1PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE: DEVER SER
1.1Síntese Histórica da Prisão Brasileira
Os sistemas de punições sempre estiveram presentes na humanidade, aperfeiçoando-se ao longo da história. Para chegar ao modelo vigente perpassou- se muito tempo. Sobre o tema Michel Foucoult complementa “a forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais.
O período Brasil Colônia iniciou-se em 1500, explorado pela nação portuguesa. Por muitos anos foi o direito português que vigorou nas terras brasileiras. Antes mesmo do descobrimento, os índios já habitavam as terras brasileiras, porém com a colonização portuguesa, eram vistos como objetos e não tinham direitos.
Inicialmente, o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias. Cada capitania hereditária tinha um responsável, chamado de donatário. Eles possuíam poderes semelhantes aos dos senhores feudais: atuavam como legisladores e juízes.
A Carta Régia de 1769 menciona a primeira prisão brasileira instalada - uma Casa de Correção no Rio de Janeiro – e entre 1784 e 1788 construiu-se outra cadeia em São Paulo no estilo de grandes casarões, no mesmo espaço da Câmara Municipal.
“Na parte inferior existiam as salas destinadas ao aprisionamento, para onde eram levados os indivíduos que cometiam infrações, inclusive escravos, para aguardar as penas de açoite, multa ou o degredo, uma vez que não existia ainda a pena de prisão.
A partir do século XIX começaram a surgir prisões com celas individuais e oficinas de trabalho e uma arquitetura própria para a pena de prisão. O código penal de 1890 estabeleceu novas modalidades de prisão, considerando que não haveria mais penas perpétuas e coletivas, limitando-se as penas restritivas de liberdade individual a, no máximo, trinta anos, com a prisão celular, reclusão, prisão com trabalho obrigatório e prisão disciplinar”.
O desenho arquitetônico das construções das unidades prisionais, no decorrer da história deixa transparecer a concepção que se tem de como deve ser a punição do indivíduo criminoso.
A prisão como cárcere era aplicada apenas àqueles que estavam à espera de julgamento. Situação que perdurou durante as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas até após a proclamação da República, com introdução do Código Criminal do Império, em 1830.
O estatuto trouxe consigo conflitos de interesses, uma vez que além de abordar ideias iluministas não deixou de abarcar a escravidão.
A promulgação do Código Criminal estimulou a reforma prisional, trazendo a pena de prisão como medida predominante dente as existentes na época, e ainda atribuindo-a:
“Quais são os fins da prisão segundo os reformadores? Os fins de uma prisão vêm a ser três: custódia segura, reforma e castigo. Os antigos calabouços e os grilhões são considerados como expediente dos tempos bárbaros, e a violência física como meio de punição deve ser substituída pelo sistema de uma contínua vigia sobre o preso, invenção de um destes filósofos ardentes pela causa da humanidade. Um desses “gênios beneficentes” era o “venerável J. Bentham.”
Com o golpe militar de Marechal Deodoro da Fonseca, o governo criou o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, em 1890. Código este que tinha como centro do sistema penal a pena privativa de liberdade.
Já em 1891 foi promulgada a Constituição Republicana, trazendo consigo a função ressocializadora da pena de prisão e ainda limitando a pena de morte, que somente poderia ser aplicada em épocas de guerra. Então o regime desta era de correção, uma forma de regenerar aquele que delinquiu.
Em 1934 surgiu a Constituição da República Nova, que atribuiu à União completa competência para legislar sobre o sistema penitenciário. Em 1935 houve a edição do regulamento penitenciário, elaborado para tentar administrar as adversidades em que se encontravam as prisões. Em 1937 o quadro político brasileiro sofreu profundas alterações, acarretando modificações nas leis penais.
Em 1938, surgiu um novo Código Penal, no entanto, o projeto foi submetido a uma comissão revisora, sendo apresentado em 1940 e promulgado em 1942. Trouxe consigo o objetivo de estimular a regeneração do condenado. E embora publicado durante o regime autoritário, o Código está vigente até os dias de hoje.
1.2O Dever da Pena Privativa de Liberdade no Brasil
Para manifestar-se quanto à eficácia do sistema prisional brasileiro e se ela de fato cumpre o que propõe, implica em analisar a finalidade e o objetivo principal que a execução penal tem dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
Existem três grandes grupos de teorias justificadoras que buscam definir a função dessa sanção penal – pena privativa de liberdade. As teorias justificadoras são: as teorias absolutas, as relativas e ecléticas.
1.3Conceitos e fins da pena
Dentre as consequências jurídicas do delito, a mais considerável e importante é a pena, que consiste na restrição ou privação de bens jurídicos, baseada em lei e imposta pelas instituições jurisdicionais competentes.
Ainda, a pena é conceituada por Guilherme Nucci de forma esclarecedora: “É a sanção imposta pelo Estado, por meio de ação penal, ao criminoso como retribuição ao delito perpetrado e prevenção a novos crimes.”
Quanto às teorias justificadoras da pena, no tocante à teoria absoluta, tem como principal função que a pena sirva de retribuição do Estado ao sujeito que infringiu certa norma atingindo um bem jurídico protegido pelo Direito Penal.
Para Claus Roxin, as teorias trazem que a finalidade da pena é desvinculada de seus efeitos sociais e na figura da sanção penal um efeito de um mal, retribuindo, equilibrando e redimindo a culpa do agente infrator. Encontrando, então, a teoria absoluta, a justificação em si mesmo independente de qualquer efeito social ou utilitário, de modo que se compensem, o delito e a pena.
Nas palavras de Imannuel Kant, defensor da teoria retributiva, entende que a função social da pena pode ser conceituada como disposto a seguir:
A lei da punição é um imperativo categórico e infeliz aquele que rasteja através das tortuosidades do eudaimonismo, a fim de descobrir algo que libere o criminoso da punição ou, ao menos, reduz sua quantidade pela vantagem que promete [...].
Ou seja, o agente deve ser castigado pela única razão de ter delinquido. Sustenta ainda, Imannuel Kant, que a punição penal jamais pode ser infligida meramente como meio de promover algum outro bem a favor do próprio criminoso ou da sociedade civil. Precisa sempre ser a ele infligida somente porque ele cometeu um crime.
Neste mesmo sentido, Georg Wihelm Friederich Hegel, também defensor da teoria retributiva, descreve que o crime é a negação do direito e a pena é a negação do crime, assim sendo, seria a pena a reafirmação do direito.
A teoria relativa, em contrapartida, vê na pena o fim de prevenção à prática de novos delitos, seja pelo próprio sujeito (prevenção especial), seja pela sociedade (prevenção geral).
Luiz Regis Prado enxerga a teoria relativa como a pena que é idealizada como instrumento de utilidade social a fim de evitar a prática de novos delitos.
A execução Penal é responsável pelo acompanhamento do condenado no momento que este se encontra cumprindo uma pena privativa de liberdade, neste breve capitulo busca-se falar um pouco sobre o sistema prisional brasileiro, a pena privativa de liberdade e a lei de execução penal, e, partindo de uma experiência de visita ao cárcere comparar os instrumentos de reintegração social elencados na LEP com o cárcere.
1.4As penas restritivas e penas privativas
Como teria surgido o conceito de penas restritivas e em que contexto? Considera-se esta questão durante o trabalho, para tanto, exploram-se as características do sistema prisional brasileiro que nos dará parâmetros para contextualizar a questão do cumprimento de determinadas penas.
A Rússia teve o pioneirismo na matéria das penas alternativas, quando inaugurou, em sua legislação de 1926, a prestação de serviços à comunidade.
Assim, o centro de preocupações criminológicas voltou-se para um novo sistema de penas.
“Damásio E. de Jesus informa que as Nações Unidas não estiveram alheias ao problema: No 9º Congresso da ONU sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado no Cairo (abril/maio de 1995), como nos congressos anteriores (Gênova, 1955; Londres, 1960;
Kioto, 1970; Estocolmo, 1975; Gênova, 1975; Caracas, 1980; Milão, 1985; e Havana, 1990), recomendou-se a utilização da pena detentiva em último caso, somente nas hipóteses de crimes graves e de condenados de intensa periculosidade; para outros delitos e criminosos de menor intensidade deliquencial, medidas e penas alternativas. As Resoluções n. 8 e 10 do 6º Congresso da ONU (Caracas, 1980), em caráter prioritário, encareceram a urgência dessas medidas. E a Resolução n. 1/83, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, recomendou a aplicação daquelas duas Resoluções”.
Atualmente, tem-se uma classificação da criminalidade em mínima, média e máxima, de acordo com a periculosidade que ela representa; o Brasil tende a reservar a prisão à criminalidade máxima, quando o convívio social torna-se impraticável. Já os criminosos de nível mínimo ou médio têm outras penas em substituição à sanção detentiva.
“Data do final do século XIX a proposta do paradigma ressocializador em substituição ao retributivismo, como aponta Garland. Embora não tenha havido uma mudança substancial nos mecanismos punitivos, que apenas ajustaram-se a um novo projeto, o propósito declarado da pena não mais é o de retribuir o mal causado e, sim, o de reabilitar o indivíduo que cometeu o crime. Gradualmente, adotaram-se modalidades de sanção penal que estivessem em harmonia com essa tendência mundial. Azevedo retrata esse processo, oferecendo como exemplo a adoção na Inglaterra da prisão de fim de semana em 1948 e do trabalho comunitário em 1972, tendo sido essa medida seguida por outros países europeus como Portugal, França, Alemanha e Espanha”.
Em sentido amplo, a sociedade desde tempos imemoriais tem se preocupado em punir, de estipular penas e a cada transgressão correspondia um castigo.
“Despisciendo dizer que a pena impunha castigos desumanos a quem violasse os padrões até então existentes, não havendo, assim qualquer proporção entre a conduta delitiva e o castigo, já que valia, naturalmente, a vontade do mais poderoso”.
A Lei era, em qualquer agrupamento social, o império do mais forte. Obviamente, mandava quem podia. Com a Lei de Talião, insculpida no Código de Hamurabi, em 1680, A.C., surgiram lineamentos básicos que buscavam, ainda que perversamente, estabelecer uma relação de proporcionalidade entre o agir do infrator e a punição. Surge, a partir deste instante, a clássica teoria de “dar a vida por vida, olho por olho, dente por dente”. Era um tempo de suplícios inomináveis”.
Denise Cristina Mantovi Cera define pena restritiva de direitos como uma espécie de pena alternativa, que é aplicada como sanção penal imposta em substituição à pena privativa de liberdade consistente na supressão ou diminuição de um ou mais direitos do condenado. Os tipos de penas restritivas de direitos são “a prestação pecuniária, a perda de bens e valores, a prestação de serviço à comunidade – PSC ou a entidades públicas, a interdição temporária de direitos e a limitação de fim de semana, conforme preceitua o artigo 43 do Código Penal”. As penas restritivas de direito têm por características: a) Autonomia, pois não podem ser cumuladas com as penas privativas de liberdade; elas não são meramente acessórias; b) “Substitutividade - primeiramente o juiz fixa a pena privativa de liberdade, e depois, na mesma sentença, substitui pela pena restritiva de direitos”. Observe-se o seguinte:
“1. Na lei de drogas (Lei 11.343/06), a pena restritiva de direito é autônoma, mas não é substitutiva. Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
2. No artigo 78, do CDC (Lei 8.078/90), a pena restritiva de direitos pode ser cumulada com a pena privativa de liberdade. Art. 78. Além das penas privativas de liberdade e de multa, podem ser impostas, cumulativa ou alternadamente, observado o disposto nos arts. 44 a 47, do Código Penal: I - a interdição temporária de direitos; II - a publicação em órgãos de comunicação de grande circulação ou audiência, às expensas do condenado, de notícia sobre os fatos e a condenação; III - a prestação de serviços à comunidade”.
No Brasil, a partir do governo de Jânio Quadros, em 1961, iniciou-se a tentativa de se realizar uma reforma penal condizente com o panorama mundial de busca de alternativas à prisão, mas os provimentos XVI/65 e XXV/66, expedidos pelo Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, colocaram em prática o instituto da prisão-albergue, interrompendo os planos da reforma.
“A Moção de Nova Friburgo, resultado do evento promovido para discutir o anteprojeto de Código de Execuções Penais, anunciava que os problemas do sistema penitenciário deviam-se à ideia de que a pena de prisão era o “remédio indispensável ao tratamento do criminoso”. Esse documento ensejou a tese “Sugestões para a reforma do sistema de penas”, aprovada no I Congresso do Ministério Público de São Paulo em 1971.
Em 1973, a Moção de Goiânia, oriunda do Seminário de Direito Penal e Criminologia, incentivava a ampliação de medidas substitutivas à prisão. Apenas em 1977, com a lei 6.416, é que foram inseridos no sistema penal a prisão albergue, a prisão aberta, o livramento condicional e a ampliação do sursis, abrindo caminho para uma série de reformas penais que resultou na atual configuração do sistema de alternativas à prisão”.
Segundo Karyna Batista Sposato, pode-se afirmar que o empreendimento que resultou na lei 9.714/98 é a mesma lógica da retribuição, que objetiva, infringir algum sofrimento equivalente ao injustamente produzido. “O postulado sempre menos prisão, como denuncia Pavarini, desvirtua-se facilmente em sempre mais alternativas legais à pena privativa de liberdade, afastando, dessa forma, qualquer perspectiva coerente de descriminalização e despenalização”.
Segundo Miguel Reale Júnior, “a periculosidade adentra no sistema pela porta de trás [...] ao permitir que poderá haver a substituição da pena privativa por restritiva de direitos se a medida for socialmente recomendável”.
1.5Arquitetura das Prisões
Há um longo trajeto nos estilos arquitetônicos das construções das unidades prisionais ao longo do tempo, marcado pelas ideologias dominantes, mas, nesse trabalho, atém-se ao estilo de construção marcado pela função que a prisão foi ganhando com a sucessão de classes no poder. A história conheceu as fossas baixas e buracos ou gaiolas de madeira dos castelos medievais; das prisões romanas, onde os acusados esperavam pela pena, porque as sanções eram corporais ou capital; passando pela prisão instaurada pela Igreja Católica, na Idade Média.
Suzann Flávia Cordeiro de Lima afirma que tradicionalmente a pena consistia de castigos, privações, multas, mas ela só foi instituída como forma de sanção na sociedade cristã, mais especificamente, católica que instaurou um sistema de solidão e do silêncio com a prisão canônica. Dessa forma, castigava- se os monges que cometessem infrações, prendendo-os em celas localizadas em determinada ala dos mosteiros, onde deveriam pedir perdão a Deus, mediante penitência, oração e privação da liberdade temporariamente.
“A crise do sistema feudal e a migração da população dos campos para as cidades, as quais apresentavam cenário de pobreza e miséria na Europa, aumentou a criminalidade e forçou a construção de várias prisões, com o fim disciplinar e corretivo através do trabalho, especialmente pelos crimes cometidos contra o patrimônio que não se solucionariam com a pena de morte que, fatalmente, exterminaria milhares de delinquentes assolados pela fome”.
A população recolhida às prisões da Europa dos séculos XVI e XVII incluía vários perfis de pessoas, dentre as quais as que praticavam a prostituição, mera má conduta social ou simplesmente pessoas sem condições financeiras.
“Assim, no século XVI, aparecem na Europa prisões destinadas a recolher mendigos, prostitutas e pessoas de comportamento imoral, com o fim de segregá-los por um período. Posteriormente, no século XVII, surgiram instituições ditas casas de correção, para abrigarem mulheres, no entanto é importante salientar que os internos desses estabelecimentos não eram formalmente condenados judicialmente por prática de crimes, mas apenas tidos como de má conduta social”.
No século XIX, Jeremias Bentham (1748-1832) concebe o seu modelo arquitetônico panóptico (ótico=ver + pan=tudo), apresentado em forma radial, com torre no centro para um único vigilante (Diretor ou funcionário), que devido ao efeito centralizado da torre, podia observar todas as ações dos detentos em suas celas de frente transparente.
A década de 60 foi marcante para a definição da arquitetura prisional própria que o Brasil possui. Antes dessa época, os projetos eram copiados de arranjos arquitetônicos alienígenas.
Obedeciam ao partido tradicional da construção da penitenciária como “Poste Telegráfico”, que consistia num corredor central para o qual convergiam todas as alas construídas, perpendicularmente, a esse corredor.
“O Modelo Poste Telegráfico ou Espinha de Peixe, onde existe uma circulação fechada principal e a ela se interligam os diversos módulos, separados entre si, confluindo os fluxos para a circulação foi utilizado em várias penitenciárias americanas, apresentava um grande problema, pois permitia que os focos de motins, nascidos nas alas de celas, rapidamente, tomassem as demais alas de celas, de serviços e alcançassem a administração”.
Devido à dinâmica do fluxo dos detentos durante motins e rebeliões e ao risco que a Administração corria estando no interior da unidade prisional, o modelo evolui retirando a Administração de dentro para ocupar uma edificação isolada.
“No caminhar dessa evolução brasileira, foi tentada também a construção de estabelecimentos, seguindo o chamado “Estilo Pavilhonar”, onde os estabelecimentos eram construídos em pavilhões isolados que tinham a vantagem de isolar núcleos de revoltosos, mas detinham a desvantagem de dificultar o acesso, a manutenção e a segurança dos pavilhões.
Adota-se ainda o Modelo Panóptico, idealizado por Bentham em 1800, cujo controle apresentava-se centralizado, podendo observar todos os módulos de vivência. Estes módulos, por sua vez, dispõem-se de maneira radial ou circular para facilitar a visualização do controle. No entanto, esse sistema trata de uma filosofia de controle, na qual se encaixam todos os modelos apresentados, porque, de certa forma, todos apresentam a tentativa de ver tudo e controlar cada passo do usuário do espaço penitenciário.
Portanto, observa-se também a utilização do Panóptico na tentativa de visualização geral das unidades por um ambiente de controle central, que não segue os padrões radiais.
A prisionalização é uma ação de grande impacto na vida e no comportamento do condenado e sua natureza e extensão jamais poderiam autorizar a tese enfadonha de que constitui uma etapa para a liberdade, assim como se fosse possível sustentar o paradoxo de preparar alguém para disputar uma prova de corrida, amarrando-o a uma cama”.
Atualmente, o espaço carcerário precisa priorizar os direitos sociais do indivíduo, a educação, o trabalho, o convívio familiar, pois são considerados re- educativos e humanitários, colaborando na reestruturação de sua personalidade, habituando-o ao autodomínio e à disciplina social; o ideal é propiciar-lhe o aprendizado ou desenvolvimento de habilidades em determinadas profissões para servir à comunidade e nela reintegrar-se.
Suzann Flávia Cordeiro de Lima reconhece que a função da pena e da penitenciária sofreram diversas mudanças em seus conceitos no decorrer do tempo, pois a proposta de “Penitência”, por exemplo, perdeu totalmente o seu significado, mas por outro lado, a estrutura arquitetônica das unidades prisionais mantêm a relação entre o espaço e o indivíduo preso que propiciam sensações de castigo e penitência, o que na verdade ao invés de recuperar o preso pode incentivá-lo à revolta e violência características da população carcerária observada.
1.2.1 As Técnicas de Encarceramento na Idade Moderna
Warley Belo37, ao comentar a obra de Foucault Vigiar e Punir afirma que a grande mística que o pensador nos passa é ter constatado que o Iluminismo, como amplamente é conhecido, não foi um movimento “humanista”, pelo contrário, o Iluminismo era pior que o Antigo Regime Monárquico, pois instituiu a prisão como substituta aos suplícios, e utilizando o humanismo como mero engodo para manter uma estrutura de poder e de verdade.
“O aumento crescente da violência urbana e dos crimes, nas sociedades modernas, decorrentes das complexas relações de desigualdade estabelecidas, traz para o significado da pena um intenso conflito de ideias. Num rápido apanhado dos conceitos e preconceitos presentes na sociedade, verifica-se que alguns acreditam, por exemplo, na pena de morte e prisão perpétua como penas necessárias para o combate da criminalidade. Noutros prevalece à convicção de que penas severas de prisão realizariam melhor as finalidades principais de prevenção geral e especial dos crimes. Em outro sentido, ainda, outros crêem num ideal absolutamente diverso, onde é possível recuperar o ser humano e reintegrá-lo à sociedade”.
A sanção penal tem múltiplas funções porque restringe ou priva o delinquente de um bem jurídico aplicar-lhe a punição, promover a reabilitação ou readaptação social e ainda prevenir novos delitos.
“Sanção penal de caráter aflitivo, imposta pelo Estado, em execução de uma sentença, ao culpado pela prática de uma infração penal, consistente na restrição ou privação de um bem jurídico, cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva ao delinquente, promover a sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à coletividade”.39
As penas têm que apresentar características de retribuição punitiva e finalidade preventiva, no sentido de evitar a prática de novos delitos. A prevenção geral com fim intimidativo tem como destinatários todos os membros da sociedade. A prevenção especial que visa o autor da infração, retirando-o em alguns casos do convívio social, impedindo nova infração e procurando ressocializá-lo.
“Foucault chama a atenção que a Reforma, antes de se crê-la humanista, significa a passagem de um mecanismo histórico-ritual dos suplícios para um mecanismo científico-disciplinar pelo qual, a partir do início do século XIX, a prisão torna-se a punição mais comum.
Estuda a sucessão histórica dessas diferentes estruturas jurídico- punitivas, mas sempre se refere a elementos extra-jurídicos ou não- jurídicos. Foucault não se preocupa com a punição legal. Foucault busca encontrar objetos não necessariamente jurídicos que a compõe. Esses são os objetos que lhe interessam (não-jurídicos). Objetos marginais, nebulosos, mascarados, disfarçados que arranjam ou agenciam o poder que envolve a prática e a técnica, o saber e o discurso do poder. Poder legal que reproduz verdade e se sustenta. A introdução da técnica de encarceramento significa que o poder "produz a população criminosa e a administra em nível institucional, de modo a torná-la inconfundível e a adaptá-la a funções próprias que qualificam esta particular zona de marginalização".
Finalmente, afirma o autor, comentando a postura do filósofo, que o Iluminismo apregoa que o homem deveria ser útil (para o trabalho) e dócil (não se rebelar), possuindo uma alma submissa ao domínio político-jurídico estabelecido pela nova economia. “A prisão como um modo humano de repressão aos delitos é uma ficção”, conclui Warley Belo.
“O Iluminismo trouxe a ideia da individualização das penas. Estas deveriam ser aplicadas de uma maneira menos cruel, punindo o infrator na devida proporção do delito praticado, servindo como forma de retribuição e defesa social. Neste contexto destaca-se a repercussão dos trabalhos de Cesare Beccaria, John Howard e Jeremy Bentham para humanização das penas, consolidando a ideia de que não bastava a função de retribuição do mal praticado. Era preciso também tratar do estabelecimento de fins sociais à pena, impondo-lhe o sentido de ressocialização dos delinquentes.
Este período tem como característica marcante o estabelecimento da liberdade como bem de intenso valor para o ser humano passando, portanto, sua perda a ter um significado que possibilitou a evolução do aprisionamento como forma de punição suficiente para os piores crimes. Este conceito estabeleceu as condições necessárias para a difusão a partir do século XIX, do desenvolvimento da prisão como meio de corrigir o infrator e retribuir sua falta”.
Nessa altura da pesquisa, acredita-se ser interessante apresentar uma análise pertinente ao assunto que servirá de ilustração ao tema que nos propomos trabalhar. Esta é uma análise que concentra e associa impressões de quatro autores e suas respectivas obras, quais sejam Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley; “1984” de George Orwell, e Panóptico de Jeremy Bentham (1748-1832) e Vigiar e Punir (1975) de Michel Foucault.
“[...] ao ler sobre o pensamento e a obra de Michel Foucault, principalmente Vigiar e Punir (1975), venho a perceber que o “1984” de Orwell está muito mais presente em nossa vida atual do que eu pensava. Senão superando a presença indiscutível de Admirável Mundo Novo, pelo menos participando em pé de igualdade no que diz respeito ao controle social em nosso tempo. Em Vigiar e Punir, Foucault trata com muita propriedade do tema da “Sociedade Disciplinar”, implantada a partir dos séculos XVII e XVIII, consistindo basicamente num sistema de controle social através da conjugação de várias técnicas de classificação, de seleção, de vigilância, de controle, que se ramificam pelas sociedades a partir de uma cadeia hierárquica vindo do poder central e se multiplicando numa rede de poderes interligados e capilares. O ser humano é selecionado e catalogado individualmente, não no sentido de valorizar suas particularidades que o fazem um ser único, “um mamífero com um grande cérebro”, como disse Huxley, mas para melhor controlá-lo. O sentido é dissecar o corpo social, transformar esta massa amorfa em micro seções individuais, para conhecer e controlar. O Poder nesse sentido é exercido de forma celular. Pois como diz Foucault, “toda forma de saber produz poder”. Dividir, classificar, conhecer cada célula social para governar. O poder é então baseado na “Microfísica do Poder”, outra obra de Foucault”.46
Michel Foucault mostra que toda a rede de controle existente na sociedade capitalista justifica-se pela intenção da burguesia exercer controle estreito sobre as massas, retirando delas as reivindicações sérias dos ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo.
“Seria como se fossem abertas as comportas de uma imensa represa, cujas águas foram mantidas estancadas há milênios desde a antiguidade remota, através dos mais variados mecanismos de poder, cuja argamassa da ignorância popular foi um dos elementos mais eficazes da sustentação desta barragem. Se deixassem essa imensa quantidade de água descer rio abaixo, livre com o conhecimento do Iluminismo, ela certamente inundaria e destruiria as luxuosas instalações do poder e sua corte finíssima, que hoje se traduz por burguesia. Era preciso consertar a velha barragem e parar essa força descomunal das massas ou então construir uma outra barragem e reservar o trinômio Liberdade, Igualdade e Fraternidade para os sócios do seleto clube burguês. Assim foi feito com a implantação da ‘Tecnologia das Disciplinas’”.
O “Poder das Sociedades Disciplinares” de Orwell foi baseado, como afirma Michel Foucault, no modelo do Panóptico de Bentham (1748-1832), que concebeu a prisão (e também escolas e manicômios) em forma circular, com portas transparentes, voltadas todas para o centro onde ficava a torre de vigilância, expondo todas as ações dos detentos, sem que estes pudessem ver o Diretor que os observava a todo o tempo.
“Isto permitiria um acompanhamento minucioso da conduta do detento, aluno, militar, doente ou louco, pelo Diretor, mantendo os observados num ambiente de incerteza sobre a presença concreta daquele. Essa incerteza resultaria em eficiência e economia no controle dos subalternos, pois tendo invadida a sua privacidade de modo alternado, furtivo, incerto, ele mesmo se vigiaria. Esse sistema permitiria também um controle externo do funcionamento do Panóptico, pois uma simples observação a partir da torre, permitiria a avaliação da qualidade da administração do Diretor, sendo ele também vigiado. Esta vigilância se espalhou de modo similar por toda a sociedade em uma rede ramificada além da estrutura física das instituições. Essa distribuição capilar do Poder é um dos pólos fundamentais de controle das massas, potencialmente perigosas à ‘Ordem’”.
O Panóptico de Bentham, tal qual a teletela de George Orwell na obra “1984” tem a função de vigiar, envolta no suspense de ser visto sem ver, das inspeções alternadas e incertas, da leitura do pensamento (o que não é possível no Panóptico, mas faz parte da ficção de George Orwell. O Grande Irmão é o Diretor do presídio ou de outra instituição qualquer que impõe a disciplina pelo temor, pela repressão, pela ausência de privacidade, de intimidade e, principalmente, de liberdade, o que já seria redundante, por estar o detento encarcerado.
“A Grande Tela vigia, filma, invade a privacidade, ela é o próprio Panóptico elevado ao cubo, espalhado, inflado. Foucault fala da impessoalidade do Diretor, ele pode estar na torre, pode não estar, é vedado ao observado saber se ele está ou não na torre, se o Diretor está ou não o observando. O observador não precisa necessariamente ser o Diretor, pode ser um amigo, seus familiares, um simples funcionário subalterno, pode nem haver ninguém. O Grande Irmão também não é impessoal? Na verdade uma abstração, uma personificação do Estado, ele pode ou não existir como pessoa física. Quantos boatos já se fizeram sobre a morte não divulgada de um líder poderoso e a suspeita de que o seu Império continuava de pé? Também há correspondência em relação à asfixia do drama vivido por Winston”.
No trecho abaixo, o autor traça os paralelos entre as obras citadas acima e nos invoca à reflexão, em meio a tantas ideias de cerceamento da liberdade, da manipulação de ideias e comportamentos que a sociedade capitalista impõe aos seus cidadãos, de forma a torná-los condicionados ao sistema.
“O texto de Foucault é igualmente sufocante, tem-se uma primeira impressão de que não há saída possível. Dizem que há até uma discussão sobre a validade do caráter marxista-libertário da obra de Foucault, tamanha a desesperança inicial quando se toma conhecimento da malha tão intrinsecamente montada do poder. Mas é claro que tem que se buscar uma saída, o que Foucault aponta no decorrer de outras obras. Mas o certo é que Foucault é uma confirmação do escritor de ‘1984’. Aquilo que George Orwell anteviu em 1948, em forma literária- alegórica, Foucault detalhou, décadas depois, de forma teórico-filosófica. Isto nos traz uma correspondência maior ainda entre Aldous Huxley e Orwell. Por este prisma, há quase uma fusão entre ‘1984’ e Admirável Mundo Novo. A vigilância coercitiva, sufocante, explícita e implícita da Grande Tela e do Grande Irmão com a massificação terrivelmente uniforme da ‘felicidade tecnológica’ e do condicionamento Skenneriano50 de Brave New Word”
Segundo Paulo Giardullo, o pensamento de Bentham exerceu grande influência sobre os fundamentos do direito penal, pois suas teorias intencionavam tornar a ética, por meio do cálculo dos prazeres e sanções, em uma ciência rigorosa, a partir do modelo de rigor matemático.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BITTENCOURT, Cezar Roberto. Nas prisões brasileiras o mínimo que se perde é a liberdade. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jan-06/cezar- bitencourt-massacre-manaus-foi-tragedia-anunciada>. Acesso em: 24 Junho 2020.
BRASIL. Decreto lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 30 Maio 2020.
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CAPEZ, Fernando. Execução Penal simplificado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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