O ARTIGO 42 DO CPP DIANTE DE UM FATO CONCRETO
Rogério Tadeu Romano
I – O FATO
Observo da excelente reportagem do jornal O Globo, publicada em 30 de setembro do corrente ano, e que abaixo transcrevo.
Três meses após ter denunciado o deputado Arthur Lira (PP-AL) ao Supremo Tribunal Federal (STF) sob acusação de corrupção passiva, a Procuradoria-Geral da República (PGR) voltou atrás na acusação e pediu ao STF que rejeite a denúncia que o próprio órgão havia apresentado. Aliado recente do presidente Jair Bolsonaro, Arthur Lira é um dos expoentes do centrão e se tornou uma espécie de líder informal do governo na Câmara. Tem seu nome cotado para disputar a Presidência da Casa.
Na denúncia apresentada em junho, a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, coordenadora da Lava-Jato na PGR e pessoa de confiança do procurador-geral da República Augusto Aras, escreveu que os elementos de corroboração colhidos pela investigação permitiram comprovar o repasse de propina ao parlamentar: "Ante o exposto, resta provado, para muito além de meras palavras de colaboradores, que o Deputado Federal ARTHUR CÉSAR PEREIRA DE LIRA recebeu, em duas vezes, indiretamente, vantagem indevida de R$ 1.598.700,00 (um milhão, quinhentos e noventa e oito mil e setecentos reais), em razão da função pública, provenientes de valores desviados de obras da PETROBRAS S/A, pela empresa QUEIROZ GALVÃO".
A PGR apontou uma sofisticada engenharia financeira, por meio do uso de doleiros, dentre eles Alberto Youssef, para gerar os valores desviados da Petrobras e entregá-los em dinheiro vivo a Lira em Brasília. "Em momento posterior, o dinheiro foi fracionado e transferido ao exterior ( crime de evasão de divisas) e depois novamente internalizado mediante operações paralelas de câmbio, conhecida por operação dólar-cabo. O valor foi devolvido a ALBERTO YOUSSEF, responsável por entregar o dinheiro em espécie a assessor do parlamentar ARTHUR DE LIRA", escreveu na denúncia.
Agora, em manifestação protocolada na segunda-feira em resposta a um pedido da defesa de Arthur Lira para que o STF rejeitasse a denúncia, Lindôra descontruiu a própria acusação e apontou a existência de "fragilidade probatória". "Não há elementos nos autos que comprovem o elo entre o parlamentar e a Queiroz Galvão", escreveu. Prossegue Lindôra: "Há contradição entre as narrativas apresentadas pelos colaboradores ALBERTO YOUSSEF e CARLOS ALEXANDRE DE SOUZA ROCHA quanto ao destino dos valores ilícitos pagos pela construtora Queiroz Galvão - um pagamento de R$ 1.005.700,00 e outro de R$ 593.000,00, ambos realizados em Brasília nos dias 16 e 17/0512012. Ademais, não consta da planilha de controle do 'caixa de propina' à disposição do Partido Progressista nenhuma informação de que os referidos valores seriam destinados a ARTHUR CÉSAR PEREIRA LIRA (consta a informação de que o 'dinheiro foi para BSB destinado a políticos do PP / Liderança')".
"Tais circunstâncias revelam, por ora, a fragilidade probatória quanto aos fatos imputados ao Deputado Federal ARTHUR LIRA. Por conseguinte, em juízo de parcial retratação, manifesta-se o Ministério Público Federal favoravelmente ao pleito defensivo. a fim de que seja rejeitada a denúncia em relação a ARTHUR CÉSAR PEREIRA LIRA, com fundamento na ausência de justa causa", escreveu Lindôra ao ministro do STF Edson Fachin, relator do caso.
Esse é o fato.
II – PRINCIPIOS DA INDISPONIBILIDADE E OBRIGATORIEDADE
Ora, diverso da ação civil, na ação penal pública não cabe falar em desistência.
Pertencendo a ação penal ao Estado(salvo exceções), segue-se que aquele a quem se atribui o seu exercício, o Ministério Público, não pode dela dispor. Os órgãos do Ministério Público não agem senão em nome da sociedade que eles presentam. Eles têm o exercício, mas não a disposição da ação penal, esta não lhes pertence.
Ensinou Fernando da Costa Tourinho Filho(Processo Penal, primeiro volume, 1982, 6ª edição, pág. 284) que “e, por não lhes pertencer, não podem os órgãos do Ministério Público dela desistir, transigindo ou acordando, pouco importando seja ela incondicionada ou condicionada.
Observo o artigo 42 do CPP:
Art. 42. O Ministério Público não poderá desistir da ação penal.
Como bem acentuou Guilherme de Souza Nucci(Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 168) consagra-se o princípio da indisponibilidade da ação penal corolário do princípio.
Esse dispositivo constante do artigo 42 do CPP é salutar e não supérfluo, porque torna nítido que o oferecimento da denúncia transfere, completamente, ao Poder Judiciário a decisão sobre a causa. Até que haja o início da ação penal poderá o promotor oferecer o arquivamento. Após, não, a teor do artigo 28 do CPP.
Trata-se de um princípio informador da ação penal pública.
Derivam, também, do princípio da indisponibilidade a impossibilidade de se realizarem no processo penal aquelas formas de composição de litígios que ocorrem na área cível, como a transação, a conciliação e o compromisso arbitral. Ministério Público e acusado não podem fazer acordos dentro ou fora do processo para aplicação de pena menos grave ou para substituição de penas legais por indenização pecuniária.
Na lição de Paulo Rangel(Direito processual penal, vigésima edição, p. 238):
A ação penal pública, uma vez proposta (obrigatoriedade) em face de todos os autores do fato ilícito (indivisibilidade), não permite ao Ministério Público desistir do processo que apura o caso penal, pois seu mister é perseguir em juízo aquilo que é devido à sociedade pelo infrator da norma, garantindo-lhe todos os direitos previsto na Constituição da República para, se for provada sua culpa, privar-lhe da sua liberdade; porém o direito de punir pertence ao Estado-juiz. Portanto, não pode dispor, o Ministério Público, daquilo que não lhe pertence.
Disse ainda Fernando Tourinho:
“Costuma-se dizer, às vezes, que o Promotor “abandonou a acusação”. Tal afirmativa, no sentido de que o Promotor desistiu da ação penal, sabe a disparate. Significa, como bem lembra Donnedieu de Vabres, que o órgão do Ministério Público se pronunciou favoravelmente ao imputado, o que é diferente”.
Por outro lado, dispondo o Ministério Público dos elementos mínimos para a propositura da ação penal, deve promove-la(sem se inspirar em critérios políticos ou de utilidade social).
Seria possível, após o encerramento da instrução, uma proposta de absolvição por parte do Parquet ao juízo criminal. Mas isso se diferencia totalmente do caso em exame onde foi pedido o arquivamento após o oferecimento da denúncia formulada pelo órgão da acusação.
Assim caso o membro do Ministério Público esteja convencido, após a instrução probatória, da inocência do réu, deve manifestar-se, como guardião da sociedade e fiscal da justiça aplicação da lei, em sede de alegações finais, pela absolvição do imputado, o que não significa disponibilidade do processo.
No entanto, há decisão no sentido que abaixo apresento:
No caso em questão, como ainda não havia sido iniciada a ação penal, já que ainda não recebida a denúncia pelo Juiz, nada impedia o órgão acusador de excluir da denúncia, depois de melhor exame, quem era objeto de suspeita inicial, não havendo, assim, que se falar em violação aos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade. Precedente da Suprema Corte.
5. Ordem denegada . (HC 47.536⁄BA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 19⁄10⁄2006, DJ 20⁄11⁄2006, p. 345).
-"O órgão acusador pode excluir da denúncia, depois de melhor exame, quem era objeto de suspeita inicial; pode aditá-la para ampliar os limites da imputação e o rol de acusados, ocasião em que poderá ocorrer alteração da competência, sem que restem feridos os princípios da legalidade, obrigatoriedade, indisponibilidade (...)"(STF, HC 71899-0/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa - DJU 25.05.1995).
Dir-se-á que na medida em que o órgão da acusação desistindo da ação penal, afronta o artigo 42 do CPP, uma vez que a ação penal se esgotou na provocação da jurisdição. Agora, o que haverá é processo.
Aguardemos, pois, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na matéria.