Não é de hoje que o Direito do Trabalho e as reclamações trabalhistas são um calo no sapato dos empresários. E é natural que o seja, porque o Direito do Trabalho é – em última análise – aquele conjunto de normas que limita os poderes do empregador em relação aos seus empregados, garantindo que as relações subordinadas se mantenham minimamente equilibradas.
Quando as sociedades empresárias entram em crise, o “cobertor fica curto” e começa uma corrida dos credores para tentar receber seus créditos, paralela à tentativa da empresa de se reorganizar, pagar suas dívidas e retomar o curso da produção de riquezas e da manutenção dos empregos. Desde 2005, a forma que o Direito tem de socorrer a todos os envolvidos na crise empresária é a Recuperação Empresas, instituída no Direito brasileiro pela lei 11.101/05.
Sobre a recuperação de grupos empresariais a lei é omissa, mas a doutrina e a jurisprudência resolveram esta lacuna possibilitando que a devedora apresente litisconsórcio ativo e plano consolidado reunindo ativo e passivo das empresas coligadas.
Ocorre que, embora não trate sobre a possibilidade de um plano conjunto, a Lei 11.101/05 não ignora a existência dos grupos empresariais e, dentre suas previsões estão as dos artigos 76 c/c 82 que dizem que pertence ao Juízo da Recuperação Judicial e da Falência - de maneira exclusiva - a competência para decidir acerca da responsabilidade de controladores, acionistas ou sócios, da sociedade recuperanda ou falida e que somente o juízo universal pode decidir sobre a responsabilização de empresas do mesmo grupo econômico:
Art. 76. O juízo da falência é indivisível e competente para conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas não reguladas nesta Lei em que o falido figurar como autor ou litisconsorte ativo. .
Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.
Isso implica dizer que o reclamante (ex-)empregado de uma empresa em recuperação judicial ou falida deve habilitar seu crédito naquele juízo e lá pleitear as responsabilidades de terceiros que entenda por bem perseguir. De outro lado, portanto, não pode ser da Justiça do Trabalho a jurisdição para desconsiderar a personalidade jurídica do empregador ou para direcionar execuções trabalhistas às demais empresas do mesmo grupo econômico.
Esse foi o entendimento da 13ª Turma do Tribunal Regional da 2ª Região ao apreciar a tese recursal no processo 1001294-46.2019.5.02.0318, em acórdão da relatoria da ilustre desembargadora TANIA BIZARRO QUIRINO DE MORAIS, publicado em 25 de setembro de 2020, no qual a sentença foi reformada para declarar a incompetência material da Justiça do Trabalho “decidir acerca da responsabilidade de controladores, acionistas ou sócios, da sociedade recuperanda” e extinguir o feito sem resolução do mérito em face das recorrentes. Tal entendimento está na esteira do que decidira há pouco tempo outro regional, o da 3ª Região no processo 0002018-66.2011.5.03.0012.
O acórdão mais recente ainda ressalta que os dispositivos acima indicados já tiveram sua constitucionalidade apreciada pelo pleno do Supremo Tribunal Federal na ADI 3934/DF, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, cuja decisão foi publicada em 06.11.09:
"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - ARTIGOS 60, PARÁGRAFO ÚNICO, 83, I E IV, "c", E 141, II, DA LEI 11.101/2005 -FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO JUDICIAL - INEXISTÊNCIA DE OFENSA AOS ARTIGOS 1º, III E IV, 6º, 7º, I, E 170, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL de 1988 - ADI JULGADA IMPROCEDENTE. I
- Inexiste reserva constitucional de lei complementar para a execução dos créditos trabalhistas decorrente de falência ou recuperação judicial.
II - Não há, também, inconstitucionalidade quanto à ausência de sucessão de créditos trabalhistas.
III - Igualmente não existe ofensa à Constituição no tocante ao limite de conversão de créditos trabalhistas em quirografários.
IV - Diploma legal que objetiva prestigiar a função social da empresa e assegurar, tanto quanto possível, a preservação dos postos de trabalho.
V - Ação direta julgada improcedente
(STFADI- 3934/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski,Tribunal Pleno, DJ de 06/11/09)"
Antes que se diga que esta situação proporcionaria a fraude aos direitos alimentares dos trabalhadores, lembre-se de que ato fraudulento é ato nulo e, como tal, não convalesce. Se a fraude for comprovada, o juízo competente universal decidirá sobre tal fraude e arrecadará os bens de quem a operou em favor da coletividade dos credores, dentre eles, aquele demandante que apontou e provou a fraude.
E é assim que tem que ser, sob pena de se esvaziar por completo a recuperação judicial ou a falência de empresas que sejam pertencentes a qualquer grupo empresarial, porque a corrida individual pelo ouro desestabiliza as relações jurídicas existentes entre os próprios credores, entre os credores e os devedores da recuperanda/falida e relação às demais empresas que tenham tido qualquer tipo de relação societária.
É certo que todos buscam a efetividade da preservação dos direitos, mas os direitos individuais não podem se sobrepor ao interesse comum. Quando um credor trabalhista de uma empresa em recuperação ou falência, deliberadamente e até mesmo antes de habilitar ou reservar seu crédito sai à caça de outras empresas do grupo econômico (ou que acreditam que são do mesmo grupo) para pagar seu crédito, ele inverte a lógica do sistema, passa na frente de outros trabalhadores que têm tanto direito quanto ele de receber, desestabiliza as relações de poderes dentro da Assembleia de Credores e espalha a crise econômica da sua empregadora à outras empresas que, muitas vezes, com ela mal se relacionam.
Quem milita na Justiça do Trabalho ou na área de Recuperação de Empresas e Falência já se deparou com situações em que meras relações comerciais são usadas como meio de esparramar a dívida trabalhista para empresas que não fazem parte da RJ ou da falência com o único objetivo de “fazer alguém pagar a conta”.
E qual é o problema de “fazer alguém pagar a conta” de uma verba de natureza alimentar, que advém de uma relação que se baseia na cessão da força de trabalho para a obtenção de lucro da sociedade empresária e que assumiu o risco do negócio?
O problema é que isso é ilegal, viola dispositivo de lei federal que não permite interpretações e cuja constitucionalidade já foi declarada pelo STF.
O Sistema brasileiro é positivista e – gostem ou não os intérpretes – coloca na lei positivada a segurança jurídica. Quando a Justiça do Trabalho se diz competente para além dos limites do que a lei o determina, ela viola o Princípio da Legalidade e, em última análise, coloca em risco todo o sistema jurídico.
Não existe lei boa ou lei má, lei que pega e que não pega ou lei que se aplica ao bel prazer do legislador. Existe lei válida, vigente, constitucional. A quem não concorde com a lei, que use dos mecanismos existentes dentro do próprio sistema legislativo para reformá-la, se for possível. E enquanto não for alterada, cumpra, porque essa é a única maneira de manter a democracia e paz social.