Antes de adentrar na temática, tenho a convicção de ser necessário explicitar que o termo “marco legal” não é a forma correta de se referir à Lei nº 14.026 de 15 de julho de 2020. A ementa da mencionada Lei inicia estabelecendo que: “Atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei Nº 9.984 de 17 de julho de 2000...” e outras Leis que envolvem a temática do saneamento básico. Estamos a tratar, portanto, de uma atualização legislativa de diversas legislações, a qual o Art. 1º da Lei 14.026/2020 foi assim sancionada:
“Esta Lei atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, a Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003, para alterar o nome e as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos, a Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, para vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata o art. 175 da Constituição Federal, a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País, a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, para tratar de prazos para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, a Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole), para estender seu âmbito de aplicação a unidades regionais, e a Lei nº 13.529, de 4 de dezembro de 2017, para autorizar a União a participar de fundo com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos especializados.”
Assim caracteriza-se por ser este diploma legal uma atualização de Leis vigentes.
Outro ponto que julgo relevante mencionar precipuamente é que toda análise explanada neste momento visa pormenorizar minha vivência prática na engenharia, aliado ao conhecimento técnico legislativo e empresarial e assim também considero relevante iniciar este artigo mencionado antes a definição conceitual sobre o que envolve o termo “Saneamento Básico”, o qual contempla uma enormidade de sistemas, ou seja: abastecimento de água, esgotamento e tratamento sanitário, limpeza urbana, drenagem, manejo de águas pluviais, lixo (resíduos sólidos) e suas destinações. Soma-se ainda como princípios fundamentais a universalização do acesso de forma adequada à saúde pública, à conservação dos recursos e à proteção ao meio ambiente.
Superando essas preliminares mencionadas, é tempo de objetivamente mencionar a expectativa de mudança que se espera com essa nova legislação atualizada que vem recheada pela mídia e pela política como definitiva solução do descaso do poder público nessa área para com a sociedade e isto não é bem a verdade.
POR QUE A NOVA LEI NÃO É A SOLUÇÃO DO SANEAMENTO BÁSICO?
É uma forte afirmativa, porém acredito que a menção conceitual do termo saneamento básico já é capaz de considerar indiscutivelmente que uma Lei de atualização de Legislação não será competente a mudar uma realidade de descaso de décadas de necessidades básicas de sobrevivência que atingem principalmente os mais vulneráveis em matéria de saneamento básico em nosso país, quando este envolve uma enormidade de sistemas.
É mais uma vez um começo, e um bom começo, mas ainda distante em ter essa falta de acesso à água, esgoto tratado, sistema de drenagem eficiente e destinação correta dos resíduos sólidos por exemplos, como resolvidos.
Para compreender o tamanho do problema, fruto do desleixo da Administração Pública de décadas que nos levaram a essa situação dramática de quase todos os municípios brasileiros, os quais apesar da existência de Leis anteriores, que continham imposições e diretrizes nacionais para o saneamento, nada disso foi enfrentado. Sempre a política nefasta e a conivência de órgãos de controle sobrepuseram na implementação de ações e os graves problemas só se acumularam.
Imaginar essa lei como solução será frustrante mais uma vez, com certeza. Não que esta legislação não contenha pontos positivos, os quais identifico vários que nos dão esperança e na sequência irei mencionar alguns extremamente importantes, mas em verdade a convicção é que será necessário decisão firme em transformar isto em uma “política de estado” e enfrentar os graves problemas estruturais de implementação.
Como já destaquei no início e a própria Lei menciona em seu art.1º, há 13 (treze) anos foram promulgadas as diretrizes nacionais para o saneamento (Lei nº 11.445/2007) e quase nada avançou. Os dados de Organização Mundial de Saúde (OMS) são impactantes e mencionam que neste país 35 milhões de pessoas não tem acesso à água tratada e metade da população não possui tratamento de seu esgoto nem coleta de lixo. Portanto, Saneamento Básico, é medida que se impõe, necessita efetividade, é urgente e só o tema estar em evidência já provoca mais uma vez um alento de esperança que espero ainda assistir.
O QUE MENCIONA A NOVA LEGISLAÇÃO NA PRÁTICA?
a) Atribuição de competência à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
A partir de agora, essa agência reguladora atuará no âmbito do saneamento básico de forma completa. Terá competência para edição de normas, regulação, fiscalização, diretrizes, conferindo uniformidade regulatória ao setor, entre outros pontos, possibilitando segurança jurídica aos Entes privados e Públicos contratantes. Como forma de estímulo, tais normas editadas, se atendidas, permitem contratação de financiamento com recursos da União.
Para tal abrangência e amplitude a Lei nº 14.026/2020 possui vários artigos em que modifica as legislações anteriores e assim destaco a nova redação do Art. 1º e do Art. 3º da Lei nº 9.984 de 17 de julho de 2000, que assim se atualizou:
“Art. 1º Esta Lei cria a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), entidade federal de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) e responsável pela instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, e estabelece regras para sua atuação, sua estrutura administrativa e suas fontes de recursos. (Redação dada pela Lei nº 14.026, de 2020).
Art. 3º Fica criada a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh), com a finalidade de implementar, no âmbito de suas competências, a Política Nacional de Recursos Hídricos e de instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico. (Redação dada pela Lei nº 14.026, de 2020).”
Senhores, gostaria de até estar equivocado, mas acreditar que no nosso grande País as agências reguladoras são capazes de gerir uma Política de Estado nessas proporções como é e necessita ser o tratamento a ser dado ao Saneamento Básico, se for positivo será uma grande e grata surpresa.
Agência reguladora em nosso País tem a pecha de ter em sua direção atendida como “cabide de emprego” para políticos amigos que não se elegeram. Nenhuma aptidão técnica é exigida e assim na sua grande maioria a gestão principal tem trazido mais problema que soluções.
A título de exemplo a própria ANA, como agência regulamentadora que já era (sem tantos atributos incluídos por essa nova lei), já possui 20 (vinte) anos de implementada, e a situação continuou caótica. Não temos sequer uma política Nacional de Recursos Hídricos consolidada e atuante, o que demonstra que essa agência tem deixado muito a desejar.
Esperança sempre há e a abertura imposta pela nova Lei de participação efetiva dos entes privados ou de empresas públicas desde que demostrem capacidade técnica e financeira para prestar o serviço e avançar na ampliação destes com metas ousadas já é um bom começo.
Por fim para este ponto, só nos resta ver cumprido o prazo de 90 (noventa) dias para regulamentar a Lei pela agência no qual será uma sinalização positiva para mais uma vez ter esperança que esse grande país sairá da situação dificultosa e caótica que se encontra quando estou a falar de Saneamento Básico.
b) As metas estabelecidas para universalização dos sistemas
Como não poderia ser diferente, a nova legislação vem impondo metas a serem atendidas. São várias a depender do serviço a ser disponibilizado à população. Em relação aos mais fundamentais, destacam-se o acesso a água potável que deverá atender 99% da população e em relação a coleta e tratamento de esgoto onde o percentual é de até 90%, tudo isto a ser realizado até a data de 31/12/2033.
Factível é, mas difícil e provavelmente não obedecido será. Uma pena, não quero ser pessimista, mas o “papel” aceita tudo e como advogado e engenheiro a concretude da ação e da execução tem seu ritmo, somado ao excesso de burocracia e os exemplos anteriores demostram o afirmado.
No anterior modelo de contratação, os municípios contratavam os serviços das companhias de saneamento estadual em acordos diretos, mas praticamente todos os investimentos foram pífios ou quase inexistentes. Com a nova lei os municípios serão obrigados a abrir licitações para que empresas públicas ou privadas segundo os critérios estabelecidos (pela ANA) mediante demonstração de capacidade técnica e financeira aliado ao comprometimento com as metas de universalização até 2033 devem obrigatoriamente serem expressos quando firmados.
É uma intenção muito bem vinda e há muito esperada, principalmente por toda iniciativa privada, somado à promessa de financiamento da União. Se realizado, vai ao encontro do momento de necessidade de grande geração de emprego e renda que passa o País.
Em relação aos lixões, a Lei nº 12.305/2010 fixava que a destinação ambiental adequada se expira em 31/12/2020 e nem todas as cidades conseguiram atender. Excetuam-se os municípios com planos intermunicipais de gestão integrada aprovados que nesta nova Lei foi estendido até 31/08/2024. Neste item a expectativa é que efetivamente possam esses sistemas serem implantados.
A legislação recém aprovada instituiu as metas e colocou a responsabilidade na agência reguladora que mediante ações de imposição de sanções pode vir até a declarar de caducidade da concessão. É esperar que desta vez as coisas funcionem.
c) Disposições contratuais mínimas e procedimentos licitatórios
O novo marco regulatório, se assim podemos chamar, estabeleceu expressamente que a prestação dos serviços de saneamento básico exige concessão mediante previa licitação (art. 175 da CF) e assim exceto os contratos vigentes que terão seus prazos respeitados (porém com as metas e imposição dessa Lei), o procedimento licitatório se torna obrigatório.
Os contratos de concessão novos estabelecidos devem obedecer à Lei própria (Lei Federal nº 8.987/1995) adicionados de clausulas relativas à meta de expansão e de qualidade, as fontes de receitas, metodologia de cálculo de eventual indenizações por bens reversíveis, repartição de riscos entre outros.
É também necessário garantir a continuidade dos serviços e sua necessária expansão, assim a nova Lei foi firme em exigir comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada e sua capacidade de autogerir, seja recursos próprios ou financiamentos, para que se realize a viabilidade da universalização dos serviços contratados e postos à disposição da sociedade.
Sobre os procedimentos licitatórios, todo cuidado é pouco e destaco que não se deve adentrar nesses serviços de execução futura com o foco exclusivo na busca desenfreada do menor preço. Este não pode ter caráter absoluto, sob pena de continuar o calvário de obras inconclusas ou de péssima qualidade, que no final quem perde é toda sociedade. O objetivo a ser perquirido deve ser a melhor técnica e o preço justo somado a um acompanhamento eficiente.
d) A necessária busca do fazer correto
Ética e compliance de quem vai adentrar nesse mercado será imprescindível com bem diz a especialista Dra. Aurora Barros da Comissão de Infraestrutura da OAB/PE. Se de um lado esse incentivo de mercado aos engenheiros sanitaristas e suas empresas de engenharia deve ser comemorado, por outro não menos importante que todo o setor de quem trabalha ou pode vir a trabalhar nos projetos e na execução deve se amparar no fazer bem feito, com qualidade e sem subterfúgio.
Quando mencionei compliance, veio a importância por exemplo do necessário acompanhamento “in loco” das atividades efetivas de implantação dos sistemas em todas as suas etapas. Melhor dizendo, a fiscalização da execução deve ser primorosa, comprometida com a melhor gestão, com o fazer correto e com a eficiente.
Saneamento Básico são sistemas de longa vida útil e merece estudos, projetos, execução e fiscalização de qualidade que garantam eficiência e funcionamento ininterrupto, e assim a engenharia deve ser exercida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É digno de registro o fato de ainda haver indefinições no novo modelo em razões dos vetos presidenciais que podem ser revistos pelo Congresso somado a regulamentação necessária, fazendo com que o marco inicial de uma forma ou outra não tenha ainda produzido efeitos. Destaque especial é a apreciação do veto presidencial ao art.16 (possibilidade de renovação por mais 30 anos dos contratos vigentes), pelo Congresso, que se derrubado fragiliza na partida da vigência a nova Lei, caracterizando postergar solução tão premente desejada pelos brasileiros que sonham com um Brasil melhor.
A nova política do saneamento ainda não se iniciou e deve ser cobrada por todos dia a dia, de forma a propiciar reduzir desigualdades na sociedade e se aplicado o estabelecido teremos o atrativo do investimento privado, somado a expectativa também dos órgão de fomento, a exemplo do Fundo Constitucional do Nordeste, gerido principalmente pelo BNB, que dentro de um ambiente competitivo somado aos empregos que serão gerados nesta época de extrema escassez destes será impactante até para alavancar a economia do país.
Assim apesar do inegável avanço que a Lei de atualização legislativa impôs ao Saneamento Básico, propondo a meta da universalizar água e esgoto até 2033 com a participação dos investimentos privados, tanto na gestão quanto na expansão, é de se observar com cautela o poder concedido à Agencia Nacional de Águas e Saneamento Básico, a qual terá que regular o setor e a fiscalização da tarifação e da disponibilização, tornando-se essencialmente preocupante a que condições os menos favorecidos terão acesso a esses serviços obrigatórios de serem concedidos pelo Estado.
Pensando sobre a ótica dessa discussão, a nova legislação já é de grande valia, pois aproximou a sociedade no conhecimento desse grave problema que é o Saneamento Básico e há muito a Câmara Brasileira da Indústria da Construção-CBIC e seus sindicatos vinculados lutam por melhores dias e soluções. A Engenharia Brasileira tem competência em realizar tal feito, o qual se efetivamente apoiado e enfrentado trará benefícios sociais a todos, como uma significativa melhora da saúde, acréscimo na geração de emprego e renda, na conservação dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente que tanto se precisa.
A esperança continua.