Análise jurídica da Portaria GM nº 2.282, de 27 de agosto de 2020, à luz do dever de sigilo médico e do consentimento informado da paciente.

Positivos exames de juridicidade e legalidade

Resumo:


  • O aborto é permitido no Brasil em casos de risco à vida da gestante ou gravidez resultante de estupro, sem a necessidade de autorização judicial ou boletim de ocorrência.

  • Os estabelecimentos de saúde são obrigados a notificar as autoridades policiais sobre casos de estupro, e devem preservar e entregar evidências materiais do crime.

  • A Portaria GM Nº 2.282/2020 detalha procedimentos para a interrupção da gravidez decorrente de estupro e reforça a necessidade de informar a gestante sobre os riscos e a possibilidade de visualizar o feto ou embrião por ultrassonografia.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Portaria GM Nº 2.282, de 27 de agosto de 2020, tornou o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez decorrente de estupro mais seguro e eficiente para o Poder Público e confere à paciente o direito à informações claras e precisas

1 - Intróito

O aborto é crime punido com penas que vão de um a dez anos de prisão. No entanto, o médico que o realizar é isento de pena quando: a) não houver outro meio de salvar a vida da gestante; ou b) quando a gravidez resultar de estupro e for precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal. O presente artigo analisará essa última hipótese de aborto chamado de sentimental ou humanitário [1].

Os profissionais de saúde, em especial os médicos, precisam ter contornos e procedimentos claros a seguir com vistas a se resguardarem de eventuais responsabilidades cível e criminal. De início, o Ministério da Saúde compilou, em 1999, orientações ordenadas denominadas “Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”, que foi reeditado em 2005.

Embora bastante incipiente e despido de conteúdo jurídico, representava uma primeira bússola na qual médicos poderiam se guiar. Nessas orientações, dispensava-se a realização pela vítima do boletim de ocorrência como condição para o procedimento médico abortivo em casos de estupro. Vejamos [2]:

O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesse caso, a não ser o consentimento da mulher. Assim, a mulher que sofre violência sexual não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia.Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento. O Código Penal afirma que a palavra da mulher que busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violência deve ter credibilidade, ética e legalmente, devendo ser recebida como presunção de veracidade. O objetivo do serviço de saúde é garantir o exercício do direito à saúde. Seus procedimentos não devem ser confundidos com os procedimentos reservados à polícia ou à Justiça.

(...)

A realização do abortamento não se condiciona à decisão judicial que ateste e decida se ocorreu estupro ou violência sexual. Portanto, a lei penal brasileira não exige alvará ou autorização judicial para a realização do abortamento em casos de gravidez decorrente violência sexual. O mesmo cabe para o Boletim de Ocorrência Policial e para o laudo do Exame de Corpo de Delito e Conjunção Carnal, do Instituo Médico Legal. Embora esses documentos possam ser desejáveis em algumas circunstâncias, a realização do abortamento não está condicionada à apresentação deste. Não há sustentação legal para que os serviços de saúde neguem o procedimento, caso a mulher não possa apresentá-los.

Com vistas a regulamentar o procedimento médico nos casos de aborto decorrente de estupro, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 1145/GM, de 7 de julho de 2005, instituindo o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez como condição necessária para adoção de qualquer medida de interrupção da gravidez no âmbito do Sistema Único de Saúde, excetuados os casos que envolvem riscos de morte à mulher.

Em linhas gerais, o procedimento seria composto por quatro fases. A primeira fase consistia no relato circunstanciado do evento criminoso, realizado pela própria mulher, perante dois profissionais de saúde. A segunda etapa consubstanciava análise do caso por um médico, que emitiria um parecer técnico e por uma equipe multidisciplinar, que elaboraria termo de aprovação de procedimento de interrupção. A terceira etapa compreendia a assinatura do termo de responsabilidade pela veracidade das informações prestadas pela gestante, sob pena de responsabilidade criminal. A última etapa correspondia à assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido pela paciente

Dois meses depois, foi editada Portaria nº 1508/GM, de 1 de setembro de 2005, substituindo a portaria anterior, deixando de exigir aprovação de toda equipe de saúde multidisciplinar no termo de aprovação de procedimento de interrupção, dispondo que bastaria a assinatura por três integrantes.

Recentemente, o Ministério da Saúde editou a Portaria GM Nº 2.282, de 27 de agosto de 2020 modificando, basicamente, em três pontos, o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez.


2- Obrigatoriedade da unidade hospitalar em comunicar à Autoridade Policial os crimes de estupro contra pacientes

Foi inserida a obrigatoriedade dos estabelecimentos de saúde ou profissionais de saúde notificarem a polícia acerca da ocorrência do crime de estupro contra a paciente. Vejamos o art. 1º da Portaria GM Nº 2.282.

Art. 1º É obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro.

Há que se mencionar que o dever de comunicação do crime de estupro foi dirigido ao estabelecimento de saúde ou médico, mas não à vítima, que ainda possui a faculdade de comunicar ou não o fato criminoso à polícia. Embora sejam desagradáveis os procedimentos policiais para as vítimas, em especial trata-se de crime de estupro, não se pode impedir que vítimas sejam convocadas para esclarecer fatos sob investigação. Há que se ressaltar que as delegacias de defesa da mulher são órgãos de grande capilaridade, em especial nas capitais, que contam equipe multidisciplinar e atendimento humanizado com objetivo de refrearem o processo de revitimização.

Cabe lembrar que os crimes contra a dignidade sexual não atingem somente a vítima individualmente considerada, mas afeta toda coletividade, em especial as crianças, adolescentes e mulheres, sendo de interesse da sociedade que o criminoso seja identificado e processado, a fim de prevenir que a impunidade sirva de incentivo para que o predador sexual continue a estuprar a mesma e novas vítimas.

A Portaria GM Nº 2.282 guarda consonância com a Lei Federal 10.778/2003 que estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Com efeito, a referida lei estabelece duas obrigações de notificação aos profissionais de saúde. A primeira é a notificação aos serviços de referência sentinela, criados pelo Decreto 5.099/2003. A segunda é a comunicação dos atos de violência contra a mulher à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências investigatórias criminais cabíveis e para fins estatísticos. Vejamos o art. 1º, §4º da Lei Federal 10.778/2003.

Art. 1º Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. (Redação dada pela Lei nº 13.931, de 2019) (Vigência)

(...)

§ 4º Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos. (Incluído pela Lei nº 13.931, de 2019) (Vigência)

Por outro, há diversas outras normas que determinam a obrigatoriedade de informação da prática de delitos com violência. No caso, por exemplo, do crime de estupro praticado contra criança ou adolescente, a Lei 13.431/2017 estabelece no artigo 4º, inciso III que qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que constitua violência contra criança ou adolescente tem o dever de comunicar o fato imediatamente ao serviço de recebimento e monitoramento de denúncias, ao conselho tutelar ou à autoridade policial, os quais, por sua vez, cientificarão imediatamente o Ministério Público.

Há que se ressaltar ainda que a notificação compulsória terá caráter sigiloso e que só se identificará a vítima em casos excepcionais, de risco à comunidade, à vítima e com seu conhecimento prévio, conforme estabelece o art. 3º da Lei Federal 10.778/2003.

Art. 3ºA notificação compulsória dos casos de violência de que trata esta Lei tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido.

Parágrafo único. A identificação da vítima de violência referida nesta Lei, fora do âmbito dos serviços de saúde, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável.

Com efeito, quando a violência praticada contra a mulher for de tal monta que traga risco pessoal ou à comunidade, o médico responsável tem o dever de comunicar o fato, inclusive com a identificação da vítima, dispensando-se seu consentimento, vez que a lei impõe o seu conhecimento prévio. Nesse caso, a comunicação à polícia terá dupla finalidade, a de instaurar a respectiva apuração criminal e de montar dados estatísticos.

Lado outro, quando a violência contra mulher não importar em grave risco pessoal como lesões corporais leves ou ameaças, a notificação, ainda sim, será necessária, a qual, todavia, não deverá identificar a paciente. Aqui, a finalidade da comunicação é tão somente estatística.

O crime de estupro é por si repugnante e odioso, tendo a portaria, acertadamente, considerado ipso facto de grave risco para a vítima e para a comunidade, de forma a impor a sua comunicação obrigatória pela unidade hospitalar, em conformidade com o art. 3º, parágrafo único da Lei Federal 10.778/2003.

Outrossim, os diversos estatutos dos servidores públicos da União, estados e municípios consubstanciam regras que impõe o dever de comunicar às autoridades competentes os crimes que tomarem ciência no exercício de suas funções. Com efeito, o médico da rede pública está obrigado também de comunicar o crime de estupro de que souber no seu ofício em cumprimento ao dever estatutário imposto a todos os servidores públicos.

Há que se ressaltar que a não comunicação à autoridade competente de crime de ação pública incondicionada, de que teve conhecimento no exercício da medicina cuja comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal, constitui infração penal, conforme o art. 66, II da Lei de Contravenções Penais.

Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:

II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal:

Pena – multa, de trezentos mil réis a três contos de réis.

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É cediço que originalmente a iniciativa da ação penal dos crimes de estupro, em várias de suas modalidades, era em sua grande maioria de iniciativa privada ou dependia de representação da vítima, não se impondo ao médico, pois, o dever de comunicar às autoridades públicas. No entanto, com a alteração promovida pela Lei 13.718/2018, os crimes de estupro, em todos os casos, passam à ação pena pública incondicionada, o que significa dizer que, a partir de 2018, a omissão do médico em comunicar crimes de estupros de que tiverem ciência no exercício de sua profissão poderá acarretar-lhe responsabilização penal.

Questão que se suscita é analisar se o sigilo médico seria óbice para essa comunicação.

O sigilo médico tem sua fonte histórica no juramento de Hipócrates com a seguinte passagem: “Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto” [3].

A sua fonte normativa no direito brasileiro é Código de Ética Médica veiculado pela Resolução CFM 2217/2018, a saber.

Art. 73 - Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.

Parágrafo único. Permanece essa proibição:

a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido;

b) quando de seu depoimento como testemunha(nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento);

c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.

Constata-se que o sigilo médico, como não poderia deixar de ser, não é absoluto, o qual deve ceder quando houver motivo justo, dever legal ou nos casos de consentimento do paciente. Tenha-se em mente que comunicar crime grave de que o paciente foi vítima não constitui violação do sigilo por expressa ressalva no Código de Ética Médica. Como visto, a comunicação do crime de estupro à autoridade policial para proceder a investigação, além de ser justo motivo, é dever legalmente previsto no art. 1º, §, 4º da Lei Federal 10.778/2003, e consta do respectivo estatuto legal a que está submetido, cuja omissão, inclusive, está tipificada penalmente no art. 66, II da Lei de Contravenções Penais.

Cai a lanço observar que o sigilo imposto ao médico nas investigações criminais somente incide quando o paciente for o investigado e for passível de expô-lo a processo penal. Quando o paciente é a vítima, o sigilo médico não pode ser invocado para proteção do criminoso, no caso específico, do estuprador, em detrimento da vítima-paciente.

A Excelsa Corte, nos autos do Recurso Extraordinário 60.176, já se manifestou que o sigilo médico não possui caráter de absoluto, afirmando que “É certo que abre exceções, por exemplo no caso damoléstia contagiosa de notificação compulsória. Então, há interesse social maior, que prepondera sobre interesse atinente à manutenção do sigilo. Esses e outros motivos previstos em lei são a justa causa, a que se refere o Código Penal, para permitir excepcionalmente a quebra de sigilo[4].

Outra questão a se colocar, mormente em razão da gravidade do próprio delito, a não apuração do delito de estupro pode funcionar como gatilho ou estímulopara o agressor sexual, mormente quando a vítima é sua conhecida ou mesmo sua parente. Tal circunstância, devidamente presente nos crimes de violência contra a mulher em geral, não pode ser negligenciadano caso de crimes hediondos, entre os quais, o estupro. A não apuração do delito permitirá que, na prática, o agressor venha a praticá-lo por inúmeras vezes e continuamente, encontrando na vítima uma presa fácil e indefesa.

Com efeito, no caso concreto, com o objetivo de prevenir, apurar e punir crimes graves como de estupro e proteger a paciente e a comunidade, o sigilo médico cede frente ao interesse social.


3- Dever de preservação de evidências materiais do crime de estupro pela unidade hospitalar

A portaria instituiu o dever de preservar e remeter à autoridade policial possíveis evidências materiais do crime de estupro, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime. Nesse sentido é o art. 1º, parágrafo único-, da Portaria GM Nº 2.282, vejamos.

Parágrafo único. Os profissionais mencionados no caput deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime, nos termos da Lei Federal nº 12.654, de 2012.

O art. 6, I e III, do Código de Processo Penal impõe à autoridade policial o dever de colher os elementos necessários para comprovar a materialidade e autoria delitivas. No caso de gravidez decorrente de estupro, o material genético extraído do corpo da vítima constitui o corpo de delito de suma importância para se identificar o autor do crime. Haja vista que esses elementos são extraídos e manuseados pela equipe autorizada a realizar o aborto, compreende-se logicamente que sobre ela recaia o dever de guarda e remessa à polícia, a fim de que sejam realizados os exames periciais devidos.

Registre-se que dever semelhante já era previsto no art. 4º, IV, do Decreto 7.958/2013, recebendo, agora, o reforço da norma pela sua previsão específica em se tratando de estupro que resultar gravidez.


4 - Dever de informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje

O art. 8º da da Portaria GM Nº 2.282/2020, assim dispõe:

Art. 8º Na segunda fase procedimental, descrita no art. 4º desta Portaria, a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.

O aborto humanitário ou sentimental, autorizado quando a gravidez decorrer de estupro, é uma faculdade que se abre à mulher de interromper a gestação, mediante isenção de penal criminal. À paciente que procura um nosocômio em busca de atendimento devem ser franqueados os atendimentos médico, social e psicológico para que a tomada de decisão, seja pela interrupção ou prosseguimento da gravidez, ocorra de forma livre, consciente e informada.

O art. 4º da Portaria GM Nº 2.282/2020 assevera que, na segunda etapa do procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez, o parecer técnico do médico analisará o laudo ultrassonográfico, assim como se confeccionará o termo de aprovação de procedimento de interrupção da gravidez pela equipe de saúde multiprofissional.

Com efeito, a equipe multiprofissional que atender a paciente está melhor qualificada para apreciar, concretamente, se há condições clínicas para que seja ofertada à gestante, quando da realização do exame de ultrassom, a possibilidade de visualização do embrião ou feto. Evidentemente, em estando a paciente em situação emocional cuja sugestão de visualização importe em grave sofrimento psíquico, a negativa deve ser autoevidente, devendo constar da anotação de avaliação da equipe multiprofissional. Por outro lado, não sendo esse o caso, vai ao encontro do princípio do livre consentimento informado que se ofereça essa possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia.

Ressalte-se que o oferecimento dessa possibilidade de visualização não deve ocorrer após a conclusão e aprovação do procedimento aborto na paciente, mas durante a fase de avaliação, inclusive psicológica. Com efeito, imaginar que, em todos os casos, a simples oferta de informação nesta fase de avaliação seria geradora de constrangimento e culpa na vítima é excluir dela a possiblidade de conhecer, avaliar e decidir, informada e conscientemente, acerca de todos as dimensões da situação que a aflige; além de lhe infligir a visão desumanizante de que toda gestação decorrente de estupro deveria ser necessariamente interrompida.

Há que se ter em mente que o dispositivo da portaria não determina que a paciente se submeta ao procedimento de visualização, mas, tão-somente, impõe à equipe médica o dever de informar à paciente acerca da possibilidade desse procedimento. Não devem ser raros os casos em que, no curso do procedimento de pustificação e autorização da interrupção da gravidez, a paciente desista, por qualquer motivo de foro íntimo, não devendo o Poder Público encarar esse desfecho com preconceitos e julgamentos morais, até mesmo porque a realização do aborto é uma faculdade e não uma imposição à gestante.

Desse modo, em não havendo recusa implícita, a oferta de informação acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia pela equipe médica concorre para a realização do livre consentimento informado da gestante vítima de estupro.


5 – Necessidade de detalhamento do risco de forma a obter o consentimento informado

O anexo V da Portaria GM Nº 2.282/2020 fez incluir o detalhamento dos riscos da realização da intervenção por abortamento, nos seguintes termos.

Faz-se necessário trazer o detalhamento dos riscos da realização da intervenção por abortamento previsto em lei:

a) Abortamento medicamentoso, antes das 14 semanas de gravidez, os principais riscos do aborto medicamentoso são:

  • Necessidade de outro procedimento para remover partes da gravidez que permaneceram no útero;

  • Complicações graves, como sangramento intenso, danos ao útero ou sepse;

b) A partir das 14 semanas de gravidez, os principais riscos do aborto medicamentoso são:

  • Necessidade de outro procedimento para remover partes da gravidez que permaneceram no útero;

  • Infecção ou lesão no útero;

c) Aborto cirúrgico - Antes das 14 semanas de gravidez, os principais riscos do aborto cirúrgico são:

  • Necessidade de outro procedimento para remover partes da gravidez que permaneceram no útero;

  • Complicações graves, como sangramento intenso, danos ao útero ou sepse;

d) Após 14 semanas de gravidez, os principais riscos de aborto cirúrgico são:

  • Necessidade de outro procedimento para remover partes da gravidez que permaneceram no útero;

  • Sangramento muito intenso;

  • Infecção;

  • Lesão no útero ou entrada no útero (colo do útero);

Declaro estar esclarecida acerca do risco de morte conforme a idade gestacional em que me encontro.

A nova redação do anexo V está em consonância com o dever de obter consentimento do paciente após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, previsto no art. 22 do Código de Ética Médica (RESOLUÇÃO CFM Nº 2.217/2018) e com a Recomendação CFM 01/2016, que trata do processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica.

Com efeito, eventual ilegalidade do anexo V citado só pode ser verificada se alguma das possíveis ocorrências ali apontadas não esteja devidamente catalogada na literatura médica, podendo o médico indicar percentuais de ocorrências, baseados em dados da literatura médica, não podendo estimá-los subjetivamente visando influir na decisão da paciente.


6 - Conclusão

Verifica-se que a Portaria GM Nº 2.282, de 27 de agosto de 2020 representa aperfeiçoamento do procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez decorrente de estupro, conferindo mais segurança na atuação dos profissionais de saúde e preservando o sigilo nos termos do Código de Ética Médica. Ademais, compreende medidas voltadas a prevenir e reprimir crimes de estupros, protegendo-se a paciente e a comunidade, preservando evidências materiais do crime.

Ademais, atribui à equipe multiprofissional, na fase de avaliação, o dever de prestar, se não for desde logo descartada, a informação acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia. Impõe, ainda, o detalhamento do risco do procedimento de abortamento de forma a obter o livre consentimento informado.

Pelo exposto, sob o ponto de vista jurídico, a Portaria GM Nº 2.282 constitui avanço positivo na regulamentação do procedimento de abortamento, atendendo ao disposto no art, 128, II do CP.


Notas

  1. Art. 124 a 128 do Código Penal.

  2. Normas e Manuais Técnicos. Série Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos - Caderno no 6, páginas 44 e 45. 2ª edição, Brasília-DF. 2005.

  3. Disponível em https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&esc=3. Acesso em 05/09/2020.

  4. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=157832. Acesso em 05/09/2020.

Sobre os autores
Ailton Benedito de Souza

Procurador da República no Estado de Goiás, onde exerce a função de Procurador Regional dos Direitos do Cidadão. Ex-Promotor de Justiça. Ex-Defensor Público. Especialista em Direito e Gestão Ambiental pela ESMPU/UnB.

Clarisier Azevedo Cavalcante de Morais

Procuradora da República. Ex-Juíza de Direito do Rio Grande do Norte. Ex-Advogada da União. Especialista em Direito Público pela UFCe. Ex-Professora Substituta da UFCe. Ex-Professora da Escola Superior da Magistratura do RN

Douglas Balbi Araujo

Procurador da República; Mestre em Direito Penal; Ex-Procurador do Ministério Público junto ao TCE/RJ; Aprovado nos concursos para os cargos de Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, Procurador Federal/AGU e advogado da Casa da Moeda.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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