado por Renne do Ó Souza, Conjur 7/1/19), “o overcharging (excesso de acusação) pode ser vertical, que ocorre quando é feita uma acusação mais grave do que os elementos de informação autorizam, v.g. imputação de furto qualificado, quando as informações indicam tratar-se de furto simples ou horizontal, aquela em que é incluída a imputação de fatos adicionais que não defluem dos elementos de informação, v.g. denúncia por furto e receptação, quando há elementos apenas para a receptação.

Já o bluffing ocorre quando a acusação informa ao 4 investigado que tem mais elementos de informação para realizar a acusação do que efetivamente tem”.

Todas essas críticas devem ser levadas em conta no sistema brasileiro para que ele não incorra nelas. É inadmissível qualquer tipo de pressão psicológica para que o imputado faça o acordo. O escopo de se livrar do processo não constitui motivo para qualquer tipo de coação, que é vício que pode impedir a homologação do acordo ou até mesmo anulá-lo.

Além disso, mencionem-se também os seguintes argumentos contrários a plea bargaining (CHEMERINSKY, LEVENSON, 2008, pp. 649-651):

(a) ela pode pressionar um inocente a confessar culpa para evitar ser condenado por uma acusação mais grave. Por esse argumento, guilty pleas seriam as principais causas de condenações equivocadas; (b) embora o processo de plea bargaining seja normalmente encarado como um “contrato” ou “acordo” entre acusação e defesa, na verdade há uma grande disparidade de poderes nessa negociação; (c) por ocorrer em um cenário privado, fora do alcance dos olhos do público, reduz-se a confiança da sociedade de que “a Justiça foi feita”; (d) ela permite que o acusado deixe de ser responsabilizado por todos seus atos, recebendo um “desconto” da Justiça, reduzindo-se o efeito dissuasório da punição; (e) a frustração das expectativas da vítima do crime, que não participam do processo e podem não concordar com a sentença mais favorável ao acusado confesso; e (f) tratamento supostamente desigual entre réus, conforme a jurisdição e sua situação econômica (e capacidade de suportar os ônus de um julgamento regular).

Para aplicabilidade prática no Brasil, deve-se analisar os seguintes pontos: O exagerado número de processos pendentes de julgamento; a demora na sua solução; a necessidade de aplicação de institutos capazes de resolver a crise judiciária atual; o cuidado que se deve ter na importação do instituto Plea Bargain, atentando-se para as diferenças culturais existentes entre o Brasil e os Estados Unidos.

O pensamento econômico e os fundamentos da economia justificam a negociação. A celeridade processual, redução do número de processos, e diminuição dos gastos processuais, no entanto, as questões morais possuem um peso maior, conforme afirma o presidente da Suprema Corte Warren Burger em 1971: "Uma sociedade próspera não deve ser miserável no apoio à justiça, pois a economia não é um objetivo do sistema", escreveu.

A justiça deve priorizar as garantias fundamentais e os princípios que regem a dignidade do acusado, sob pena de ferir o Estado democrático de Direito, por não haver uma distinção clara entre culpados e inocentes, bem como um julgamento pesado em infrações passíveis de absolvição perante o juízo comum.

Ademais, esse instituto é uma espécie de acordo figurado em um cenário privado, gerando insegurança na população em relação à sua real efetividade, não podendo monitorar os abusos e coerções realizadas pela acusação, além de contrariar o princípio da isonomia ao acusado, deixando a impressão de que aqueles que possuem mais contatos são beneficiados com acordos mais brandos.

Mas há também uma preocupação prática central que os reformadores querem mitigar: que a falta de controle e supervisão conceda aos promotores a discricionariedade de poderes amplos e obscuros, realizando o papel de julgar e condenar o réu.

Juízes não participam da realização dos acordos, e aplicando a realidade brasileira, existem normas próprias que suprem a necessidade de instalação do referido instituto, vez que no artigo 98 da Constituição Federal, há a previsão legal da criação de juizados especiais pra julgar infrações de menor potencial ofensivo, sendo possível a transação penal.

Nesse sentido, nos Estados Unidos, o caso Bordernkirsher vs. Hayes remete o episódio em que o MP ofereceu ao réu uma pena de 5 anos de prisão pelo fato de ter falsificado um cheque no valor de 88 dólares e 30 centavos. Para convencê-lo a aceitar a sua proposta, o acusador ressaltou que, caso não concordasse com o plea bargaining, em razão da sua reincidência, proporia a aplicação de uma pena de prisão perpétua. A Suprema Corte norte-americana declarou inválido o plea bargaining, por considerar que, nesse caso específico, a adesão do réu ao acordo não foi voluntária, tendo ocorrido ameaça acusatória.

O acusado fica muito mais à vontade para se manifestar quanto à transação penal quando percebe que o Parquet não pode extrapolar a moldura legal da imputação, quando informado de que se trata de um benefício cuja aceitação não significa o reconhecimento de sua culpa e, por fim, quando sabe que a proposta, por força de lei, apenas pode se referir à aplicação de uma pena restritiva de direito ou de multa (art. 76 da Lei 9099/95).

A Lei no 9.099/95 trouxe no ordenamento jurídico brasileiro um modelo de justiça criminal, fundado na ideia de consenso. As medidas despenalizadoras são eficazez e garantem um julgamento justo, com propostas de medidas despenalizadoras, assim classificadas por Grinover et al (2002, p. 46): (1) nas

infrações de menor potencial ofensivo de iniciativa privada ou pública condicionada, havendo composição civil, extingue-se a punibilidade (art. 74, § único); (2) não havendo composição civil ou tratando-se de ação pública incondicionada, a lei prevê a possibilidade de transação penal consistente na aplicação imediata de pena alternativa (restritiva de direitos ou multa), por proposta do Ministério Público (art. 76); (3) as lesões corporais culposas ou leves passaram a exigir representação da vítima (art. 88); e (4) os crimes cuja pena mínima não seja superior a 1 (um) ano permitem a suspensão condicional do Página 8 de 26 processo (art. 89).

Nesse ínterim, caso o crime não for de menor potencial ofensivo, o acusado tem a garantia constitucional à ampla defesa e ao contraditório, em obediência ao devido processo legal, previsto no artigo 5oLIVCF/88, uma vez que no plea bargain, não é exigido padrão de evidência ou prova de culpa, ferindo o princípio da presunção da inocência, que preceitua em seu art. 5oLVIICF/88, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, todos serão considerados inocentes até que se prove o contrário.

Na mesma linha de entendimento, é o teor do art. 283CPP, in verbis: Art. 283CPP. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Todavia, verifica-se que nos dados do Projeto National Registry of Exonerations, da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, e do Centro Newkirk de Ciência e Sociedade da Universidade da Califórnia Irvine, que revisa casos criminais pra apuração de condenações errôneas, dentre 2.006 casos revisados desde que o projeto começou em 1989, 362 deles foram baseados em admissões de culpa.

De acordo com o teor do Projeto de Moro, em seu art. 395-A, § 2o, in verbis:

As penas poderão ser diminuídas em até a metade ou poderá ser alterado o regime de cumprimento das penas ou promovida a substituição da pena privativa por restritiva de direitos, segundo a gravidade do crime, as circunstâncias do caso e o grau de colaboração do acusado para a rápida solução do processo.

Assim, apesar de aceitar receber desde logo a pena, o acusado terá sua pena diminuída em até a metade ou poderá ser alterado o regime de cumprimento das penas ou será estabelecida a substituição da pena privativa por restritiva de direitos.

Em se tratando de um crime concretamente grave, havendo provas fartas para a condenação, bem como havendo uma colaboração ínfima do acusado para a solução rápida do processo, a proposta de acordo contemplará um benefício menos atrativo.

Logo, o Direito Penal brasileiro e o Direito Processual Penal tratam de um dos bens jurídicos mais caros e importantes aos seres humanos, a liberdade. Por essa razão é que todo o processo deve ser pautado sob a égide do princípio da presunção da inocência.

Na visão do doutrinador Luigi Ferrajoli (p. 549, 2000), o importante é que todos os inocentes sejam, sem exceção, protegidos:

[...] é um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de algum culpável. Isso porque, ao corpo social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punidos, pois o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos.

Embora complexa a questão, não parece viável, ao menos no atual momento, a concessão de amplo poder de barganha ao Ministério Público, quando da formulação da imputação criminal.

É válido ressaltar a diferença entre o Ministério Público do Brasil e a acusação dos Estados Unidos. Enquanto temos nossos promotores aprovados mediante concurso de provas e títulos, gozando de garantias, dentre as quais, a vitaliciedade (art. 128, § 5º, I, a, e art. 129, § 3º, ambos da CF), os norte-americanos são eleitos através do voto popular, em mandato de 4 anos, garantindo um maior controle da sociedade em relação a seus atos e políticas públicas, portanto suas ações são mais efetivas que o representante ministerial do Brasil.

Com a ausência de controle político, resta à atuação do membro do Ministério Público brasileiro apenas o controle judicial, exercido pelos magistrados, via de regra de maneira bastante comedida, o que pode se explicar, em parte, por uma espécie de reverência a uma instituição (o Ministério Público) equiparável constitucionalmente, em termos de direitos e garantias, ao próprio Poder Judiciário; de outra banda, e mantendo o foco na persecução criminal também se percebe claramente uma quase absoluta aquiescência por parte dos juízes às manifestações processuais do Ministério Público, ocasionada por razões bastante pragmáticas.

Por que revisar, as razões de arquivamento invocadas pela acusação se isso diminuirá a quantidade de processos judiciais?

Em segundo lugar, porque um dos princípios institucionais do Ministério Público brasileiro, nos termos da Constituição vigente, é o da independência funcional (art. 127, § 1o, da CRFB/88). A independência funcional, embora constitua importante garantia do membro do Parquet, sem dúvida dificulta a uniformização da atuação da instituição, impedindo que o Ministério Público se torne verdadeiro gestor de política criminal.

Quanto à atuação do defensor norte-americano, também é possível perceber a sua predisposição para aceitar o plea bargain e para incentivar o seu cliente a aceitá-lo. Como os honorários são cobrados ao início do processo, o defensor resolve o processo com celeridade, enquanto no Brasil, os defensores são selecionados por concurso público, e o valor que recebem mensalmente não se vincula com o número de processo que atuam, não possuindo interesse em tornar mais curto possível o trâmite processual (art. 134§ 1ºCF).

Com efeito, o atual estágio de desenvolvimento da instituição não permite imaginar o Ministério Público como formulador e, ao mesmo tempo, executor de uma política criminal segura.

A ausência de orientações vinculantes emanadas dos órgãos superiores da instituição, aliada à falta de hierarquia própria de sua estrutura organizacional, por vezes põe em xeque a noção de unidade, outro princípio institucional (art. 127§ 1o, da CRFB/88).

Com esse desenho institucional, não há condições para franquear ao Ministério Público maiores poderes de negociação no processo penal, salvo aqueles criteriosamente regulamentados por disposição legal. Mais ainda que nos Estados Unidos da América, a justiça criminal negociada, com algo mais próximo à plea bargaining, traria ao ordenamento jurídico nacional sérias dificuldades em termos de isonomia no tratamento de casos iguais, na medida em que, no Brasil, o representante da acusação é senhor quase absoluto de suas decisões, sujeitando-se apenas, como tantas vezes repetido na doutrina, à lei e à suas próprias convicções.

Nesse caso, a transação penal serve para resolver os crimes que não são acometidos de violência ou grave ameaça, propondo soluções benéficas ao acusado, sem a necessidade da pena privativa de liberdade.

Para evitar excessos no instituto da negociação, devem ser preservados os direitos fundamentais do acusado, razão pela qual, antes de ser homologado o acordo, o magistrado deve averiguar alguns pontos: Se o investigado foi assistido por um advogado ou defensor público; se possui ciência das consequências do ato; se há voluntariedade no acordo e se encontra na plenitude de suas faculdades mentais.

Dessa forma, em obediência ao princípio da razoabilidade-proporcionaliadade, deve o juiz realizar a proibição do excesso, quando notar a evidente dissonância entre a proposta feita pelo Ministério Público e a colaboração realizada pelo investigado.

Por isso, o poder judiciário desempenha um importante papel de participar ativamente do procedimento, em proteção ao sistema processual penal misto, e para eficácia dos atos, que devem ser revestidos de proporcionalidade.

Nesse ínterim, ressalta-se a doutrina de José dos Santos de Carvalho Filho (2016, p. 43/44):

O princípio da proporcionalidade, que está ainda em evolução e tem sido acatado em alguns ordenamentos jurídicos, guarda alguns pontos que o assemelham ao princípio da razoabilidade e entre eles avulta o de que é objetivo de ambos a outorga ao Judiciário do poder de exercer controle sobre os atos dos demais poderes.

O grande fundamento [...] é o excesso de poder, e o fim a que se destina é exatamente o de cometer atos, decisões e condutas de agentes públicos que ultrapassem os limites adequados, com vistas ao objetivo colimado [...] pelos Poderes representativos do Estado.

A ausência de hierarquia e de diretrizes internas elaboradas por órgãos superiores da própria instituição tornam difícil imaginar o Ministério Público como verdadeiro formulador e executor de uma política criminal segura, revestida de proporcionalidade em seus atos.

Ademais, a atuação dos operadores do Direito – Juiz, acusador, defensor e réu – são muito diferentes nos Estados Unidos e no Brasil, o que não pode ser desconsiderado para a aplicação dos institutos em estudo.

Logo, é inviável franquear ao MP maiores poderes de negociação no processo penal, salvo aqueles expressamente regulamentados por lei, sob pena de sério risco de práticas discricionárias e anti-isonômicas.

Deve-se resguardar, portanto, as garantias fundamentais, como ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência para que o acusado tenha as condições de isonomia em seu julgamento e não seja vítima dos excessos cometidos pelo órgão de acusação, em prol da concretização do Estado Democrático de Direito.

Uma reforma no sistema criminal brasileiro é necessária, tendo em vista que nossa legislação, em alguns quesitos, se mostra ultrapassada, contudo, qualquer mudança que seja, tem que ser feita com cautela. Com efeito, o plea bargain, caso seja implementado no Brasil, irá interferir e até mesmo alterar toda a nossa legislação penal e processual penal, o que, consequentemente, tem gerado bastante polêmica entre os aplicadores do Direito.

Neste sentido, para os críticos desse instituto, sua aplicação representaria total abandono aos direitos e garantias fundamentais do acusado, na medida que, ao aceitar o acordo e se declarar “culpado”, estaria abrindo mão de um julgamento justo e eficaz, onde o acusado, deve ser defendido por um juiz imparcial, sempre respeitando-se os princípios do contraditório e da ampla defesa, e principalmente, de não produzir prova contra si.

Suscitam, ainda, que o referido instituto, deixa a vítima “esquecida”, vez que que não participa diretamente da conciliação entre o Ministério Público e o acusado, o que poderia gerar, na sociedade, um sentimento de injustiça e aumentar, consequentemente, os linchamentos nas ruas, onde grupos, motivados pela vingança, utilizam da força como forma de fazer “justiça com as próprias mãos”.

Por outro lado, para os que consideram o plea bargain como um grande avanço no nosso sistema jurídico, alegam, entre outras coisas, que o referido instituto, traz benefícios para ambas as partes, de modo que, estaria diminuindo a quantidade de julgamentos e acarretando uma “folga” no judiciário, que encontra-se amarrotado de processos, que muitas vezes, demoram muitos anos para chegarem ao fim.

Com relação ao acusado, alegam, que ao aceitar o acordo, este não precisaria arcar com todas as custas processais, além de lhe ser estabelecida uma pena mais branda, desde que não tenha havido qualquer forma de coerção.

Assim, diante das enormes críticas que são feitas a aplicação do instituto do plea bargain, tem-se que, de fato, sua aplicação seria bastante interessante nos países em que o judiciário encontra-se assoberbado de processos, contudo, uma maneira eficiente da sua aplicabilidade, seria sem coerção e desde que o acordo seja firmado, na presença do juiz, responsável pelo julgamento, e ainda, com a presença do advogado do acusado, garantindo-se, assim, a aplicação dos seus direitos e garantias fundamentais, além de um julgamento justo e eficaz.

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Sobre o autor
Camila de Castro Costa

Advogada. Pós-Graduanda. Atuante nas áreas de civil, família, administrativo e ambiental.

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