INTRODUÇÃO
O objetivo central desta pesquisa é estudar e analisar a atuação do delegado de polícia na documentação da prisão em flagrante delito. Trazendo para estudo as previsões legais sobre o tema quando da lavratura do auto de prisão em flagrante, dado a grande divergência doutrinária sobre o assunto. E girando em torno do artigo 310, parágrafo primeiro do Código de Processo Penal, que diante de sua leitura restrita não traz a resposta a indagação: “Pode a autoridade de polícia judiciária documentar a prisão em flagrante examinando ou não as excludentes de ilicitude?”.
Para tanto foi feita uma extensa pesquisa e trouxe à tona os diferentes posicionamentos doutrinários acerca do tema e os entendimentos majoritários, inclusive dos Tribunais.
Antes de tudo, se faz mister classificar a prisão em flagrante, prevista nos arts. 301 e seguintes do Código de Processo Penal como medida cautelar.
O artigo trata especificamente da prisão em flagrante a cargo da Autoridade de Polícia Judiciária, apontando que essa extensão do poder de iniciativa cautelar significou a aceitação do risco de privação, temporária, da liberdade pessoal do cidadão por razão de ordem pública.
Entretanto, é importante salientar, quando essa prisão em flagrante ocorre, exige-se que, além dos fundamentos positivos da tipicidade, também, devem haver a ausência de causas de justificação (excludentes de ilicitude); ou seja, se houve elementos probatórios de que o acusado agiu, manifestadamente, ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude deve a autoridade de polícia judiciária analisar como causas de não ratificação ou competiria apenas ao juiz tal verificação.
Feitas estas considerações, esta pesquisa primeiro tratará dos aspectos legais da prisão em flagrante, como conceito, requisitos, espécies de flagrante previstas no artigo 302 e outros desdobramentos que a envolve.
O segundo dedicará a teoria do crime e o seguinte o estudo das excludentes de ilicitude, a natureza das excludentes, incidência das excludentes no Autor de Prisão em Flagrante Delito e excludentes como causa de não ratificação.
Por fim, estudará a análise das excludentes de ilicitude pelo delegado, as discussões que envolvem o problemático artigo 310, parágrafo primeiro do Código de Processo.
1. PRISÃO
Iniciemos com a definição de prisão, em que se trata de um ato no qual ocorre a privação da liberdade de locomoção de determinado agente, seja em decorrência de flagrante delito ou de ordem e escrita e fundamentada de autoridade judiciária. De forma simplória, a prisão em suas duas modalidades citadas, é, nos ensinamentos de Max Weber o Estado praticando o monopólio do uso legítimo da força/coerção (WEBER, 2015, pág. 62).
Guilherme Nucci sustenta que a prisão “é a privação da liberdade, tolhendo-se o direito de ir e vir, através do recolhimento da pessoa humana ao cárcere, por absoluta necessidade da instrução processual” (NUCCI, 2020, pág. 635)
Insta salientar que nossa Carta Magna aborda a prisão, delimitando o poder coercitivo do estado, conforme verificasse no art. 5º, LXI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88), em que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar.
Diversas são as definições ou delimitações de espécies de prisão por parte dos mais diversos doutrinadores, mas para o presente trabalho trataremos apenas da Prisão em Flagrante Delito.
1.2 Prisão em flagrante deleito
Destrinchando o supracitado título, prisão trata-se do tolhimento do direito de ir e vir da pessoa humana. Já o flagrante, tem por significado arder, queimar, aquilo que é manifesto, que está em chamas e evidente. E o deleito de forma cristalina são as infrações penais definidas em lei.
Fernando Capez ensina que a prisão em flagrante delito trata-se de prisão, de natureza cautelar, independente de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, de quem seja surpreendido cometendo, ou logo após de ter cometido uma infração penal, pouco importando se um crime ou uma contravenção penal (CAPEZ, 2019, pág. 322).
Para Nucci, prisão em flagrante é a modalidade de prisão cautelar, “de natureza administrativa, realizada no instante em que se desenvolve ou termina de se concluir a infração penal” (NUCCI, 2020, pág. 651).
Para Júlio Fabbrini Mirabete (1997, pág. 383, CAPEZ, 2019, pág. 322), “flagrante é o ilícito patente, irrecusável, insofismável, que permite a prisão do seu autor, sem mandado, por ser considerada a ‘certeza visual do crime’” (CAPEZ, 2019, pág. 322).
O código de processo penal de 1941, traz em seu título IX, capítulo II, no art. 302, a relação de hipóteses de flagrante delito, a saber: quem está cometendo a infração penal; quem acaba de cometê-la; é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser o autor da infração; quem é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração.
1.1.1 Flagrante próprio
Espécie de flagrante que pode ser denominada de propriamente dito, real, perfeito ou verdadeiro. Encontra seu fundamento nos incisos I e II do art. 302 do código de processo penal brasileiro. Ocorre quando o agente delituoso está em íntegra escalada dos atos executórios do crime ou da contravenção penal. Ou ainda, quando o infrator findou a infração penal, mostrando-se indubitável a materialidade do crime e da autoria.
Aury Lopes Jr. nos preconiza:
O flagrante do inciso I ocorre quando o agente é surpreendido cometendo o delito, significa dizer, praticando o verbo nuclear do tipo. Inclusive, a prisão nesse momento poderá, dependendo do caso, evitar a própria consumação. [...] No inciso II, o agente é surpreendido quando acabou de cometer o delito, quando já cessou a prática do verbo nuclear do tipo penal. Mas, nesse caso, o delito ainda está crepitando (na expressão de Carnelutti), pois o agente cessou recentemente de praticar a conduta descrita no tipo penal. É considerado ainda um flagrante próprio, pois não há lapso temporal relevante entre a prática do crime (no sentido indicado pelo verbo nuclear) e a prisão. (LOPES 2017, pág. 652)
De forma a exemplificar tomemos uma pessoa que durante o deslocamento em um logradouro, é rendida por um agente que, apontando-lhe uma arma de fogo, profere ameaças de morte e exigindo que os bens de valores lhe sejam entregues. Durante as ameaças e as exigências o agente é abordado por policiais e preso de imediato, temos evidenciado o flagrante do inciso I do código de processo penal. Entretanto, se o agente é abordado logo após ter tomado os bens de valores o flagrante ocorrerá na hipótese do inciso II do supracitado artigo.
1.1.2 Flagrante impróprio
Chamado também de flagrante imperfeito, irreal ou quase flagrante, ocorre quando o agente é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração penal, conforme disposto no inciso III do art. 302 do código de processo penal.
Importante ressaltar que a expressão logo após, não deve ser interpretado com rigor de minutos ou tempo específico, conforme o senso popular. Não há previsão de critério legal objetivo de tempo. Nesta mesma linha de pensamento Fernando Capez interpreta, sendo que, “logo após compreende todo espaço de tempo necessário para a polícia chegar ao local, colher as provas elucidadoras da ocorrência do delito e dar início à perseguição do autor”. (CAPEZ, 2019, pág. 323).
Na contramão do entendimento de Capez, Aury Lopes Jr. argumenta que, para a incidência do flagrante impróprio, “a perseguição deve iniciar pouco minutos após o fato, ainda que perdure por várias horas” (LOPES, 2020, pág. 655). Na mesma linha de pensamento, o doutrinador Paulo Rangel, estipula que o período razoável para a expressão logo após seria de duas ou três horas (RANGEL, 2020).
1.1.3 Flagrante presumido
Também definido por ficto, assimilado ou fictício, trata-se do flagrante delito de quem, à luz do inciso IV do art. 302 do código de processo penal, é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Eugênio Pacelli evidencia em sua explanação que, apesar de logo após ser sinônimo de logo depois, e, estar na posse de instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração seria o mesmo que dizer em situação que faça presumir ser ele o autor da infração, a diferença entre o flagrante presumido e o impróprio reside entre os verbos perseguir e encontrar (PACELLI, 2020, pág. 400).
De forma contrária, Aury Lopes Jr. trata que o verbo encontrar deverá ser oriundo de uma situação causal, e não casual, devendo haver perseguição, sendo a diferença entre o flagrante impróprio e o presumido, o lapso temporal, que neste segundo seria maior entre o crime e o encontro do agente (LOPES, 2020, pág. 655).
2. TEORIA DO CRIME
O crime pode ser conceituado a partir de 3 óticas, sendo elas: a material, a formal ou analítica (GRECO, 2020, pág. 32).
Em sua ótica material, é crime um fato, uma conduta humana que de forma proposital ou não ocasiona lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos que são assinalados primordiais para existência do corpo e da paz social (GRECO, 2020, pág. 31).
Já na ótica formal, considera-se crime toda e qualquer ação ou omissão cujo legislador constituir como infração penal. Desta forma, o instrumento norteador da definição do crime parte da lei, sendo assim o aspecto formal é a exteriorização normativa do aspecto material. Não menos importante é o crime sob o aspecto analítico, que, nas palavras de Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, 2020, pág. 101):
Trata-se de uma conduta típica, antijurídica e culpável, vale dizer, uma ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária ao direito (antijuridicidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito (NUCCI, 2020, pág. 101).
A doutrina nacional, de forma majoritária, considera que para que ocorra o delito é necessário que o fato seja típico, antijurídico e culpável. Nesta mesma linha de pensamento, o ex-membro do Ministério Público do estado de Minas Gerais e professor, Rogério Greco compactua como a definição mais aceitável, (GRECO, 2020, pág. 32)
A melhor definição de crime se enquadra na ótica analítica, esta acepção proporciona um entendimento geral e abrangente através da tipicidade, a antijuridicidade e da culpabilidade, também denominada como teoria tripartida do delito.
2.1 Tipicidade
A tipicidade do fato está intimamente ligada ao princípio da legalidade que é esboçada em nossa carta magna, sendo que, não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art.5º, XXXIX, CRFB/1988) assim também exposto no art.1º do código penal brasileiro. Desta forma, temos o princípio da anterioridade, em que somente haverá uma infração penal se o fato tenha ocorrido posteriormente a lei que o incrimina.
O excelentíssimo Min. Vicente Leal, da 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça, enfatiza que, “em direito penal tem exponencial relevo o princípio da reserva legal, do qual emana o princípio da tipicidade, que preconiza ser imperativo que a conduta reprovável se encaixe no modelo descrito na lei penal vigente na data da ação ou da omissão” (REsp. 300092/DF, DJ 22/4/2003, p.227).
Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, “a tipicidade é uma decorrência natural do princípio da reserva legal. É a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal” (BITENCOURT, 2019, pág. 358).
A tipicidade é a inclusão ou adequação do fato ao exemplar previsto no tipo legal, desta forma, a exteriorização através da norma legal demarca o âmbito juridicamente relevante cujo Estado deve tutelar utilizando-se do direito penal como “ultima ratio”, dando origem ao princípio da intervenção mínima, delimitando os bens jurídicos de maior relevo social (GRECO, 2020).
2.2 Antijuridicidade
Releva a adversidade, antagonismo do fato com o ordenamento jurídico, exterioriza a combinação de contrariedade objetiva de um fato com todo ordenamento jurídico. Desta forma, a antijuridicidade deve ser compreendida como um comportamento humano que seja contrário a ordem jurídica (GRECO, 2020).
Posto isto, verifica-se que o Direito Penal, não é único ramo do direito que especifica a antijuridicidade, mas, seleciona, através da tipicidade, os comportamentos humanos mais graves, vemos aqui a aplicação do princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio. Desta forma, conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt, “um ilícito penal não pode deixar de ser igualmente um ilícito em outras áreas do direito, como a civil, a administrativa, mas o contrário não é verdadeiro: um ato ilícito no plano jurídico-cível não pode ser ao mesmo tempo ilícito penal” (BITENCOURT, 2019, pág. 407).
Sendo verificada a tipicidade do fato no ordenamento penal, deverá ser perquirida a antijuridicidade através da análise da existência ou não de causa justificantes. Essas causas justificantes, nas palavras de Luiz Regis Prado, têm implícita uma norma permissiva ou autorizante de caráter independente que, ao interferir nas normas proibitivas ou preceptivas, faz com que a conduta proibida ou a não realização da conduta ordenada seja lícita ou conforme o direito” (PRADO, 2019, pág. 189).
Para Paulo Amador Thomas e Alves da Cunha Bueno, “somente se ingressa na apreciação da ilicitude (relação de contrariedade com direito) de determinada conduta se esta encontrar-se adequada a um tipo penal. Corolário disso é que toda conduta típica aponta, em princípio, para uma situação de ilicitude” (THOMAS; BUENO, 2012, pág. 54).
Posto isto, é perceptível que, havendo o enquadramento do tipo penal, ou seja, a ação ou omissão praticada pelo agente que se encaixe na lei penal, deve ocorrer a verificação da ilicitude de tal fato por exclusão, sendo verificada a incidência de excludentes de ilicitudes.
2.3 Culpabilidade
Culpabilidade é o juízo de censura, reprovação, reprimenda da conduta do agente, sendo este, o terceiro pressuposto ou atributo do conceito analítico do crime, conforme a teoria tripartida, consagrada pela doutrina majoritária.
A culpabilidade, no entendimento do ilustríssimo professor Luiz Regis Prado, é definida
como:
[...] em termos jurídicos-penais, pode ser conceituada como a reprovação pessoal pela realização de uma ação ou omissão típica e ilícita em determinada circunstância em que se podia atua conforme as exigências do ordenamento jurídico. O juízo de reprovação ou censura jurídica tem como pressuposto necessário a evitabilidade individual do fato, considerando in concreto. Isso significa o reconhecimento do homem individualmente, sem nenhuma exceção. Assim não há culpabilidade sem tipicidade e ilicitude, embora possa existir ação típica e ilícita inculpável (PRADO, 2019, pág. 207).
Para André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves, a culpabilidade é entendida “como o juízo de reprovação que recai sobre o autor culpado por um fato típico e antijurídico. [...]Além disso, a culpabilidade seria soma resultante dos seguintes elementos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta adversa” (ESTEFAM; GONÇALVES, 2017, pág. 429).
A imputabilidade é a capacidade intelectual de concernir o caráter ilícito do fato e de se conter, temos sua exteriorização no artigo 26 do código penal brasileiro. A exclusão da imputabilidade pode se dar por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado; embriaguez completa e involuntária; menoridade; dependência ou intoxicação involuntária decorrente do consumo de drogas ilícitas.
A potencial consciência da ilicitude trata se do sujeito possuir discernimento do caráter ilícito de sua conduta, ressaltando que não se confunde com o sujeito alegar o desconhecimento da lei. Por último, mas não menos importante, a exigibilidade de conduta adversa já traz em sua própria nomenclatura o entendimento de que para atribuir a alguém uma conduta reprovável, é preciso que se possa exigir da pessoa, na situação em que ela estava, uma conduta diferente.
3. DAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE
Ao abordarmos as causas excludentes de ilicitude, se faz necessário primeiramente conceituarmos a ilicitude em si. Em sua obra, Nucci trata a ilicitude como "a contrariedade de uma conduta com o direito, causando efetiva lesão a um bem jurídico protegido", ou seja, a ilicitude é a conduta que vai em sentido contrário ao direito e gera danos ao bem tutelado juridicamente (NUCCI, 2019, pág. 177).
Atualmente existem quatro tipos de excludentes de ilicitude trazidos pelo Código Penal, Parte Geral, em seu artigo 23, vejamos: “Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Servem para afastar, quando reconhecidas, a antijuricidade do fato típico.
Ou seja, a excludente de antijuridicidade torna lícito o que é ilícito.
3.1 Estado de Necessidade
Conforme conceitua Guilherme de Souza Nucci, o estado de necessidade “é o sacrifício de um interesse juridicamente protegido, para salvar de perigo atual e inevitável o direito do próprio agente ou de terceiro, desde que outra conduta, nas circunstâncias concretas, não fosse razoavelmente exigível” (NUCCI, 2020, pág. 180).
Quando falamos em necessidade, antes de tudo, falamos da existência de um perigo atual, que coloque em conflito dois ou mais interesses legítimos, que, pelas circunstâncias não podem ser todos assegurados. Portanto, um desses interesses deverá perecer em favor dos demais.
Para que seja configurado o estado de necessidade, deve se observar alguns requisitos. O primeiro deles seria a existência de perigo atual. Atual é o que está acontecendo, portanto, uma situação que ocorre no presente.
O segundo requisito seria a involuntariedade na geração do perigo. Isso significa que a pessoa que deu origem ao perigo não poderá invocar a excludente em seu favor. Conforme aduz Guilherme de Souza Nucci, “não fosse assim, aquele que causasse um incêndio poderia sacrificar a vida alheia para escapar, valendo-se da excludente, sem qualquer análise da origem do perigo concretizado” (NUCCI, 2020, pág. 182).
O terceiro requisito fundamental para que seja configurado o estado de necessidade é que o perigo seja inevitável, e que seja também indeclinável para escapar da situação perigosa a lesão ao bem jurídico de outrem.
Quando se trata dessa excludente em questão, é imprescindível mencionar o quarto requisito. Age em estado de necessidade quem salva direito próprio ou alheio. Um exemplo mencionado regularmente nas doutrinas é do médico que quebra sigilo profissional revelando que um paciente é portador de HIV para salvar interesse de um terceiro que possa ter sido contaminado.
3.2 Legítima Defesa
O Código Penal conceitua legítima defesa em seu artigo 25: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” Valendo-se da legítima defesa o indivíduo consegue repelir injusta agressão a direito próprio ou alheio, fazendo, portanto, as vezes do Estado, que é incapaz de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, na figura de seus agentes. Qualquer direito pode ser defendido em legítima defesa, tanto a vida, quanto a liberdade, honra, integridade física, patrimônio dentre tantos outros.
Para configuração da excludente mencionada, é preciso que alguns requisitos estejam presentes. É necessário a existência de uma agressão, atual ou em iminência, seja está agressão injusta, praticada contra direito próprio ou alheio. O agente deverá também ter conhecimento da situação justificante, ou seja, ter ciência de situação que justifique e ter finalidade e intenção de defender-se ou defender terceiro. E o último requisito seria o uso moderado dos meios necessários para repelir tal agressão.
Comumente ocorre uma confusão entre dois institutos jurídicos, a legítima defesa e o estado de necessidade, portanto, é importante destacar as diferenças entre eles. A legítima defesa pressupõe agressão e o estado de necessidade, perigo; na legítima defesa só há um dos agentes com “razão”, em contrapartida, no estado de necessidade, todos os agentes possuem razão, visto que, seus interesses ou bens são legítimos; existe legítima defesa ainda quando evitável a agressão, entretanto, só há estado de necessidade se o perigo for inevitável.
3.3 Estrito cumprimento do dever legal
“O Código Penal não se preocupou em conceituar o estrito cumprimento do dever legal tal como procedeu com o estado de necessidade e a legítima defesa”, afirma Rogério Greco em sua obra, Direito Penal Estruturado, contudo, quando observamos o que caracteriza está excludente, extraímos seu significado (GRECO, 2019, pág. 79).
O estrito cumprimento do dever legal, trata-se de uma ação praticada em cumprimento a um dever legal, ou seja, dever imposto por lei, seja esta lei penal ou extrapenal. Para que o cumprimento deste dever imposto por lei, exclua a ilicitude da conduta, é de suma importância que seja obedecido alguns requisitos.
Para que seja configurada tal situação que exclua a ilicitude, é preciso que haja prévia existência de uma obrigação imposta por norma jurídica de caráter genérico, não necessariamente lei no sentido formal. Vale ressaltar que o dever poderá advir também de um ato administrativo.
É preciso destacar que a atitude do agente esteja pautada nos limites de seu dever e a sua conduta, como regra, deva advir de agente público e, excepcionalmente, de particular. Como exemplo regularmente utilizado pelos doutrinadores, costuma-se destacar o dever dos pais quanto à guarda, vigilância e educação dos filhos. Entretanto, a maioria da doutrina qualifica o dever dos pais como hipótese de exercício regular do direito, outra hipótese de excludente que trataremos a seguir.
3.4 Exercício regular de direito
O exercício regular do direito também não foi conceituado de forma especifica pelo legislador, portanto, Guilherme de Souza Nucci nos traz este conceito de forma bem esclarecida, conceitua, portanto, “o exercício regular do direito como o desempenho de uma atividade ou a prática de uma conduta autorizada por lei, que torna lícito um fato típico”, portanto, não comete crime quem exerce um direito assegurado por lei (NUCCI, 2019, pág. 203)
Alguns exemplos mais comuns de incidência da excludente em apreço, são: intervenção médico-cirúrgica (admitidas em lei); violência desportiva, no caso do boxeador que provoca lesão no rosto de seu oponente durante a luta, este não comete crime.
Eugênio Pacelli aponta com muita inteligência a diferença entre os tipos de excludente de ilicitude, quando coloca o estado de necessidade e a legítima defesa como exceções à regra geral da ilicitude (matar alguém, por exemplo), excluindo-a apenas naquelas hipóteses excepcionais (de perigo e diante de injusta agressão), tanto o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito já se referem à situações contidas no âmbito geral da licitude, portanto, de matéria permitida (PACELLI, 2020, pág. 317).
3.5 Excludente Supralegal
3.5.1 Consentimento do Ofendido
Ao falar em consentimento do ofendido, é de suma importância destacar que se trata de um direito disponível, ou seja, o consentimento exclui a tipicidade da conduta. A atuação e aplicação do direito penal fica condicionada à manifestação da vítima, em certos casos, quando o bem jurídico tutelado é de interesse meramente privado.
Para esclarecer do que se trata tal excludente supralegal é válido apontar as divergências doutrinarias acerca do tema.
Pacelli (2020) cita que Roxin (2006) “sustenta que o consentimento do ofendido exclui a tipicidade da conduta, pois inexiste lesão ao bem jurídico quando a conduta não contraria a vontade de seu titular. Há sim uma colaboração do agressor com o desejo do ofendido”.
Jescheck (1993, apud PACELLI, 2020), afirma que “o consentimento do ofendido é sim uma das causas de exclusão da ilicitude, uma vez que a ação típica não é afastada pela aceitação do resultado, tanto é assim que a anuência é condicionada à verificação de certos requisitos”.
Tanto quanto as outras espécies de excludentes de ilicitude traz consigo alguns requisitos que devem estar presentes.
A concordância do ofendido, seja pessoa física ou jurídica, deverá ser obtida de forma livre e sem vícios, coação, fraude ou qualquer uso de artifícios. Deverá também ser emitido de maneira explícita ou se implícita, seja possível reconhecer este consentimento. É importante destacar que não se admite o consentimento presumido. A pessoa que consente deve ser dotada de capacidade. E, por último, o bem deverá ser considerado disponível. Conforme aduz Guilherme de Souza Nucci, “verifica-se a disponibilidade do bem ou interesse, quando a sua manutenção interessa, sobremaneira, ao particular, mas não é preponderante à sociedade” (NUCCI, 2019, pág. 211).
4. Aplicação das excludentes de ilicitude pelo Delegado de Polícia
Iniciemos trazendo à tona o art. 2º e 3º da lei 12.830 de 2013, em que define que as funções exercidas pelos delegados de polícia são de natureza jurídica, e seus cargos são privativos a bacharéis em direito, tendo o mesmo tratamento dos magistrados, advogados, membros do Ministério Público e Defensoria.
Perceptível é que o Delegado se torna o primeiro ator da persecução penal, cujo cargo é privativo de bacharéis em direito, tendo ele a obrigação de agir como filtro garantidor-controlador dos direitos constitucionais e infralegais inerentes a pessoa humana.
Durante a prisão em flagrante, temos algumas etapas elencadas pela doutrina, como a prisão em flagrante delito, cujo o agente do fato delituoso é capturado, é conduzido até a autoridade de polícia judiciária para que seja analisado o caso e verificado se será ratificada a prisão. Ao ser apresentado à autoridade de polícia judiciária, esta, deverá ou não lavrar o auto de prisão em flagrante deleito, consoante o art. 304 do código de processo penal.
Conforme o disposto no art. 2º, §6º da lei 12.830 de 2013, cabe ao delegado de polícia a análise técnico-jurídica do fato, pois, um dos princípios do inquérito policial, que tem por início a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, é a discricionariedade da autoridade de polícia judiciária em relação as diligências a serem realizadas até o limite estabelecido pela lei.
A problemática que trazemos é referente ao art. 310 do código de processo penal, em sua escrita, no parágrafo 1º, que se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
Na linha de pensamento, o desembargado e professor Guilherme de Souza Nucci, apresenta que:
Afastada a autoria, tendo sido constado o erro, não recolhe o sujeito, determinando a sua soltura. É a excepcional hipótese de se admitir que a autoridade policial relaxe a prisão. Ao proceder desse modo, pode deixar de dar voz de prisão ao condutor, porque este também pode ter-se equivocado, sem a intenção de realizar a prisão ilegal. Instaura-se, apenas, inquérito para apurar, com maiores minúcias, todas as circunstâncias da prisão. Nota-se eu isso se dá no tocante à avaliação da autoria, mas não quando a autoridade policial perceber ter havido alguma excludente de ilicitude ou culpabilidade, pois cabe ao juiz proceder a essa análise (NUCCI, 2020, pág. 663).
Mas o mesmo desembargador citado anteriormente, afirma que pode o delegado aplicar, ao caso concreto, a construção doutrinária do princípio da insignificância, que não possui fundamento legal, in verbis: “ora, se o delegado é o primeiro juiz do fato típico, sendo bacharel em Direito, concursado, tem perfeita autonomia para deixar de lavrar a prisão em flagrante se constatar a insignificância do fato” (NUCCI, 2020, pág. 664). Da mesma forma em que o Direito Penal não deve se ocupar com ações ou omissões que não ameacem a sociedade, deve, o mesmo Direito Penal, se ater ao princípio da intervenção mínima.
Conforme exposto por Fernando Capez:
O auto somente não será lavrado se o fato for manifestamente atípico, insignificante ou se estiver presente, com clarividência, uma das hipóteses de causas de exclusão de antijuridicidade, devendo-se atentar, que nessa fase, vigora o princípio do in dubio pro societate, não podendo o delegado de polícia embrear-se em questões doutrinárias de alta indagação, sob pena de antecipar indevidamente a fase judicial de apreciação de provas; permanecendo a dúvida ou diante dos fatos aparentemente criminosos, deverá ser formalizada a prisão em flagrante (CAPEZ, 2019, pág. 330).
O professor e delegado de polícia civil no Rio Grande do Sul, Dr. Roger Spode Brutti, nos proporciona a seguinte reflexão:
As Autoridades Policiais, por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência das suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da Lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso.
A fundamentação plausível deve ser elemento sempre unificado ao ato discricionário da Autoridade Policial. Mencionado ato será sempre legítimo, se devidamente fundamentado. De fato, dentro do nosso ordenamento encontra-se o princípio elementar da proporcionalidade, com raiz na lógica e no bom senso, exigindo-se que o decisum respectivo seja, como já foi dito, fundamentado, à luz do princípio do livre convencimento motivado (BRUTTI, Roger, 2006).
Ademais, as excludentes de ilicitude, dispostas no art. 23 do código penal brasileiro, demonstra em seu caput, que não haverá crime quando o agente pratica o fato conforme o disposto nos incisos. Desta forma, a autoridade de polícia que ratifica uma prisão em flagrante, cujo agente praticou o fato em evidente excludente de ilicitude, estaria atentando contra direitos fundamentais celebrados em nossa Carta Magna. Vale ressaltar que a não lavratura do auto de prisão em flagrante, não inibirá a autoridade policial de investigar o fato, devendo o inquérito ser iniciado através de portaria, para melhor elucidação dos fatos.
O enunciado nº 11 do 1º Congresso Jurídico dos Delegados da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro, traz em seu texto que, “o delegado de polícia, no exame fático-jurídico do estado flagrancial, pode, mediante decisão fundamentada, afastar a lavratura do auto de prisão em flagrante, diante do reconhecimento de causa excludente de ilicitude, sem prejuízo de eventual controle externo”.
O delegado Henrique Hoffmann Monteiro de Castro, pactua com o entendimento do Congresso supracitado, explanando:
Mais do que um poder da autoridade de polícia judiciária, o reconhecimento de causa excludente de ilicitude ou culpabilidade é um dever no desempenho da sua missão de garantir direitos fundamentais, devendo ser repelidas eventuais interferências draconianas em detrimento do interesse público. A persecução penal não pode abdicar da franquia constitucional de liberdades públicas, devendo a lei se adequar à Constituição, e não o contrário. Encarcerar alguém, deixando de analisar a relação de antagonismo de sua conduta com o ordenamento jurídico (ilicitude) ou mesmo a reprovação de seu comportamento (culpabilidade), fere a concepção moderna e democrática do sistema processual penal (Castro, Henrique, 2016).
Conforme indicado pelo supracitado delegado de polícia judiciária, é incoerente exigir que um agente público, exima-se de uma atuação pautada no garantismo dos direitos fundamentais, base de um estado democrático de direito.
CONCLUSÃO
O art. 310, parágrafo primeiro deve ser interpretado de forma sistêmica com o ordenamento jurídico pátrio. Não existindo restrição legal para tal aplicação.
Após o exposto, fica evidente que a autoridade de polícia judiciária, utilizando-se do princípio da necessidade, do princípio da adequação, da discricionariedade que lhe é conferida por lei, deve, a partir da análise e livre convencimento técnico-jurídico do delito por inteiro e da ótica analítica do delito, fundamentadamente, adentrar no atributo da antijuridicidade e verificar se há causas excludentes de ilicitude. Pois se não houver ilicitude, não poderá o representante do Estado tolher o direito de ir e vir de alguém.
O fato de ser um dos primeiros agentes estatais com função jurídica, conhecimento jurídico e independência funcional, torna o delegado de polícia, um fundamental garantidor da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS
PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 24. ed. São Paulo. Editora Atlas. 2020.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. ed. Rio de janeiro. Editora Forense. 2020
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2020.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral v.1. 25. ed. São Paulo. Editora Saraiva Educação. 2019.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 17. ed. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2019.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 16. ed. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2020.
MARCÃO, Renato. Curso de processo penal. 6. ed. São Paulo. Editora Saraiva Educação. 2020.
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 28. ed. São Paulo. Editora Atlas. 2020.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 26. ed. São Paulo. Editora Saraiva Educação. 2019.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo. Editora Saraiva Educação. 2020.
AVENA, Noberto. Processo penal. 12. ed. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2020.
ESTEAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo Rio. Direito penal esquematizado. 6. ed. São Paulo. Editora Saraiva. 2017.
GRECO, Rogério. Código penal comentado. 14. ed. Rio de Janeiro. Editora Impetus. 2020.
PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de direito penal: parte geral. 6. ed. São Paulo. Editora Atlas. 2020.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução: Marco Antonio Casanova. 1. ed. São Paulo. Editora Martin Claret. 2015.
BRUTTI, Roger Spode. O princípio da insignificância frente ao poder discricionário do delegado de polícia. Acesso em 01 de outubro de 2020. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/9145/o-principio-da-insignificancia-frente-ao-poder-discricionario-do-delegado-de-policia>
ADEPOL/AM, Assessoria de Comunicação da. Enunciados orientam delegados de polícia na atuação diária de suas funções. Acesso em 01 de outubro de 2020. Disponível em: <https://adepolam.org.br/enunciados-orientam-delegados-de-policia-na-atuacao-diaria-de-suas-funcoes/>
CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Delegado pode e deve aplicar excludentes de ilicitude e culpabilidade. Acesso em 01 de outubro de 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-set-06/academia-policia-delegado-aplicar-excludentes-ilicitude-culpabilidade>