A inteligência artificial e a atividade jurisdicional

O estado atual do uso da IA nos tribunais brasileiros, especulações sobre os próximos passos e os obstáculos para o desenvolvimento.

15/09/2020 às 16:14
Leia nesta página:

O judiciário brasileiro usa inteligência artificial? Como? Pra onde essa tecnologia aponta? O que nos impede de aumentar o seu uso?

 

INTRODUÇÃO

 

Como não poderia deixar de ser, a inteligência artificial (IA) trará mudanças também na atividade jurisdicional, melhor dizendo, já o faz, e aumentará seu impacto cada vez mais. O que já está sendo feito? Considerando que o mundo só anda para a frente e a mudança é inevitável, o que esperar dela? Quais os percalços e desafios que se apresentam? A proposta é apresentar um brevíssimo panorama acerca dos pontos.

EXPERIÊNCIAS ATUAIS

Diversos tribunais têm iniciativas em andamento que aplicam soluções de inteligência artificial. Podemos destacar algumas, como a seguir:

TJRJ – ELIS – O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro desenvolveu o ELIS, robô que auxilia os magistrados nos processos de execução fiscal. O sistema, que trabalha no modelo de árvore de decisão[1], analisou 6.619 processos em cerca de três dias, tarefa que demoraria 2 anos e 5 meses se feita por um servidor em dedicação exclusiva.

TJRO – SINAPSES – Desenvolvido pelo Tribunal de Justiça de Rondônia, o sistema SINAPSES pesquisa dentre as produções anteriores do magistrado, qual tem mais aderência ao caso ora em análise, sugerindo a minuta para conferência, e se for o caso, aprovação com ou sem alterações para assinatura. A tecnologia utilizada é a de redes neurais[2] e já existem estudos para a ampliação de seu uso em outros estados.

TST – BEM – TE – VI  – Os tribunais superiores também tem aplicado recursos na área. O Tribunal Superior do Trabalho já categoriza e verifica a tempestividade de seus processos de forma automática. O Bem-te-vi é o robô responsável pela tarefa e já foram coletados dados para cadastrar os impedimentos dos magistrados em relação a cada processo.

STF – VICTOR – Em homenagem ao ministro Victor Nunes Leal que propôs ainda na década de 60 uma sistematização das decisões da corte, o Supremo Tribunal Federal batizou seu robô de Victor. O software analisa todos os recursos extraordinários a fim de verificar se eles se enquadram em algum caso de recursos repetitivos.

POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS

Certamente podemos apontar a análise de provas e construção das decisões como um possível desdobramento da aplicação da inteligência artificial na atividade jurisdicional. Mas quanto a isso, o Dr. Dierle Nunes e a Mestra Ana Luíza Pinto Coelho Marques afirmaram:

“Pontue-se, ainda, que no atual estágio da tecnologia não é viável a realização de legal reasoning por IA, sendo que será improvável que seu uso substitua juízes do dia para a noite. Ademais, tal introdução provavelmente dar-se-á de modo gradual, com função auxiliar, e suscitará o debate do perigo oculto da renúncia do poder decisório pelos magistrados e dos riscos do viés de ancoragem.”

Tendo em vista não poder ajudar para o desenvolvimento da tecnologia, torna-se importante apontar percalços no caminho, no intento que eles possam ser contornados.

PRINCIPAIS OBSTÁCULOS

OPACIDADE

Existem várias tecnologias que podem servir de base à construção de inteligências artificiais. A mais simples é a árvore de decisão que pode ser representada graficamente no exemplo abaixo:

O sistema de árvore de decisão pode ser muito bem utilizado para tarefas simples, como a acima. Tem ainda a vantagem de ser um sistema transparente, explicável, é possível de ser auditado, todavia é muito limitado.

Existem outras tecnologias, como a de redes neurais, em que o sistema, munido por uma grande base de dados prévia, analisa todo o acervo e, por si, cruza informações no sentido de tentar encontrar dados na entrada (p.ex. petições iniciais e contestações) que determinaram saídas (p.ex. sentenças e acórdãos) similares. Tais sistemas são muito mais complexos e interessantes, podem também ter muito mais aplicações e não requerem uma extensa programação, já que o software se programa sozinho. Todavia são opacos, isto é, não é possível a um observador entender porque o sistema sugeriu determinada saída de dados ao analisar a entrada proposta. São assim, impenetráveis e inauditáveis.

Por isso aponta-se que tal tecnologia é potencialmente ofensiva aos princípios da fundamentação das decisões judiciais, à impessoalidade, à publicidade, dentre outros.

Tal característica leva ainda ao problema do viés decisório.

VIÉS

          Imagine dois bairros fictícios com o mesmo índice de criminalidade, só que em um deles, por alguma razão, há mais policiamento, o que leva a que se registre mais ocorrências envolvendo tal parte da cidade. Veja que uma vez que tais dados sejam levados a análise da inteligência artificial, ela concluirá que o bairro mais policiado é mais perigoso. Isso pode levar a um reforço na atuação policial naquele lugar, o que deve acabar retroalimentando a conclusão.

          Isso é o viés presente na IA. Em muitos casos as conclusões serão decorrentes da qualidade dos dados usados como base, se tais dados têm algum viés, este será reforçado pelo robô.

          A literatura registra o caso do sistema COMPAS, um software usado pelas cortes norte americanas para calcular a probabilidade de reincidência criminal dos presos daquele país. Muito embora não exista uma programação no sentido de dificultar o benefício da liberdade provisória para os negros, verificou-se que os cidadãos de pele escura têm o dobro de chances de ser considerados perigosos pelo software.

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CONCLUSÃO

          Não podemos ser como Dom Quixote e lutar contra os moinhos de vento. A inteligência artificial continuará a ganhar espaço na atividade jurisdicional, cabe a nós entender seu funcionamento, ainda que minimamente, para melhor decidir quando e como utilizá-la. Os princípios e os direitos dos jurisdicionados não poderão ser atropelados pelas inovações em nome do progresso tecnológico porque este só serve quando serve a nós.

 

BIBLIOGRAFIA

Inteligência Artificial e Direito Processual: Os Impactos da Virada Tecnológica no Direito Processual / coordenadores Dierle Nunes, Paulo Henrique dos Santos Luccon, Erik Navarro Wolkart – Salvador: editora Juspodivm, 2020.

O que é um diagrama de árvore de decisão, Lucidchart, 2020. Disponível em: https://www.lucidchart.com/pages/pt/o-que-e-arvore-de-decisao#section_0 acesso em 11/07/2020.

TJSE Conhece Sinapses, robô do TJRO que potencializa a celeridade processual, site do Tribunal de Justiça de Rondônia, 2020, Disponível em https://tjro.jus.br/corregedoria/index.php/component/k2/169-tjse-conhece-sinapses-robo-do-tjro-que-potencializa-a-celeridade-processual. Acesso em 11/07/2020.

Redes neurais artificiais, Site da Universidade de São Paulo, 2020. Disponível em: https://sites.icmc.usp.br/andre/research/neural/. Acesso em 12/07/2020.

Inteligência artificial traz melhorias inovadoras para tramitação de processos no TST, site do Tribunal Superior do Trabalho, 2020. Disponível em http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/inteligencia-artificial-traz-melhorias-inovadoras-para-tramitacao-de-processos-no-tst . Acesso em 12/07/2020.

 


{C}[1] Árvores de decisão são mapas que demonstram caminhos/escolhas e seus resultados, que desaguam em outros caminhos e resultados. Muito similares a fluxogramas. É um sistema com campo aberto para a inteligência artificial auxiliar humanos em tarefas simples e padronizadas.

{C}[2] A tecnologia de redes neurais trabalha utilizando-se de uma grande quantidade de dados prévios, ou seja, no caso ele “lê” todas as decisões anteriores do(s) magistrado(s) e o sistema faz cruzamento de informações para sugerir a peça adequada, ademais, o sistema grava se houve aceite ou recusa da sugestão para refinar o treinamento do software.

Sobre o autor
Pedro Camera Pacheco

Graduado pela UCSal em 2007, pós graduado pelo IBET em 2010. Ex Advogado de ente do sistema S, Ex Analista Judiciário, Ex Advogado de Sociedade de Economia Mista, Procurador do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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