SUMÁRIO: Introdução: “O Crime da Mala”; 2.0- Abandono Afetivo Parental: As consequências para a formação do sujeito de direito; 3.0 - Disfunção Materna: Motivos internos para a delinquência; 3.1 - A Figura da Mulher na Sociedade: A Construção; 4.0 – “Boca de Lixo”: Ambiente Criminogênico; 5.0 - Considerações Finais, Referências.
RESUMO
Em conformidade com os avanços dos estudos da Criminologia quanto à psicopatia, nota-se um caráter investigativo cada vez mais distante do eugenismo proposto pelo psiquiatra Cesare Lombroso. Assim, compreende-se como cada vez mais fundamental para o avanço da Psicologia Criminal análises pactuadas não só com a investigação forense de fatores biológicos envoltos ao crime, como também depreender como o fenômeno social pode, de certo modo, corroborar traços de personalidade psicopata. Nesse sentido, à luz dos dois assassinatos cometidos por Alcunha Francisco da Costa - “Chico Picadinho”, evidencia-se como fundamental entender os fatos sociais intrínsecos a estrutura da sociedade em que a família de Francisco da Costa e o próprio réu estavam inseridos, uma vez que tal investigação preenche lacunas quanto à ótica sobre a delinquência que apenas a biologia criminal não é capaz de suprir de maneira exequível. Para tanto, a primazia do presente artigo é considerar a dominação masculina da época como um dos eixos para a construção da mentalidade psicopata de Francisco da Costa e, além disso, evidenciar como o comportamento misógino corroborado por esse sistema tradicionalista pode comumente potencializar condutas delitivas.
Palavras-chave:Misoginia; Personalidade Psicopata; Fenômeno Social; Criminologia.
1.0 - INTRODUÇÃO: “O Crime da Mala”
Consoante ao Código Civil lei n° 3.071, de janeiro de 1916, o exercício da cidadania da mulher brasileira era restrito ao viés patriarcal intrínseco a esse dispositivo legal, logo, havia respaldo normativo quanto às garantias civis dos homens, mas a vulnerabilidade civil das mulheres do século XIX não foi reparada pelo princípio da isonomia durante a elaboração dessa norma jurídica. Nesse sentido, a disparidade legal entre os gêneros na parte normativa desse código acentuou não apenas a ausência de efetividade entre o dever e a realidade social, mas também potencializou as desigualdade de gênero à medida que a institucionalização de tal discrepância naturalizou comportamentos sexistas ante a individualidade da mulher brasileira.
A partir dessa positivação, portanto, demonstra-se o grau de exclusão e como a objetificação da mulher era legitimada pela lei civil que vigorou por oitenta e seis anos na sociedade brasileira e, somado a isso, torna-se evidente por meio desse espelho normativo a comumente assimilação do tradicionalismo na culturalização da sociedade dessa época. Nesse sentido, ao considerar que a formação subjetiva e cidadã de Alcunha Francisco da Costa vulgo Chico Picadinho perpassou por esses valores e ditames sociais tradicionalistas desde a infância, consequentemente, é possível depreender que o perfil de Francisco da Costa quanto à delinquência não é apenas inerente a uma nuance neurobiológica, mas sim uma junção de fatores biopsicossociais.
Concomitante ao recorte de gênero supracitado, fez-se primordial a análise sobre como a dominação masculina pode, em certo grau, pactuar para a naturalização da misoginia na sociedade e, somado a isso, aclarar a respeito de como a assimilação desse microfator externo potencializou a condição genética inerente a Francisco da Costa. Isso porque a gênese para as condutas delitivas não prevê apenas a predisposição genética, mas sim a junção dos papéis sociais, interpretação das normas jurídicas, ambiente familiar e inter-familiar como fatores de igual influência sobre o indivíduo. Portanto, uma sociedade arraigada por valores misóginos em diferentes núcleos de sociabilidade pode, não raro, corroborar as condutas delitivas ante a figura da mulher com um grau de violência verosímil ao de Francisco da Costa ainda que o transgressor não tenha tendências neurobiológicas para a psicopatia assim como Chico Picadinho.
A partir desse desdobramento, buscou-se, no presente artigo, efetuar uma análise das bibliografias antecedentes que versam sobre o caso “Chico Picadinho”, bem como os estudos psicossociais concernentes a abordagem da psicopatia nas sociedades. Assim, no sentido de ampliar a ótica acadêmica sobre o caso concreto de Francisco da Costa, espera-se que o tema possa contribuir para a elucidação da Psicologia Jurídica para os acadêmicos, assim como fomentar um novo caminho dissertativo para compor as investigações acadêmicas a cerca do caso “O Crime da Mala” que chocou o Brasil nas décadas de sessenta e setenta.
2.0 - Abandono Afetivo Parental: As consequências para a formação do sujeito de direito.
Em consonância com os relatos sobre infância de Alcunha Francisco da Costa Rocha, faz-se necessário uma análise das responsabilidades dos pais de Francisco ante a construção social em potencial desse indivíduo enquanto sujeito de direito. Nesse sentido, é primariamente fundamental destacar que Francisco da Costa foi concebido por meio da traição do seu pai - um poderoso exportador de café com a sua amante – Dona Nancy.
Por conseguinte, ao passo que a sociabilidade da época era voltada para o “Pátrio Poder”, o pai de Francisco da Costa não assumiu a sua filiação, pois o cafeeiro tinha permissibilidade legal para deixar de assumir a paternidade formal de Francisco, uma vez que tal concepção foi formada fora do enlace matrimonial. Assim, Francisco da Costa Rocha foi abandonado afetivamente e representativamente por seu progenitor desde o seu nascimento. Ademais, à medida que Dona Nancy precisou ser internada em função da Tuberculose que enfrentava, Francisco foi condicionado a viver com um casal de funcionários do seu pai em um sítio quando ainda tinha dois anos de idade até os seus seis anos completos, quando Nancy retornou para buscá-lo (LINHA DIRETA, 2004).
Com efeito, até muito recentemente seria inadmissível o reconhecimento de filhos que não fossem gerados pelo casamento. Na conjuntura do modelo familiar patriarcal e essencialmente matrimonializado, que nosso ordenamento jurídico protegia, imputar a paternidade a alguém pela comprovação de uma relação paterno-filial baseada no afeto era algo ainda impossível. (TRINDADE, 2012, p.336)
Posto isso, é possível depreender que as garantias materiais de responsabilidade civil dos pais de Francisco estavam até então sendo resguardadas devido à segurança financeira de seu progenitor. No entanto, as contrapartidas desse direito usufruído por Francisco ao longo de sua menoridade no sítio se dá em função da ausência de auxílio moral e afetivo. Isso porque Francisco da Costa foi concebido por meio de princípios patriarcais, econômicos e restritos a reprodução em detrimento do valor socioafetivo necessário à construção da personalidade da pessoa humana (TRINDADE, 2012). Ademais, Francisco da Costa posteriormente retornou a morar com a sua mãe biológica, mesmo sem nenhuma recordação de Dona Nancy como a sua mãe devido ao distanciamento.
Além disso, mesmo inserido no cotidiano de sua mãe biológica, Francisco da Costa continuava sem receber a atenção da sua mãe, haja vista que o modo de vida da Dona Nancy estava ligado ao trabalho e a comumente romances esporádicos com homens casados. Logo, a narrativa que compôs o enredo a vida de Francisco enquanto infanto está ligada a um universo de agressividade, sadismo, abandono paternal e relacionamentos amorosos inconstantes da mãe(LINHA DIRETA, 2004). Dessa maneira, a faculdade da moral e o fomento ao afeto ao serem secundarizados na concepção de uma criação responsável, por conseguinte, produziu ausências psicológicas que afetaram diretamente a construção da identidade de Francisco da Costa.
Concomitante a essa questão está o grau de influência dos fatores deontológicos da lei que vigoravam na sociedade civil em que Francisco Costa e sua família estavam inseridos, haja vista a existência de certo tradicionalismo que predominava não só formalismo jurídico em suas jurisprudências, bem como as relações em sociedade. Isso porque a comunhão do afeto era incongruente para o modelo de consagração do matrimônio positivado no Código Civil que vigorou a partir de 1917. Nesse sentido, ao salientar que a menoridade de Francisco Costa se deu a partir de 1942 com o seu nascimento, consequentemente, os efeitos da objetivação na lei de uma unidade familiar desconectada do afeto perduro sobre a noção de responsabilidade parental para os pais de Francisco Costa. Assim,conforme o Manual de Psicologia Jurídica (TRINDADE, 2012) a condição de pessoa humana capaz de se projetar como sujeito de direito por meio das trocas socioafetivas que versam sobre uma compreensão igualitária e não econômica dentro da família é, consequentemente, deflagrado pelo rigor desse tradicionalismo.
A transição de família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma feição fundada no afeto. Esta nova concepção familiar evidencia um espaço privilegiado para a composição dos afetos que soam e ecoam entre os sujeitos que a compõem. (TRINDADE, 2012, p. 334)
Diante desse cenário, o abandono afetivo parental em que Francisco da Costa fora normatizado desde a infância pode ter impactado diretamente a formação de Francisco enquanto sujeito de direito, capaz de gozar das suas garantias sem infringir a liberdade do Outro em exercer os seus direitos igualmente resguardados. Assim sendo, a fim de compreender como essa interferência pode ter atuado sobre Francisco Costa, faz-se primordial fugir do utilitarismo que nega a capacidade altruísta da pessoa humana e reconectar a filosofia do Direito ao potencial solidário entre os entes que compõe uma sociedade. Isso porque ao definir justiça como qualidade de dar ao Outro o que lhe é devido, simultaneamente, suscita perguntar sobre o que então é devido ao Outro.
Posto isso, nasce por meio dessa retórica à importância do exercício da alteridade para a efetivação da pessoa natural enquanto sujeito de direito, à medida que a existência do interesse pelo bem estar do Outro agrega a capacidade da pessoa humana para exercer direitos e deveres na esfera civil. Nesse sentido, ao considerar que Francisco Costa cresceu em um ambiente ligado ao reducionismo do bem estar à satisfação econômica dos entes familiares, é possível depreender então que a identidade de Francisco Costa enquanto sujeito de direito foi forjada em uma mentalidade auto-interessada e, consequentemente, pouco voltada para o exercício da alteridade.
3.0 - Disfunção Materna: Motivos internos para a delinquência
A princípio, torna-se essencial desmistificar o amor como sentimento inato ao pleno exercício da maternidade, uma vez que existe certa variabilidade temporal no sentido de amor entre a mãe e o seu filho. Historicamente, os valores socioculturais, religiosos e econômicos moldavam o papel da mulher no século XX reduzindo-o ao exercício da maternidade. No entanto, tal interiorização familiar não era uma realidade comum às mulheres das classes populares, haja vista que a maternidade na família popular era encarada de maneira menos próxima do filho em função da demanda de trabalho para garantir a subsistência dos membros da família.
Assim, é possível identificar que o conceito de amor materno valorado na sociedade do século XX estava diretamente relacionado à mulher inserida na intimidade do lar para o exercício incondicional da maternidade. Consequentemente, o arquétipo maternal foi sublimado ao instinto de fragilidade e fortaleza que deveriam estar inerentes à postura da mãe desconsiderando, por conseguinte, os percalços enfrentados no exercício da maternidade pelas mães em vulnerabilidade socioeconômica.
O amor materno foi por tanto tempo concebido em termos de instinto que acreditamos facilmente que tal comportamento seja parte da natureza da mulher, seja qual for o tempo ou o meio que a cercam. Aos nossos olhos, toda mulher, ao se tornar mãe, encontra em si mesma todas as respostas à sua nova condição. Como se uma atividade pré-formada, automática e necessária esperasse apenas a ocasião de se exercer. (BADINTER, p. 19, 1985)
Consoante à precariedade econômica que Dona Nancy precisava enfrentar para cuidar de Francisco da Costa e dos outros filhos sozinha, a construção da maternidade em consonância com os ditames sociais do século XX foi compulsoriamente secundarizada por ela. Assim, a representação ausente de Dona Nancy para Francisco da Costa, por conseguinte, foi potencializada.Entende-se, portanto, que a misoginia expressa com requinte nos assassinatos cometidos por Chico Picadinho, bem como a sua declaração de verossimilhança da sua primeira vítima com Dona Nancy revelam o caráter repulsivo da imagem psíquica que Francisco da Costa desenvolveu sobre a sua mãe e, consequentemente, sobre o significado de feminino, haja vista o seu inconformismo perante a ausência maternal de Dona Nancy.
Ademais, outro exemplo do grau de repulsa que Francisco da Costa sentia em relação ao feminino está o processo de desfeminização das suas vítimas, as quais tiveram os seus seios igualmente esfacelados por Chico Picadinho. Posto isso, apreende-se que Francisco da Costa não esquartejou as pessoas Margarethe Suida e Ângela de Souza da Silva, mas sim a figura da mulher e a presença do feminino, haja vista a repulsa que essa representação produziu sobre e, consequentemente, resultou no modo repulsivo com que ele desovou o corpo.
Concomitante a essa questão, faz-se necessário identificar como as bases neurobiológicas e os traços de personalidade antissocial de Francisco são evidentes em seu comportamento psicopata. De acordo com uma entrevista realizada pela escritora Ilana Casoy, autora de livros voltados para a psicopatia, Francisco da Costa demonstrou para Casoy certo domínio sobre algumas obras culturais. Dentre elas, o conhecimento literário de Francisco ante a obra Crime e Castigo de Fiódor Dostoievski é o ponto nevrálgico para entender como se desdobra o comportamento de Francisco da Costa.
Ele pinta Chegall, Matisse, Monet. Ele só quer conversar sobre cultura, sobre Nietszche. No começo da entrevista, me disse que leu Crime e Castigo. Pensei: “Esse cara não leu nada”. Perguntei o que ele havia achado. E ele falou: “Dostoievski é Dostoievski. Por exemplo, o Raskolnikov, o Rodia, que drama o dele. Sabe a Sônia, a prostituta? Ela tinha uma alma pura”. Ele me deu detalhes que eram difíceis de saber lendo a orelha do livro. (LUSTOSA apud CASOY, 2015, p. 21).
Isso porque Francisco da Costa na entrevista supracitada demonstra certa complacência pelo personagem Raskolnikov. Assim, ao analisar mais precisamente a construção desse personagem na narrativa de Dostoievski, nota-se uma verossimilhança desse personagem ficcional com Francisco da Costa. A exemplo dessa semelhança está no fato de que Raskolnikov também estudou Direito, vivenciava conflitos em função da extrema miséria, como também a sua pretensão em se considerar extremamente inteligente.
No entanto, a semelhança que mais chama atenção entre os dois se dá em função da sublimação, pois assim como Raskolnikov acreditava que o assassinato da Velha seria permissível por atenuar os problemas econômicos de uma maioria, Chico Picadinho declarou que matava prostitutas porque as enxergavam como mulheres irregulares e, portanto, passíveis de serem cabalmente aniquiladas. Nesse sentido, ambos utilizaram do mecanismo de defesa da sublimação para tornar algo socialmente negativo em uma conduta meramente aceitável para a percepção da sociedade. Portanto, depreende-se que os impulsos biológicos de Francisco da Costa quando alinhados aos traços de sua personalidade evidenciam um caráter não só misógino, como também de uma tentativa de reparação social segundo a sua realidade psíquica sobre o que é correto.
3.1- A Figura da Mulher na Sociedade: A Construção da Misógina.
Em primeiro lugar, a fim de entender a construção da mentalidade misógina de Francisco da Costa, é primordial compreender que tal processo também perpassou pela socialização em que ele estava inserido. Isso porque a objetificação da mulher era positivada em forma de normas que davam privilégios aos homens no Brasil por intermédio do “Pátrio Poder”. Segundo o Código Civil Brasileiro de 1916, o Pátrio Poder – pátria potesta era uma lei taxativa que dispunha legitimidade a soberania do marido na relação conjugal. Logo, a mãe compunha um papel secundário, haja vista a submissão ao seu marido como um dever, conforme expressa o artigo 380 “Durante o casamento, compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores passará o outro a exercê-lo com exclusividade.” (BRASIL, CC, 1916).
As formas assumidas pelo que definimos como família são diversas em tempos e contextos distintos, são afetadas por decisões políticas e normas institucionais e expressam relações de poder. São, também, constitutivas das identidades dos indivíduos, de suas alternativas e formas de desenvolvimento e de integração em comunidade e na sociedade. (MIGUEL et. al. BIROLI, 2014, p. 47)
Assim sendo, essa antiga legislação produziu efeitos não só para a organização do núcleo familiar, como também para a formação de uma identidade estereotipada da mulher, que se resumia a um estigma de passividade, condescendência e do lar. Além disso, os arquétipos que fugiam desse imaginário socialmente aceitável sobre a mulher eram duramente excluído das relações sociais. A exemplo de tal comportamento desviante para a endoculturação da época estão às mulheres envolvidas com prostituição, assim como as mulheres pobres que viviam o dilema entre escapar da pobreza por meio do trabalho e o medo de serem vistas como mulheres públicas.
Assim, em segundo plano, faz-se fundamental mencionar a visão tridimensional sobre a atitude misógina (PÉREZ et. al. FIOL apud Rosenberg et. al.Hovland, 1960). Conforme essa fundamentação, a atitude deve ser analisada mediante aos seguintes componentes definidos pela psicologia social: afetivo, cognitivo e comportamental. Isso porque a atitude responde aos estímulos do meio por intermédio de um desses componentes psicossociais. Nesse sentido, à luz dos relacionamentos de Francisco da Costa com as mulheres ao longo do tempo, nota-se que a sua construção afetiva sobre a mulher foi influenciada pelo referencial materno traumático.
Assim, a resposta de Francisco da Costa mediante a violência contra prostitutas, repulsa ao feminino por meio da agressão, bem como a sua declaração de verossimilhança da sua primeira vítima com a sua mãe, logo, evidenciam que a sua atitude misógina responde preponderantemente por meio do estímulo afetivo, visto que o referencial de Francisco da Costa sobre Dona Nancy é marcado por desajustes psicológicos em virtude da ausência biológica e afetiva da sua mãe durante o seu desenvolvimento.
Concomitante a essa questão estão os componentes cognitivos e comportamentais de Francisco da Costa, os quais tiveram grande influência dos valores patriarcais arraigados nas diferentes esferas da sociedade brasileira contemporânea ao desenvolvimento da personalidade de Francisco. Por conseguinte, os estereótipos e atitudes discriminatórias de Francisco ante a mulheres à margem do padrão social definido pode, consequentemente, ser justificado pela influência da dominação masculina sobre a realidade psíquica de Francisco da Costa. A exemplo do predomínio dessa construção social sobre a interpretação social de Francisco está a sua declaração aos repórteres do “Notícias Populares” após assassinar a primeira vítima” Matei porque sou revoltado contra esta vida em virtude do desajuste social da minha família e porque não admitia que uma mulher tivesse vida irregular, como uma prostituta”.
O sintoma mais importante no transtorno de personalidade antissocial é uma ausência ou culpa. As pessoas com transtorno de personalidade antissocial frequentemente se dizem indivíduos sem consciência. Por exemplo, depois de fazer algo errado, inapropriado ou ilegal, como roubar ou matar alguém, não mostrará qualquer ansiedade, culpa ou remorso. (TRINDADE, 2012, p.161).
Assim, apreende-se que a conduta delitiva de Francisco da Costa foi atenuada em seu cognitivo em função da normatização do sexismo na conjuntural da sociedade, como também em virtude do transtorno de personalidade antissocial observável em Francisco, haja vista a ausência de culpa desse indivíduo ao tentar legitimar o assassinato da vítima.
4.0 –“Boca de Lixo”: Ambiente Criminogênico.
Em virtude do sexismo estrutural normatizado pela sociedade brasileira durante as décadas de sessenta e setenta, nota-se que a mulher era vista pelo Estado e pelo homem como um indivíduo objeto, fora da condição de sujeito capaz de gozar os seus direitos e com capacidade de utilizá-los na vida civil – capacidade de fato (TEPEDINO, 2013). Por conseguinte, à medida que tal culturalização naturalizou a dominação masculina também proporcionou certa permissibilidade de comportamentos misóginos ante a figura da mulher.Nesse sentido, é importante mencionar a influência da região “Boca de Lixo” - principal ponto para o tráfico de drogas e prostituição sobre Francisco da Costa, uma vez que tal localidade frequentada corriqueiramente por esse indivíduo era palco para a naturalização da objetificação do corpo da mulher.
Ao aceitar qualquer relação estabelecida por contrato como sendo livremente escolhida, o liberalismo ignora tanto os diferentes constrangimentos que empurram pessoas a esses contratos por falta de alternativas quanto as consequências de contatos que tomam a forma da institucionalização da subordinação, como é o caso dos contratos de trabalho e de casamento. A prostituição seria uma exacerbação dessa subordinação, permitindo ao cliente um acesso unilateral e ilimitado ao corpo da prostituta, tendo sua satisfação como único critério de desempenho e, em particular, em que ele ofereça a proteção que, nos contratos de trabalho e casamento, é a contrapartida dada à obediência. (MIGUEL et. al. BIROLI, 2014, p.144).
Em primeiro lugar, ao considerar a condição neurobiológica de Francisco da Costa somada à disfunção materna vivenciada por ele, torna-se inegável a repulsa ao feminino nos crimes cometidos por Francisco da Costa. No entanto, o comumente contato de Francisco da Costa com o ambiente “Boca de Lixo” também denuncia um caminho tênue entre a sanidade e a delinquência. Isso porque o ambiente arraigado pela prostituição e o consumo de drogas – Boca de Lixo potencializou o desequilíbrio comportamental de Francisco da Costa intrínseco a sua psicopatia, uma vez que tal condição neurobiológica de Francisco da Costa o condiciona a uma sensibilidade à embriaguez, como também a agressividade sobre a mulher por intermédio da arbitrariedade que Francisco encontrava na prostituição para deliberar as suas vontades sexuais.
Nesse sentido, em segundo lugar, nota-se que o ambiente criminogênico influencia o olhar do delinquente sobre o meio em que está inserido, pois a psicopatia é multicausal e, portanto, passível de ser construída por meio dos estímulos do meio. Logo, conforme exemplifica o livro de Psicologia Jurídica quanto a atuação das Funções Mentais Superiores dos indivíduos (FIORELLI et. al. MAGININI, 2020), é possível dizer que os estímulos que Francisco da Costa recebia quando frequentava o local “Boca de Lixo” aguçava a sua memória para os percalços da infância ligados a ausência da afetividade familiar e representatividade materna traumática e assim, consequentemente, Francisco era tomado por distorções e ampliações de atributos emocionais em virtude do significado negativo que Francisco atribuiu a sua percepção do feminino.
Entende-se, diante desse cenário, que a misoginia foi, durante as décadas de sessenta e setenta, resultado da institucionalização da mulher como ente incapaz de se auto-representar na esfera civil. Por conseguinte, o arquétipo que a dominação masculina criou sobre a mulher brasileira é de um ser instrumentalizado para atender as vontades do homem, seja ele o parceiro conjugal ou o cliente que contrata o serviço de prostituição ilegalmente. Assim, o imagético do homem inserido nesse contexto social não concebe a mulher como um sujeito de direitos assim como ele. Dessa maneira, Boca de Lixo é um ambiente criminogênico de grande preponderância sobre a identidade de Francisco da Costa não só pelo apelo à ilegalidade, como também a naturalização comportamental entre os homens que frequentava aquele meio da acepção de que a mulher é apenas objeto para a sexualização e dominação do homem.
5.0 - Considerações Finais.
Em consonância com a análise supracitada dos casos concretos de assassinato protagonizados por Francisco da Costa, conclui-se que o embasamento psicológico, bem como a observância dos fenômenos sociais como mecanismo para interpretar o Direito na sociedade ao longo do tempo nortearam a pesquisa ante a necessidade de identificar como a misoginia é construída e somada à personalidade psicopata de Chico Picadinho. Portanto, depreende-se que o indivíduo psicopata não pode ser traduzido generalizadamente pela sociedade como um ser de alta periculosidade, haja vista que somente o fator neurobiológico para a psicopatia não presume que o sujeito psicopata não seja hábil para viver harmoniosamente no meio social e capaz de preservar o direito do Outro a vida.
Assim, ao considerar que a pessoa humana é um objeto processual, torna-se indispensável à ótica das ações sociais do sociólogo Max Weber (WEBER, 2004) como elementos inerentes à construção do sujeito, uma vez que as ações sociais ligadas a afetividade, a culturalização tradicional, as ações racionais, a moralidade e a ética são um mecanismo abstrato que referenciam a endoculturação singular de cada indivíduo e esses, por consequência, modificam a sociedade por intermédio dessas ações que transmutam a percepção psicossocial do sujeito sobre a realidade. Sob esse parâmetro, logo, demonstra-se que a naturalização da misoginia em diversas esferas sociais no século XX – vivenciada por Francisco da Costa, bem como na contemporaneidade alude um comportamento desviante em potencial dos indivíduos inseridos nessa socialização que desconsidera a misoginia como um comportamento indesejável.
Segundo o Manual de Psicologia Jurídica (TRINDADE, 2012) “Portanto, natureza e cultura, hereditariedade, genética e ambiente, são fatores conectados na complexa equação do ser humano (...)”. Assim, posto que a psicopatia seja um fator genético e, por isso, presumem-se maiores ou menores predisposições genéticas para esse distúrbio mental, depreende-se que até os indivíduos com menor grau para essa psicopatologia podem desenvolver a personalidade psicopata misógina quando inseridos em um ambiente em que a violência contra a mulher e ao significado de feminino é sublimada.
A exemplo do agravante dessa perspectiva na contemporaneidade estão os casos de Feminicídio, em que o parceiro comumente pratica o crime contra a mulher com requintes de crueldade tomado por uma intensa emoção ante o sentimento de posse e, por conseguinte, esse ciúme socialmente construído e de caráter permissível por meio da romantização em seu imagético o conduz para a violação do direito humano da mulher à vida e a liberdade por intermédio da violência e do assassinato. Entende-se, diante do exposto, a importância de analisara imputabilidade penal não somente por intermédio da dogmática jurídica, uma vez que o prisma histórico e social que norteiam a sociedade pode, não raro, construir paradigmas naturalizados por esse arranjo social e que, em certo grau, afetam a compreensão do Direito e a sua dialética com a justiça como observado na semi-imputabilidade atribuída a Francisco da Costa que o permitiu sair da Colônia Penal Agrícola Professor Noé Azevedo, em Bauru e, posteriormente, essa liberdade resultou no segundo assassinato cometido por ele (LINHA DIRETA, 2004).
Para tanto, faz-se fundamental ao operador do Direito a investigação das causalidades envolvidas na formulação de uma regra por meio da Zetética, a fim de que esse mecanismo indagatório promova uma ótica critica do operador ante ao que é normativo em cada sociedade. Nesse sentido, faz-se fundamental a reinterpretação distópica da lei somada ao entendimento dos fatores biopsicossociais como elementos intrínsecos aos casos concretos, logo, essa nova acepção sobre a construção do Direito podem tornar a resolução dos casos mais exequíveis e mais inequívocos.