Um ato que afronta a moralidade e a razoabilidade da administração

25/09/2020 às 08:26
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE ATO ADMINISTRATIVO ENVOLVENDO PROMOÇÃO COLETIVA.

I – O FATO

A Advocacia-Geral da União (AGU) promoveu de uma tacada só 607 procuradores federais. A maioria deles - 606 procuradores - foi promovida para o topo da carreira. Agora, dos 3.783 procuradores federais, 3.489 (92%) estão na chamada categoria especial, com salário de R$ 27,3 mil. 

As promoções se antecipam à reforma administrativa, que pode atingir as carreiras dos atuais servidores e acontece depois do movimento do ministro da Economia, Paulo Guedes, para conter o aumento da folha de pessoal por meio da lei 173, que congelou os salários até 2021, além da concessão de bônus.

A lista inclui ao todo 607 promoções (304 por merecimento e 303 por antiguidade no cargo). Exceto um procurador da lista, todos os outros subirão para o topo da carreira. As mudanças ocorrem sem que haja, necessariamente, uma alteração na função. A promoção foi autorizada na sexta-feira da semana passada - a informação foi revelada pelo site Poder360.

A dita promoção foi objeto da Portaria nº 510, de 18 DE setembro de 2020.

Ali se dizia:

“Art. 1º Promover os membros da carreira de Procurador Federal relacionados nos Anexos I e II desta Portaria, com as seguintes especificações: I - o período de avaliação; II - o âmbito da movimentação (da Primeira Categoria para a Categoria Especial e da Segunda Categoria para a Primeira Categoria); III - total de vagas oferecidas para promoção em ambas as Categorias; IV - a lista de candidatos com direito à promoção por Antiguidade; e V - a lista de candidatos com direito à promoção por Merecimento.”

Essa de uma forma “enviesada” de reajuste de vencimentos, via portaria, ato normativo secundário.  

II – REAJUSTE DE SERVIDORES

Ora, o reajuste de servidores públicos somente se dá por lei.

A fixação de vencimentos e seu aumento competem ao Poder Legislativo, que examina a proposta de reajuste apresentada pelo Poder Executivo (RTJ 54/384). Entende-se que ao Judiciário somente cabe examinar a lesão ao princípio constitucional da igualdade. Não cabe o exame da justa ou injusta situação do servidor, que deveria estar no nível mais alto.

A par disso, a teor do artigo 37, X, da Constituição Federal, “a revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data.

Por revisão geral deve-se entender aquele aumento que é concedido em razão da perda do poder aquisitivo da moeda. Tal não visa a corrigir situações de injustiça ou de necessidade de revalorização profissional de determinadas carreiras mercê das alterações ocorridas no próprio mercado de trabalho, nem objetiva contraprestar pecuniariamente níveis superiores de responsabilidades advindas de reestruturações ou reclassificações funcionais.

A norma constitucional, prevista no artigo 37, inciso XV, da Constituição autoriza somente a irredutibilidade nominal dos vencimentos e não a irredutibilidade real, ou seja, a manutenção do poder aquisitivo de compra.

Some-se a isso que a norma constitucional referenciada não tem aplicação imediata, pois depende de edição de lei posterior emanada do Poder Executivo, para que seja possível alterar-se os vencimentos de seus servidores.

Aliás, no julgamento dos RE 94.011, 96.458, 100.007 e 101.183, restou estabelecido que a decadência do poder aquisitivo da moeda não gera a revisão automática dos vencimentos. Isso porque o reajuste fica dependente de iniciativa da lei do Poder Executivo, na forma do artigo 57, inciso II, da Constituição.

III – PROMOÇÃO

Promoção é provimento derivado vertical que é aquele em que o servidor é guindado para cargo mais elevado. Efetua-se, através, de promoção, por merecimento ou antiguidade, critérios alternados de efetuá-la.

Promoção é a elevação para o cargo de nível mais alto dentro da própria carreira.

Não há mudança de cargo, mas simples elevação de uma parcela integradora dos vencimentos, ora por antiguidade, ora por merecimento, concebida como forma de estímulo ao servidor que, em despeito de seu tempo de serviço no cargo, ou do bom desempenho dele, não tem como ascender, por estarem preenchidos os escalões superiores, como ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de direito administrativo, 17ª edição, pág. 282).

Na lição de Cretella Júnior(Curso de direito administrativo, 7ª edição, pág. 524) duplo fundamento reveste o instituto da promoção.

Quanto a primeira, “a promoção justa, um dos pilares de um bom serviço civil”, é o melhor veículo de que pode o Estado lançar mão para guindar aos postos mais altos os servidores públicos idôneos, os quais colocaram a serviço da Administração, nas respectivas funções que desempenham, a competência, a laboriosidade, a experiência, a assiduidade, todas as qualidades pessoais que dispõem.

Tito Prates da Fonseca, mencionado por Cretella Júnior(obra citada, pág. 529), esclareceu que o que deve prevalecer na matéria de promoções, deve ser o interesse público e não os dos componentes da carreira.

Não há direito subjetivo à promoção como disse Brandão Cavalcanti.

Nessa linha disse Mário Mazagão conclui pela inexistência do direito ao acesso, tanto assim que “não fere direito à promoção: a) a demora no provimento que, salvo disposição especial de lei, pode ser indefinida; b) a alteração por lei, depois de surgida a vaga, dos requisitos e processo do provimento; c) a supressão do cargo de acesso, depois de vago”.

A promoção, se feita, deve levar em conta aspectos objetivos para avaliação do servidor público, seja por merecimento ou por antiguidade, dentro dos limites traçados no interesse público. Um decreto regulamentador detalharia essa forma de promoção.

Um reenquadramento genérico somente viria por lei e não por mero ato administrativo, pois não se trataria de promoção.

IV – OS ARTIGOS 37, X E 61, 1º, A, DA CF

Se assim não é, seria uma forma desviada de reajuste?

Parece-nos que sim.

 O caso concreto leva em conta uma alteração nos subsídios.

Há uma imposição de que só por lei se fixe a retribuição de cargos, funções ou empregos no Estado e em suas pessoas auxiliares de Direito Público. Assim, o artigo 37, X, estabelece que a remuneração dos servidores públicos, inclusive sob a forma de subsídio, somente poderá ser fixada ou alterada por lei especifica. Veja-se bem: lei específica e não por mero ato administrativo.

O artigo 61, § 1º, II, “a” da Constituição Federal dispõe que a criação de cargos ou empregos públicos ou o aumento de suas remunerações dependem de lei, de iniciativa do Chefe do Executivo, na esfera desse Poder.

Aponto que o ato que determinou a promoção genérica de advogados da União, noticiado pela imprensa, de forma ampla, afronta além do princípio da legalidade, os princípios da moralidade e da razoabilidade.

Aliás, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) pediu uma liminar para suspender o aumento salarial que foi concedido a 607 procuradores federais promovidos pela Advocacia-Geral da União (AGU) - 606 deles vão passar a receber R$ 27,3 mil. No pedido, o MP diz que a promoção é "inoportuna e indecorosa" e mostra indiferença com a população mais pobre chamada a pagar a conta exatamente no momento em que, possivelmente, enfrentam as maiores dificuldades com a covid-19, consoante informou o Estadão, em seu site no dia 24 de setembro do corrente ano.

Em requerimento apresentado nesta quinta-feira, 24, o MP pede também aos ministros do TCU que tomem medidas necessárias para avaliar o ato da AGU que promoveu simultaneamente os 607 procuradores, dos quais 606 para o topo da carreira. A promoção foi revelada pelo site Poder360.

Ora, se há lei que congela os vencimentos, impedindo reajustes, há impedimento, outrossim, para eventuais promoções.

O reajuste anual da remuneração dos servidores públicos só é possível se a despesa constar da Lei Orçamentária Anual (LOA) e estiver prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Assim entendeu, por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal ao analisar recurso em sessão virtual. 

Hely Lopes Meirelles afirmou:

Há duas espécies de aumento de vencimentos: uma genérica, provocada pela alteração do poder aquisitivo da moeda, à qual poderíamos denominar de aumento impróprio, por se tratar, na verdade, de um reajustamento destinado a manter o equilíbrio da situação financeira dos servidores públicos; e outra específica, geralmente feita à margem da lei que concede o aumento geral, abrangendo determinados cargos ou classes funcionais e representando realmente uma elevação de vencimentos, por se fazer em índices não proporcionais ao do decréscimo do poder aquisitivo. (in Direito Administrativo Brasileiro, 29ªed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 459).

Aplica-se o princípio da moralidade, em resumo, sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado, que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia comum de honestidade.

V – PRINCIPIOS OFENDIDOS

Agride, pois, esse ato normativo editado aos princípios da boa administração.

Para Hauriau a moralidade administrativa seria “o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração; implica não só distinguir o bem e o mal; o legal e o ilegal, o justo e o injusto; o conveniente e o inconveniente, mas ainda entre o honesto e o desonesto; há uma moral institucional, contida na lei, imposta pelo Poder Legislativo; e há a moral administrativa, que é imposta de dentro e que vigora no próprio ambiente institucional e condiciona a utilização de qualquer poder jurídico, mesmo o discricionário”, como se lê de Maria Sylvia Zanella di Pietro (Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, pág. 102).

É certo ainda que Maria Zanella de Pietro, ao estudar a moral em relação ao objeto do ato administrativa, repele, desde logo, que se pretenda relacionar a moralidade com a mera intenção do agente. Enfatiza Maria Sylvia Zanella de Pietro que a sua presença deve ser mais objetiva que subjetiva. Disse Maria Sylvia Zanella de Pietro (obra citada): ‘O princípio da moralidade tem utilidade na medida em que diz respeito aos próprios meios de ação escolhidos pela Administração Pública.

Muito mais do que em qualquer outro elemento do ato administrativo, a moral é identificável no seu objeto ou conteúdo, ou seja, no efeito jurídico imediato, que o ato produz e que, na realidade, expressa o meio de atuação pelo qual opta a Administração para atingir cada uma de suas finalidades”.

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Não será preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isso ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições.

Na aferição da moralidade administrativa será preciso observar o princípio da razoabilidade.

Disse Juan Francisco Linares (Princípios gerais de direito público, 1977, pág. 183), “a razoabilidade, embora tenha certo caráter autônomo, é uma decorrência do princípio da legalidade; a prestação legislativa não se satisfaz com qualquer legislação, mas somente com a razoável, ou seja, a que atenda ao conteúdo dogmático que se encerra na norma constitucional; trata-se de uma garantia do devido processo substantivo, também adotada no direito norte-americano”.

Celso Antônio Bandeira de Mello analisou o princípio da razoabilidade como limite da discricionariedade administrativa. Parte ele da ideia de que, se a lei outorga poderes discricionários à Administração Pública, é porque quer que ela, diante do caso concreto, encontre a melhor solução para atender ao interesse público. “Sobremodo no Estado de Direito, repugnaria ao senso normal dos homens que a existência de discrição administrativa fosse um salvo-conduto para a Administração agir de modo incoerente, ilógico, desarrazoado e o fizesse precisamente a título de cumprir uma finalidade legal”.

Ademais, às escâncaras, a desproporcionalidade entre meios e fins diante dessa medida se revelam contundentes.

Afrontam-se os princípios da lealdade e da boa-fé.

Na matéria, Jesús Gonzáles Perres(El principio general de la buena fe em el derecho administrativo, Madrid, 1983) ensinou que por força desses princípios citados, firmou-se o correto entendimento de que orientações firmadas pela Administração em dada matéria não podem, sem prévia e pública notícia, ser modificadas em casos concretos para fins de sancionar, agravar  a situação dos administrados ou denegar-lhes pretensões, de tal sorte que só se aplicam aos casos ocorridos depois de tal notícia.

VI – CONCLUSÕES

Em síntese: a remuneração dos servidores públicos somente pode ser fixada ou alterada por lei específica, não por ato administrativo.

Os advogados públicos federais já recebem os honorários de sucumbência (pagos pela parte derrotada em um processo judicial) pela sua atuação. Em 2019, o governo repassou R$ 590 milhões, segundo o MP que atua perante o TCU, para a carreira.  Torna-se difícil justificar mais aumento de despesa do Poder Público em favor deles, exatamente no momento da explosão das despesas para o enfrentamento da covid—19.

 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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