O poder extroverso do Estado e seu impacto na estabilidade das carreiras policiais

Quais são as carreiras típicas de Estado?

11/09/2020 às 11:06
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Tema de alta relevância atualmente, a reforma administrativa do Estado é objeto de análise por parte do Congresso Nacional. Assim, o presente texto busca delinear os principais aspectos e consequências da reforma para as carreiras policiais.

Palavras-chave: reforma administrativa. Estabilidade. Poder extroverso do Estado. Carreiras policiais. Carreiras típicas de Estado.  

Sumário: 1. Introdução – 2. A reforma administrativa, a estabilidade e a forma de vínculo. 3. O que são carreiras típicas de Estado? – 4. Qual a natureza jurídica das carreiras policiais? – 5. Das considerações finais. 6. Referências. 

1. Introdução

Após a reforma previdenciária, o enfoque agora está com a provável reforma administrativa do Estado, materializada na Proposta de Emenda Constitucional n. 32/2020[i] (para baixar a PEC 32/20 – clique aqui), encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional no último dia 03 de setembro. 

Preliminarmente, delimitando nosso objeto de estudo, impende mencionar que a Reforma Administrativa de que trata a PEC 32/20 não dispõe sobre o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública, pois são autônomos, possuindo a prerrogativa de iniciativa de lei para dispor a respeito de sua estrutura, carreiras e cargos, nos termos dos arts. 93, 127, §2º e 134, §§ 2º e 3º, todos da CF/88. A reforma, portanto, alcança, precipuamente, servidores do Poder Executivo Federal, estaduais e municipais. 

A PEC 32/20 também não é aplicável, em sua maior parte, ao servidor investido em cargo efetivo até a data da entrada em vigor do regime jurídico que se pretende alterar, sendo-lhe garantido regime jurídico específico, com estabilidade após três anos de efetivo exercício e aprovação em estágio probatório, além de outras prerrogativas, consoante dicção expressa do art. 2º da referida Proposta de Emenda Constitucional.

Dito isso, um dos pontos que ganharam destaque foi o alarmado término da estabilidade no serviço público. Mas é bom que fique claro logo de início, não é bem assim. Faz-se necessário um estudo aprofundado tanto do instituto da estabilidade quanto de alguns pontos cruciais para entender a pretensão governamental que, nesse aspecto, mostra-se relativamente complexa. 

Por isso, sobreleva-se  que sejam respondidas algumas indagações: quais as modalidades de vínculo com serviço público estão previstas na PEC 32/2020? O que são carreiras típicas de Estado? Qual a natureza jurídica das carreiras policiais? Temas sobre os quais passaremos a nos debruçar doravante.

2. A reforma administrativa, a estabilidade e a forma de vínculo

O princípio do concurso público, estatuído no art. 37, I e II, da Constituição Federal, é basilar para a Administração Pública e, sobretudo, para a própria sociedade, pois representa acesso aos cargos públicos de provimento efetivo mediante processo objetivo, calcado na meritocracia, de acordo com sua natureza e complexidade.

Dessa maneira, longe de ser privilégio aos servidores públicos como alardeado pelos menos informados, trata-se de uma garantia social coletiva, consubstanciada na necessidade de afastar apadrinhamentos hoje ainda tão comuns nos cargos comissionados, de direção, chefia ou assessoramento e, até mesmo (talvez mais ainda) nos cargos de alto escalão, alçados mediante indicação do Poder Executivo, como o são os de Ministros do STF, do TCU, de Conselheiros dos TCEs, todos marcados,  não pela estabilidade, mas sim pela vitaliciedade.   

Na estabilidade a ideia é bastante simples: os cargos políticos são investidos mediante mandatos temporários; os servidores públicos devem ter a característica de permanência, atentos à finalidade pública de seus atos, bem como à continuidade do Estado, enquanto serviço público prestado à sociedade, não aos governantes. A fim de que os servidores não sofram represálias em suas decisões, que devem ser pautadas pela legalidade e por critérios técnicos, nos cargos de provimento efetivo a Constituição Federal elenca apenas três hipóteses de demissão, a saber (CF/88, § 1º do art. 41):

  1. Processo Administrativo Disciplinar em que seja assegurada ampla defesa e contraditório;
  2. Sentença judicial transitada em julgado; e
  3. Processo de avaliação periódica de desempenho, na forma da lei complementar, assegurada ampla defesa.

Ressalta-se que a terceira hipótese apontada acima depende de ulterior lei complementar, cuida-se, portanto, de norma de eficácia limitada, ou seja, para sua aplicação é necessária aprovação de lei regulamentando a avaliação periódica de desempenho, no caso, o Poder Legislativo deve editar Lei Complementar, com quórum de aprovação qualificado. Tal lei nunca foi editada pelo Congresso Nacional. Então, na prática, apenas duas hipóteses de demissão são efetivas, o PAD e a sentença judicial, da qual não caiba mais recurso.

A PEC pretende facilitar a implantação da avaliação periódica de desempenho, autorizando sua regulamentação por simples lei ordinária, o que teria reflexos, inclusive, para os servidores já investidos em cargos públicos efetivos.

Feito esse introito, impende perguntar: então o que deseja a reforma administrativa em relação à estabilidade?

Para responder essa pergunta precisamos entender como serão (se aprovada como enviada) as formas vínculo com serviço público propostas pela PEC 32/20. Conforme acentuado na justificativa da PEC em comento, baseia-se em três grandes orientações: (a) modernizar o Estado, conferindo maior dinamicidade, racionalidade e eficiência à sua atuação; (b) aproximar o serviço público brasileiro da realidade do país; e (c) garantir condições orçamentárias e financeiras para a existência do Estado e para a prestação de serviços públicos de qualidade.

Nesse sentido, para facilitar a compreensão do leitor, abaixo quadro sintético das cinco formas de vínculo no serviço público propostas:

FORMA DE VÍNCULO CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS

Experiência

(Art. 37, II-A, b)

  • Existência de período de experiência efetivo como etapa do concurso para ingresso em cargo por prazo indeterminado ou em cargo típico de Estado;
  • Marco bem delimitado para avaliação mais abrangente e tomada de decisão quanto à admissão do servidor em cargo que compõe o quadro de pessoal de caráter permanente, a depender de classificação, dentro do quantitativo previsto no edital do concurso público, entre os mais bem avaliados ao final do período.

Por prazo determinado

(art. 37, §8º, IV)

Possibilitará a admissão de pessoal para necessidades específicas e com prazo certo, a atender:

  • Necessidade temporária decorrente de calamidade, de emergência, de paralização em atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço;
  • Atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; e

Atividades ou procedimentos sob demanda.

Por prazo indeterminado

(art. 37, II-A)

Para o desempenho de atividades contínuas, que não sejam típicas de Estado, abrangendo atividades:

  • Técnicas;
  • Administrativas ou
  • Especializadas.

Carreiras típicas de estado

(art. 37, II-B)

Com garantias, prerrogativas e deveres diferenciados, será restrito aos servidores que tenham como atribuição o desempenho de atividades que são próprias do Estado, sensíveis, estratégicas e que representam, em grande parte, o poder extroverso do Estado.

Liderança e assessoramento

(art. 37, V)

Corresponderá não apenas aos atuais cargos em comissão e funções de confiança, mas também a outras posições que justifiquem a criação de um posto de trabalho específico com atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. 

Extraímos desse pequeno quadro comparativo que a forma de vínculo por experiência, como o próprio nome indica, será um período preestabelecido para os servidores que terão vínculo por prazo indeterminado ou de carreiras típicas de Estado. Nesse aspecto, assemelha-se ao estágio probatório, no qual os recém ingressos no serviço público são avaliados quanto aos requisitos necessários ao desempenho do cargo. 

Por outro lado, também está sendo proposto o vínculo por prazo determinado, visando atender necessidade temporária decorrente de calamidade, de emergência, de paralização em atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço, atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos e atividades ou procedimentos sob demanda. 

Nota-se, logo de início, que a pretensão aqui é alargar a modalidade de vínculo por prazo determinado, que na atual previsão constitucional é excepcional, nos termos do art. 37, IX, da CF/88 [i]. As hipóteses de contratação por tempo determinado estão previstas na legislação infraconstitucional, mais especificamente na Lei n. 8.745/93.

Os contratados por tempo determinado, evidentemente, não farão jus à estabilidade. Uma vez passado o período previsto ou mesmo a necessidade justificante da admissão, deverão ser exonerados (não demitidos, pois a demissão denota penalidade). O risco dessa modalidade de vínculo salta aos olhos, pois caso aprovada a PEC não faltará contração temporária pelo prazo do mandato do governante, ampliando a possibilidade de admissão por apadrinhamento. E mais, substituindo gradativamente os servidores admitidos por prazo indeterminado. 

A PEC prevê, ainda, o vínculo para cargos de liderança e assessoramento para atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. Outro alargamento dos atuais cargos de direção, chefia ou assessoramento, na medida por liderança entende-se a habilidade de motivar, influenciar, inspirar e comandar um grupo de pessoas, a fim de atingir um objetivo. Como se percebe, termo bastante subjetivo, que pode ser utilizado como uma espécie de “coringa” das nomeações. Na espécie, aplicável a Súmula Vinculante n. 13 do STF: 

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. 

No vínculo por prazo indeterminado, a natureza do serviço é técnica, administrativa ou especializada e de prestação contínua, caracterizando-se por demandar quantitativo razoável de pessoas, e por não ser típica atividade de Estado. 

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3. O que são carreiras típicas de Estado?

Finalmente, temos as carreiras típicas de Estado, que demandam prerrogativas e deveres diferenciados, restritas aos servidores que tenham como atribuição o desempenho de atividades próprias do Estado, sensíveis, estratégicas e que representam o poder extroverso do Estado.

Porém, o que vem a ser poder extroverso do Estado? É justamente a possibilidade que o Estado tem de, unilateralmente, constituir obrigações para terceiros. É de se dizer, extravasando os seus limites internos. O poder extroverso do Estado é estudado no âmbito do ato administrativo, vinculado ao atributo da imperatividade, o qual decorre da supremacia do interesse público e do interesse geral (Lei n. 9.794/99, art. 2º). A respeito de tal atributo, Celso Antônio Bandeira de Melo [ii] nos ensina que:

Decorre do que Renato Alessi chama de ‘poder extroverso’, que permite ao Poder Público editar provimentos que vão além da esfera jurídica do sujeito emitente, ou seja, que interferem na esfera jurídica de outras pessoas, constituindo-as unilateralmente em obrigações. (grifo nosso)

Conforme lembra Gonçalves[iii], exemplo do poder extroverso está na possibilidade de o Estado regulamentar, fiscalizar e fomentar, dentre outras. É salutar lembrar o disposto no art. 13 da Lei n. 9.784/93, que impede a delegação de atos próprios de Estado, ou seja, desse dispositivo legal podemos extrair a medida das atividades típicas das carreiras de Estado. Confira o que diz a Lei n. 9.784/99:

Art. 13. Não podem ser objeto de delegação:  

I – a edição de atos de caráter normativo;

II – a decisão de recursos administrativos;

III – as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade.

Nesse sentido, a fiscalização de impostos, do cumprimento de normas sanitárias, das normas de trânsito, do controle do meio ambiente, emissão de passaportes e, principalmente, a atividade policial em sentido estrito são reflexo da imperatividade do Estado, portanto, atividades vinculadas ao seu poder extroverso. 

Citam-se como exemplos de carreiras típicas de estado os delegados de polícia, as funções essenciais à justiça, como a advocacia pública, os servidores da Controladoria-Geral da União, os auditores fiscais e dos tribunais de contas, os peritos criminais, dentre outras.

De outra banda, servidores que não utilizam, precipuamente, em suas funções o atributo da imperatividade dos atos administrativos, tais como professores, técnicos ministeriais, servidores da administração tributária, dos ministérios, da administração pública em geral sem poder de decisão, sob essa ótica, não fazem parte, no nosso entendimento, das carreiras típicas de estado. 

O ponto-chave para identificá-los consiste em saber se suas atribuições podem ser delegadas ou terceirizadas, ou mesmo se são exercidas pela iniciativa privada. São atividades contínuas, que não sejam típicas de Estado, abrangendo as técnicas, administrativas ou especializadas e que envolvem um quantitativo maior de pessoas. Assim, provavelmente serão admitidos ou por tempo determinado ou por tempo indeterminado, a depender das circunstâncias. 

4. Qual a natureza jurídica das carreiras policiais?

Delineado o alcance da expressão carreiras típicas de Estado, que grande impacto terá caso aprovada a PEC 32/2020, faz-se necessário analisar a natureza das carreiras policiais. Infere-se, sem grande esforço, que os servidores dos órgãos de fiscalização, dentre os quais se incluem os órgãos de segurança publica, desde que tenham poder decisório, expressão do exercício de autoridade (Lei n. 9.784/99, art. 1º, § 2º, III), fazem parte das carreiras típicas de Estado. 

Corroborando esse entendimento, o STF vem entendendo pela inconstitucionalidade de admissão de policiais temporariamente. Conforme a Corte Suprema:

O postulado do concurso público traduz-se na necessidade essencial de o Estado conferir efetividade a diversos princípios constitucionais, corolários do merit system, dentre eles o de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (CRFB/88, art. 5º, caput). 2. A Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, conquanto instituições públicas, pressupõem o ingresso na carreira por meio de concurso público. (…) No caso sub examine, não há qualquer evidência de necessidade provisória que legitime a contratação de policiais temporários para o munus da segurança pública, mercê de a lei revelar-se abrangente, não respeitando os pressupostos básicos de norma que almeja justificar a sua excepcionalidade frente à regra da Carta Magna (CRFB/88, art. 37, II e IX) (…)In casu, a Lei nº 17.882, de 27 de dezembro de 2012, do Estado do Goiás, ao instituir o Serviço de Interesse Militar Voluntário Estadual (SIMVE) na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás, instituiu uma classe de policiais temporários, cujos integrantes, sem o indispensável concurso público de provas e títulos, passam a ocupar, após seleção interna, função de natureza policial militar de maneira evidentemente inconstitucional. 9. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 5163, Relatora: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 08/04/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-091 DIVULG 15-05-2015 PUBLIC 18-05-2015)

Por óbvio, não se pode conceber o livre exercício legal da atividade policial, seja ela exercida por quaisquer servidores dos órgãos de segurança pública, sem a mínima garantia de estabilidade. 

Oportuno mencionar a jurisprudência do STJ [iv] (REsp 817.534/MG), que estabelece a decomposição do Poder de Polícia em quatro vetores: são eles: normatização, sanção de polícia, consentimento e fiscalização. Em análise a situação fática relacionada à fiscalização de trânsito, o Tribunal da Cidadania entendeu que apenas no que tange à fiscalização (nesse caso, eletrônica e por radares) e ao consentimento (no caso, emissão de carteiras de  habilitação), há possibilidade de delegação. Tal precedente, todavia, trata da polícia administrativa sobre bens e serviços, e mesmo assim a delegação é limitada.  No que diz respeito ao poder de polícia decorrente do Direito Penal, inimaginável delegação de qualquer atividade. Sobre essa diferenciação, especialmente no que diz respeito à polícia judiciária, veja a opinião de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[v]:

Analisando os parâmetros de distinção comumente apresentados pelos administrativistas, filiamo-nos à corrente dos que consideram mais relevante verificar a natureza do ilícito que a atividade estatal visa a impedir ou reprimir. Será atividade de polícia administrativa a que incida na seara das infrações administrativas e atividade de polícia judiciária a concernente ao ilícito de natureza penal. O exercício da primeira esgota-se no âmbito da função administrativa, enquanto a polícia judiciária prepara a atuação da função jurisdicional penal. (…) cumpre observar, ainda, que a polícia administrativa é exercida sobre atividades privadas, bens ou direitos, enquanto a polícia judiciária incide diretamente sobre pessoas.  Por fim, a polícia administrativa é desemprenhada por órgãos administrativos de caráter fiscalizador, integrantes dos mais diversos setores de toda a administração pública, ao passo que a polícia judiciária é executada por corporações específicas (a Polícia Civil e a Polícia Federal e, ainda, em alguns casos, a polícia militar, sendo que esta última exerce também função de polícia administrativa). Grifo nosso.

Assim, à luz do entendimento dos Tribunais Superiores e da doutrina especializada, não há que se falar em delegação da atividade de polícia judiciária, preparatória da atividade jurisdicional penal do estado. Não há que se falar, ainda, em policiais temporários, por afronta direta ao texto constitucional e às garantias da própria sociedade. 

Se atualmente, não raro, temos casos de perseguições, por exemplo, a Delegados de Polícia que investigam atos de corrupção, o crime organizado, acarretando em transferências indevidas da localidade de seu domicílio, demissões, ajuizamento de ações temerárias, tudo isso para coibir a atividade policial, nesse aspecto, eminentemente investigativa, não é difícil imaginar o que ocorreria se tais servidores fossem considerados pelo texto constitucional com temporários ou mesmo por tempo indeterminado, mas não assegurado o instituto da estabilidade.  Seria intentar na contramão da doutrina moderna, que defende, inclusive, a extensão das garantias da inamovibilidade, vitaliciedade e independência funcional ao Delegado de Polícia. Por todos, o insigne Ferrajoli (2002, p. 617):

Em particular, a polícia judiciária, destinada à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender. 

Uma questão controversa, mesmo reconhecendo as carreiras policiais como estáveis, será a possibilidade de delimitação dos cargos das carreiras policiais com poder de decisão e, por isso, reconhecidas como típicas de Estado. Assim, talvez, haja alguma discussão a respeito da concessão somente às chefias das Polícias dessa prerrogativa/responsabilidade. Por exemplo, seria o Soldado da Polícia Militar, o Agente de Polícia Civil o Federal carreiras típicas de Estado ou estariam enquadrados como servidores públicos por tempo indeterminado? Será que somente os Oficiais Militares e os Delegados de Polícia seriam carreiras típicas de Estado?

Embora a PEC 32/20 preveja no art. 41-A, parágrafo único, que será “vedado o desligamento dos servidores de que trata o art. 39-A, caput, incisos I a IV, por motivação políticopartidária”, ao nosso sentir, tal dispositivo não se mostra suficiente para afastar dessas carreiras a possibilidade de perseguições políticas e, também, de potencial desarticulação de investigações e de operações policiais pela pressão a tais profissionais, inclusive por meio da demissão. Nesse sentido, todas as carreiras policiais são típicas de Estado, pois são longa manus ou agentes da autoridade no exercício de suas funções.

Portanto, a finalidade do serviço público, como expressão do bem da coletividade, aliada à natureza do exercício das funções das carreiras policiais reflete na prerrogativa/responsabilidade das carreiras típicas de do poder estatal.

5. Considerações finais

Altercado nesse entendimento, não existe dúvida que a atividade policial sobre pessoas é indelegável, competência exclusiva do Estado, pois deriva, necessariamente, do seu poder extroverso.  

Destarte, qualquer rearranjo do texto constitucional provocado pela PEC 32/2020 deverá considerá-la nesses termos, sob pena de insanável vício de constitucionalidade. 


Sobre o autor: Paulo Reyner Camargo Mousinho é Delegado de Polícia Civil no Estado do Amapá, instrutor da Academia Integrada de Formação e Aperfeiçoamento do Amapá (AIFA), professor convidado da pós-graduação de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia do Amapá (ESA/AP), professor de cursos preparatórios para concursos públicos, administrador do site Justiça & Polícia (juspol.com.br), autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial pela editora Clube de Autores, coautor do livro Tratado Contemporâneo de Polícia Judiciária pela editora Umanos, autor de diversos artigos jurídicos sobre temas correlatos. Especialista em Política e Gestão em Segurança Pública pela Escola de Administração Pública do Amapá (EAP) em parceria com a Universidade  Estácio de Sá. 


6. Referências:

[i] CF/88: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998):I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;        (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998); II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; 

[ii] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26a. ed., rev e atual. até a EC 57 de 18.12.2008. Editora Malheiros, 2009, página 413.

[iii] GONÇALVES. Rodrigo Alan Coutinho. A imperatividade como atributo do ato administrative e do poder extroverso do Estado. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40511/a-imperatividade-como-atributo-do-ato-administrativo-e-o-poder-extroverso-do-estado. Acesso em: 10/09/2020. [iv] STJ. REsp 817.534/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 10/11/2009.

[v] ALEXANDRINO, Marcelo. Vicente Paulo. Direito administrative descomplicado. 20 ed. Rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2012. p 239/240. BRASIL. Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm.  Acesso em 10/09/2020.

[i] BRASIL. Proposta de Emenda Constitucional n. 32, de 03 de setembro de 2020.  Altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2262083 Acesso em 10/09/2020.Esse conteúdo foi extraído do site Justiça & Polícia. Os textos e imagens podem ter direitos autorais. www.juspol.com.br.Por Paulo Reyner Camargo Mousinho Resumo: 

 

 

Sobre o autor
Paulo Reyner Camargo Mousinho

Delegado de Polícia Civil do Estado no Amapá. instrutor da Academia Integrada de Formação e Aperfeiçoamento do Amapá (AIFA). professor convidado da pós-graduação de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia do Amapá (ESA/AP). Professor de cursos preparatórios para concursos públicos. Administrador do site Justiça & Polícia (juspol.com.br), autor do livro Peças e Prática da Atividade Policial pela editora Clube de Autores, coautor do livro Tratado Contemporâneo de Polícia Judiciária pela editora Umanos, autor de diversos artigos jurídicos sobre temas correlatos. Especialista em Política e Gestão em Segurança Pública pela Escola de Administração Pública do Amapá (EAP) em parceria com a Universidade Estácio de Sá. Presidente do Conselho Editorial da Revista Justiça & Polícia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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