INTRODUÇÃO
Como não poderia deixar de ser, a inteligência artificial (IA) trará mudanças também na atividade jurisdicional, melhor dizendo, já o faz, e aumentará seu impacto cada vez mais. O que já está sendo feito? Considerando que o mundo só anda para a frente e a mudança é inevitável, o que esperar dela? Quais os percalços e desafios que se apresentam? A proposta é apresentar um brevíssimo panorama acerca dos pontos.
EXPERIÊNCIAS ATUAIS
Diversos tribunais têm iniciativas em andamento que aplicam soluções de inteligência artificial. Podemos destacar algumas, como a seguir:
TJRJ – ELIS – O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro desenvolveu o ELIS, robô que auxilia os magistrados nos processos de execução fiscal. O sistema, que trabalha no modelo de árvore de decisão[1], analisou 6.619 processos em cerca de três dias, tarefa que demoraria 2 anos e 5 meses se feita por um servidor em dedicação exclusiva.
TJRO – SINAPSES – Desenvolvido pelo Tribunal de Justiça de Rondônia, o sistema SINAPSES pesquisa dentre as produções anteriores do magistrado, qual tem mais aderência ao caso ora em análise, sugerindo a minuta para conferência, e se for o caso, aprovação com ou sem alterações para assinatura. A tecnologia utilizada é a de redes neurais[2] e já existem estudos para a ampliação de seu uso em outros estados.
TST – BEM – TE – VI – Os tribunais superiores também tem aplicado recursos na área. O Tribunal Superior do Trabalho já categoriza e verifica a tempestividade de seus processos de forma automática. O Bem-te-vi é o robô responsável pela tarefa e já foram coletados dados para cadastrar os impedimentos dos magistrados em relação a cada processo.
STF – VICTOR – Em homenagem ao ministro Victor Nunes Leal que propôs ainda na década de 60 uma sistematização das decisões da corte, o Supremo Tribunal Federal batizou seu robô de Victor. O software analisa todos os recursos extraordinários a fim de verificar se eles se enquadram em algum caso de recursos repetitivos.
POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS
Certamente podemos apontar a análise de provas e construção das decisões como um possível desdobramento da aplicação da inteligência artificial na atividade jurisdicional. Mas quanto a isso, o Dr. Dierle Nunes e a Mestra Ana Luíza Pinto Coelho Marques afirmaram:
“Pontue-se, ainda, que no atual estágio da tecnologia não é viável a realização de legal reasoning por IA, sendo que será improvável que seu uso substitua juízes do dia para a noite. Ademais, tal introdução provavelmente dar-se-á de modo gradual, com função auxiliar, e suscitará o debate do perigo oculto da renúncia do poder decisório pelos magistrados e dos riscos do viés de ancoragem.”
Tendo em vista não poder ajudar para o desenvolvimento da tecnologia, torna-se importante apontar percalços no caminho, no intento que eles possam ser contornados.
PRINCIPAIS OBSTÁCULOS
OPACIDADE
Existem várias tecnologias que podem servir de base à construção de inteligências artificiais. A mais simples é a árvore de decisão que pode ser representada graficamente no exemplo abaixo:
O sistema de árvore de decisão pode ser muito bem utilizado para tarefas simples, como a acima. Tem ainda a vantagem de ser um sistema transparente, explicável, é possível de ser auditado, todavia é muito limitado.
Existem outras tecnologias, como a de redes neurais, em que o sistema, munido por uma grande base de dados prévia, analisa todo o acervo e, por si, cruza informações no sentido de tentar encontrar dados na entrada (p.ex. petições iniciais e contestações) que determinaram saídas (p.ex. sentenças e acórdãos) similares. Tais sistemas são muito mais complexos e interessantes, podem também ter muito mais aplicações e não requerem uma extensa programação, já que o software se programa sozinho. Todavia são opacos, isto é, não é possível a um observador entender porque o sistema sugeriu determinada saída de dados ao analisar a entrada proposta. São assim, impenetráveis e inauditáveis.
Por isso aponta-se que tal tecnologia é potencialmente ofensiva aos princípios da fundamentação das decisões judiciais, à impessoalidade, à publicidade, dentre outros.
Tal característica leva ainda ao problema do viés decisório.
VIÉS
Imagine dois bairros fictícios com o mesmo índice de criminalidade, só que em um deles, por alguma razão, há mais policiamento, o que leva a que se registre mais ocorrências envolvendo tal parte da cidade. Veja que uma vez que tais dados sejam levados a análise da inteligência artificial, ela concluirá que o bairro mais policiado é mais perigoso. Isso pode levar a um reforço na atuação policial naquele lugar, o que deve acabar retroalimentando a conclusão.
Isso é o viés presente na IA. Em muitos casos as conclusões serão decorrentes da qualidade dos dados usados como base, se tais dados têm algum viés, este será reforçado pelo robô.
A literatura registra o caso do sistema COMPAS, um software usado pelas cortes norte americanas para calcular a probabilidade de reincidência criminal dos presos daquele país. Muito embora não exista uma programação no sentido de dificultar o benefício da liberdade provisória para os negros, verificou-se que os cidadãos de pele escura têm o dobro de chances de ser considerados perigosos pelo software.
CONCLUSÃO
Não podemos ser como Dom Quixote e lutar contra os moinhos de vento. A inteligência artificial continuará a ganhar espaço na atividade jurisdicional, cabe a nós entender seu funcionamento, ainda que minimamente, para melhor decidir quando e como utilizá-la. Os princípios e os direitos dos jurisdicionados não poderão ser atropelados pelas inovações em nome do progresso tecnológico porque este só serve quando serve a nós.
BIBLIOGRAFIA
Inteligência Artificial e Direito Processual: Os Impactos da Virada Tecnológica no Direito Processual / coordenadores Dierle Nunes, Paulo Henrique dos Santos Luccon, Erik Navarro Wolkart – Salvador: editora Juspodivm, 2020.
O que é um diagrama de árvore de decisão, Lucidchart, 2020. Disponível em: https://www.lucidchart.com/pages/pt/o-que-e-arvore-de-decisao#section_0 acesso em 11/07/2020.
TJSE Conhece Sinapses, robô do TJRO que potencializa a celeridade processual, site do Tribunal de Justiça de Rondônia, 2020, Disponível em https://tjro.jus.br/corregedoria/index.php/component/k2/169-tjse-conhece-sinapses-robo-do-tjro-que-potencializa-a-celeridade-processual. Acesso em 11/07/2020.
Redes neurais artificiais, Site da Universidade de São Paulo, 2020. Disponível em: https://sites.icmc.usp.br/andre/research/neural/. Acesso em 12/07/2020.
Inteligência artificial traz melhorias inovadoras para tramitação de processos no TST, site do Tribunal Superior do Trabalho, 2020. Disponível em http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/inteligencia-artificial-traz-melhorias-inovadoras-para-tramitacao-de-processos-no-tst . Acesso em 12/07/2020.
{C}[1] Árvores de decisão são mapas que demonstram caminhos/escolhas e seus resultados, que desaguam em outros caminhos e resultados. Muito similares a fluxogramas. É um sistema com campo aberto para a inteligência artificial auxiliar humanos em tarefas simples e padronizadas.
{C}[2] A tecnologia de redes neurais trabalha utilizando-se de uma grande quantidade de dados prévios, ou seja, no caso ele “lê” todas as decisões anteriores do(s) magistrado(s) e o sistema faz cruzamento de informações para sugerir a peça adequada, ademais, o sistema grava se houve aceite ou recusa da sugestão para refinar o treinamento do software.