Alcance da interpretação axiológica do art. 9º, Inciso III da Lei 8666/93

12/09/2020 às 17:17
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A condição de servidor público não é impeditivo por si só na contratualização com órgão público, devendo se analisar caso a caso para verificar se há violação nos princípios que regem o instituto dos contratos da administração pública e lei das licitações

Alcance da interpretação axiológica do art. 9º, Inciso III da Lei 8666/93

A interpretação axiológica é uma importante ferramenta aos juristas, uma vez que busca explicitar os valores que serão concretizados pela norma, e a análise do artigo 9º., em seu inciso III da Lei 8.666/93, deve ser analisado quanto a possibilidade ou não de contratação de empresa sem fins lucrativos cujo seus diretores são servidores públicos na mesma esfera de governo, municipal, estadual ou federal.

Assegurando os princípios constitucionais e do direito administrativo, temos a seguinte redação do artigo da Lei das Licitações civis: “Art. 9º.  Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários: III - servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação”.

O ordenamento jurídico é uma ciência que utiliza da hermenêutica jurídica para a interpretação da norma jurídica, de suma importância para o Direito e a própria norma. É plausível estabelecer que, sem interpretação, não há a norma; sem norma, não há interpretação; sem norma e sem interpretação, não surge o Direito. Segundo Freud, “interpretar significa encontrar um sentido oculto em algo” (MARMOR, 2004).

Assim, no mundo jurídico, a hermenêutica é usada para a interpretação e aplicação normativa, a fim de que a norma seja interpretada conforme o fato ocorrido e, assim, proporcione uma responsável aplicação do Direito (MELLO, 2010).

Nesta vertente, interpretar friamente o art. 9º., inciso III da Lei 8.666/93, sem buscar subsídios dos princípios norteadores da norma e aplicação do caso concreto é um equívoco, e o presente artigo busca demostrar que não existe nenhuma vedação na contratualização de entidade beneficente cujo diretor também é servidor público na mesma esfera de governo.

Primeiro fato a ser observado é se o servidor, diretor de determinada entidade sem fins lucrativos, possui ou não cargo de gestão no ente público, no qual seu poder de decisão e informações privilegiadas possam alcançar quanto forma da pactuação e suas condições, visto que este é o objetivo da proteção da norma em questão, e não ocupando este servidor, função de decisão, não há em se falar de ocorrer violação aos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade.

Outro fator a ser observado, é quanto ao órgão público contratante. Neste ponto o confronto está no vínculo do servidor, se há correspondência. Quando o inciso III do artigo 9º. proíbe a participação do servidor na contratatualização, esta se refere restritamente ao órgão contratante e não toda esfera municipal, estadual ou federal respectiva. Assim, teremos por exemplo, uma servidora enfermeira de um hospital público estadual, que por sua vez é diretora de uma entidade filantrópica na área de saúde, que resolve participar de um pregão para prestar serviços a Secretaria Estadual de Saúde. Apesar dela ser servidora estadual, como o órgão contratante não é o mesmo do vínculo da servidora, seria totalmente possível a participação da entidade no certame.

Importante destacar que na administração pública se enquadram os conceitos de administração direta (o próprio ente) e indireta (autarquias, empresas públicas, fundações públicas, sociedade de economia mista) para facilitar as distinções.

No mesmo sentido do acerto administrativo encontra-se o julgado proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOIÁS: "O impedimento de participação em licitação pública previsto no art. 9º, inciso III, da Lei nº 8.666/93, refere-se somente a servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação. Sendo os servidores lotados em órgão da administração direta (secretaria da fazenda municipal), não há impedimento em contratar com ente da administração indireta, em relação ao qual não possuem qualquer vínculo, não se verificando, no caso, lesão a princípios da administração pública. Apelo conhecido e improvido." (Ap 62317-77.2007.8.09.0029, rel. Des. ROBERTO HORÁCIO DE REZENDE, DJ 07/11/2012, p. 137).

De igual forma, uma instituição filantrópica, que não distribui lucros, atua de forma complementar ao ente público nos termos do artigo 199,  § 1º  da Constituição Federal, não havendo conflito de interesses, muito pelo contrário, convergem entre si.

A própria Carta Magna, em seu artigo 37, quanto aos princípios da administração pública, em seu inciso V, impõe apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento do servidor para caracterizar as funções de confiança do agente público:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

...

V -  as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento;

A finalidade da norma (art. 9º, Inciso III da Lei 8666/93) é impedir que o sujeito se beneficie da posição que ocupa na Administração Pública para obter informações privilegiadas em detrimento dos demais possíveis interessados, interferindo de modo negativo na lisura da contratualização.

MARÇAL JUSTEN FILHO ensina que: “é necessário indagar a razão que conduziu a Lei a vedar a participação ou contratação relativamente a dirigente do órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação. Certamente, não se trata da mera condição de servidor público. Tanto é verdade que a vedação não abrange todo e qualquer servidor público. Somente apanha o sujeito vinculado ao órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação”. (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Ed. Dialética, 12ª edição, pág. 156).

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Na pior das hipóteses, mesmo o órgão contratante sendo o mesmo do vínculo do servidor, resgatando o exemplo supracitado da enfermeira, esta não exercendo no órgão público posição de chefia de direção, chefia e assessoramento a luz do Artigo 37 da Constituição Federal, há entendimentos que não violaria o inciso III do artigo 9º da Lei 8.666/93.

Por fim, cabe lembrar que o Código Civil dedica um capítulo próprio para a disciplina das associações (arts. 53 a 61) e outro para regular as fundações (arts. 62 a 69). Define como associação o ente acometido de personalidade jurídica própria, formada pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos (art. 53 do Código Civil). Já “a fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência” (art. 62, parágrafo único). Essas são as duas espécies de pessoas jurídicas de direito privado que desenvolvem suas atividades sociais sem o objetivo de distribuir lucros a seus integrantes, visto que todos seus rendimentos são aplicados para as suas finalidades estatutárias.

Conclui-se assim, pela exegese do inciso III do artigo 9º da Lei de Licitações, não incide a vedação legal ali prevista na hipótese do servidor não possuir vínculo direto com o órgão público contratante, por não se configurar afronta ao interesse maior que o instituto dos contratos da administração pública e lei das licitações visa proteger, que é a moralidade dos negócios administrativos, devendo se analisar cada caso ao fato concreto.

MARMOR, Andrei. Direito e interpretação. 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MELLO, Bianca Vieira. Hermenêutica: a origem, significado e atuação. 2010. Disponível em: <www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5707/Hermeneutica-origem-significado-e-atuacao>. Acesso em: 29 out. 2017.

Sobre o autor
Maycon Truppel Machado

Advogado com OAB/SC 15.911, Pós-Graduado em Gestão e Direito Empresarial, Mestrando em Resolução de Conflitos e Mediação, Diretor Jurídico da Fundação Pró-Rim, Membro do Sindicato dos Hospitais de Santa Catarina e Auditor do Tribunal de Justiça Desportiva de SC

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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