SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................7
1 A COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS...............................................10
1.1. A revolução francesa e as gerações de direitos fundamentais.............................10
1.2. Há hierarquia entre Direitos Fundamentais?........................................................13
1.3. A colisão entre Direitos Fundamentais................................................................14
1.3.1. A diferença dos conflitos entre regras e colisão entre princípios.................14
1.3.2. O princípio da proporcionalidade na resolução de conflitos envolvendo Direitos Fundamentais...........................................................................................16
2 OS DIREITOS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E À LIBERDADE RELIGIOSA....................................................................................................................18
2.1. O direito à liberdade.............................................................................................18
2.2. A liberdade de expressão: surgimento, características e limites..........................20
2.3. A liberdade religiosa: surgimento, características e limites.................................24
3. ESTUDO DE CASO: O ATENTADO AO JORNAL CHARLIE HEBDO E A COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS......................................................28
3.1. O atentado ao jornal francês................................................................................28
3.2. A violação de direitos por parte do jornal............................................................30
3.3. A violação de direito por parte dos terroristas.....................................................33
3.4. Que direito deve prevalecer?...............................................................................35
CONCLUSÃO.................................................................................................................39
REFERÊNCIAS..............................................................................................................41
INTRODUÇÃO
Após tantas lutas - sendo pacíficas, ou, até mesmo, violentas – foi conquistado pelo homem, em diversos lugares do mundo, o direito de expor suas opiniões e pensamentos de forma livre, sem a censura daqueles que detinham o poder, assim como a liberdade de vivenciar a sua religião sem a obrigação cultuar o credo que seria imposto pelo Estado e/ou pela sociedade.
Nesta perspectiva, resta evidente o respaldo social da discussão através de eventos históricos, como nos primórdios da Idade Média, em que o surgimento do cristianismo se contrapôs às práticas politeístas, dando início às lutas pelo direito de praticar o culto de acordo com sua fé, tendo repercussão à nível mundial.
Também se deve fazer memória, já na era moderna e em âmbito local, acerca do decreto do “AI-5”, ato institucional que suspendeu os direitos políticos dos brasileiros, dentre os quais a censura da expressão e a manipulação das mídias pelo governo no período da ditadura militar.
Percebe-se, então, que o assunto abordado neste estudo é alvo de debates em diversos momentos da história da humanidade, repetindo-se nos tempos atuais, como o próprio caso em análise, no qual se observa que os choques contra as liberdades de expressão e culto religioso são constantes.
No ordenamento jurídico brasileiro, portanto, foram positivados, em sua Constituição, art. 5º, os Direitos e Garantias Fundamentais, dentre as quais estão as citadas nesta análise causal nos incisos VI e IX respectivamente: a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Desta forma, estão esses direitos elencados na mesma hierarquia jurídica.
Entretanto, quando ocorrem situações em que esses direitos se confrontam, como no acontecimento do atentado ao célebre jornal francês Charlie Hebdo - em que foram evidenciadas, por um lado, as críticas jornalísticas acerca de diversos temas, incluindo a religião, por outro, a manifestação de radicais islâmicos que acreditam cultivar seu credo através de reações violentas – qual critério deverá ser utilizado para escolher qual dos dois deve prevalecer?
Esta discussão é de extrema relevância por abordar a colisão de Direitos Fundamentais, os quais se constituem como a expressão do princípio da dignidade da pessoa humana e da limitação do poder à nível constitucional e, por sua importância, fundamentam todo o ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direito. É válido ressaltar que, apesar de o causídico abordar um contexto ocorrido na França, faz-se uma leitura do problema apresentado sob a ótica da constituição brasileira.
Desta forma, garantir a efetividade das liberdades de expressão e religiosa, é, ao mesmo tempo, atestar ao homem o meio de ter preservada a sua dignidade pela sua qualidade de ser humano. No entanto, o caso concreto impõe como limitação um direito em relação ao outro, tornando a temática controversa, já que ambos têm o objetivo de respeitar o valor inerente ao homem, mas divergem em suas ideias.
Diante do exposto, buscando embasamento jurídico para solucionar a problemática, faz-se necessário realizar os seguintes questionamentos: Quais os mecanismos existentes, no ordenamento jurídico brasileiro, para solucionar questões envolvendo a colisão de direitos fundamentais? Como conciliar direitos como a liberdade de expressão e a liberdade religiosa? No caso Charlie Hebdo, qual desses direitos deveria prevalecer segundo à realidade brasileira?
Neste contexto, o objetivo geral é analisar o atentado ao jornal Charlie Hebdo à luz dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e à liberdade religiosa. Os objetivos específicos são assimilar os meios de resolução de conflitos de direitos fundamentais utilizados no ordenamento jurídico brasileiro, entender quais garantias são asseguradas ao povo através das liberdades de expressão e de culto religioso e verificar qual dos dois direitos citados deverá prevalecer no caso específico.
No que concerne à metodologia, a presente pesquisa será bibliográfica, através dos conhecimentos transmitidos pelos doutrinadores no que diz respeito aos direitos fundamentais, suas colisões e meios de resolução de conflitos entre os mesmos, além de jornais e revistas que contenham informações sobre a problemática do atentado ao referente jornal. Inclui-se, também, o estudo de caso, no qual se realiza a análise dos conflitos de direitos fundamentais na ocorrência do atentado ao célebre jornal Charlie Hebdo.
Ainda sobre os aspectos metodológicos, a abordagem está enquadrada como qualitativa, posto que tem o intuito de aprofundar conhecimentos, interpretar situações sob a doutrina jurídica e não tem o objetivo de obter números para se alcançar alguma conclusão. A respeito da utilização dos resultados, o presente trabalho é classificado como pesquisa pura, pois tem o objetivo de expandir o conhecimento sobre o assunto em questão. Quanto aos fins da mesma, é enquadrada como exploratória, já que tem o condão de analisar o estado atual do objeto, bem como descritiva, pois relata o fenômeno social com suas características e a aplicação do direito ao caso concreto.
Para elucidar a polêmica acima, este estudo monográfico se aterá, no primeiro capítulo, a como surgiu o entendimento sobre a existência de direitos fundamentais por meio do contexto histórico da Revolução Francesa através da teoria das gerações, demonstrando que foram sendo conquistadas essas faculdades por etapas. Após, será respondido se há hierarquia entre os direitos fundamentais, analisando sua disposição dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Então, irá se discorrer sobre a diferença da solução quando ocorre colisão entre regras e conflitos entre princípios. Assim, será demonstrado que se chegará a um resultado para a controvérsia apontada através do princípio da proporcionalidade.
Já quanto ao segundo capítulo, será dada ênfase sobre o conceito de direito à liberdade, revelando o seu aparecimento através da evolução da humanidade, coincidindo com a própria percepção dos direitos fundamentais. Após, serão feitas as especificações sobre a liberdade na modalidade de expressão e religiosa, identificando o surgimento de cada uma, bem como suas características e limites.
Conclui-se com o terceiro capítulo, no qual se fará a análise de caso do atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo, descrevendo como ocorreu o causídico e, a partir dos fatos, destrinchar a violação de direitos, tanto por parte do jornal, como dos terroristas, utilizando-se do método indicado inicialmente, qual seja, o princípio da proporcionalidade, para se apontar qual direito deve prevalecer.
1 COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
O Direito, sendo uma ciência destinada a regulamentar o comportamento humano, tem como objetivo o estabelecimento da paz social e, por isso, está diretamente influenciado pelos valores, princípios e história de um povo. Nesse cenário, por conseguinte, desenvolveram-se os direitos fundamentais, observando-se, de forma especial, a interferência da revolução francesa em esfera mundial como será analisado.
1.1 A Revolução Francesa e as gerações de direitos fundamentais
Inicialmente, vale-se recordar que referente revolução se desencadeou pelo descontentamento social com o “antigo regime”, como ficou conhecido o sistema monárquico, no qual o centro era o Estado em si mesmo. Com os ideais iluministas, iniciou-se a defesa de direitos inerentes ao homem que são preexistentes ao próprio Estado, acarretando na lógica de que esse tem o dever de servir aos cidadãos primeiramente, a fim de lhes garantir os direitos básicos de sua condição de ser humano, o qual se fez a imagem e semelhança de Deus e, assim, possui dignidade especial, segundo o conceito advindo do cristianismo (MENDES; BRANCO, 2016, p. 134).
Neste panorama, é importante salientar que, no antigo regime, mais precisamente na França, segundo Sièyes (2015, p. 16), a sociedade se encontrava dividida entre o clero, a nobreza e o povo. As duas primeiras classes possuíam privilégios, enquanto à última restava somente o trabalho e sem regulamentação que assegurasse qualquer garantia aos mesmos, ao contrário, eram explorados e lhes era devido o pagamento pelo uso da terra, bem como dos tributos gerados para sustentar as hierarquias superiores e, ainda, ter negado o direito de liberdade e participação política.
Em reação, a Revolução Francesa foi impulsionada pela filosofia Iluminista, a qual foi mecanismo de crítica ao antigo regime, abrangendo suas instituições políticas, econômicas, sociais e culturais, desmerecendo, portanto, o sistema monárquico, a economia mercantilista e a divisão estamental da sociedade (ARAÚJO, 2016, p.33) com o objetivo de estabelecer, na sociedade, direitos aos homens que possibilitassem a todos o reconhecimento da sua dignidade.
Os direitos acima referidos, portanto, são os denominados direitos fundamentais, centro do objeto deste estudo, restando, de forma clara, que as suas raízes se encontram na Revolução Francesa. Acerca de seu conceito, afirma Marmelstein (2013, p. 17): “os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito. ”
Percebe-se, então, que os direitos fundamentais se conceituam como o núcleo de proteção da dignidade da pessoa e, por este motivo, merecem destaque e proteção jurídica, estando, pois, resguardados pela Constituição Federal de 1988 (CF/88). Ainda se tratando da origem desses direitos, é importante frisar que seu surgimento se deu em etapas.
Esse processo é o que se conhece como “as gerações de direitos fundamentais”{C}[1]{C}1, os quais foram baseados no lema revolucionário da política francesa à época das revoluções: “Liberté, Egalité, Fraternité” (liberdade, igualdade, fraternidade). Essa divisão, segundo a classificação de Karel Vasak, é facilmente reconhecida pelos grupos de direitos que foram sendo considerados inerentes à dignidade humana em cada fase. Ressalte-se que, à medida que iam sendo acrescentados ao rol de direitos fundamentais, os novos não excluíam aqueles que já tinham sido conquistados pela sociedade, caracterizando-se por um sistema cumulativo e qualitativo.
Discorrendo sobre os mesmos, tem-se que os direitos fundamentais de primeira geração são os civis e políticos, os quais tem como substrato o ideal de liberdade, objetivando a abstenção dos governantes e se voltando para a titularidade do indivíduo em si. Através desses direitos, o cidadão obtém a possibilidade de oposição ao Estado, criando aos governantes, principalmente, obrigações de não-fazer, de resguardar a vida privada, não intervindo em aspectos pessoais de cada um do povo.
Em consequência disso, o motivo da preocupação em tutelar esses direitos era a preservação da propriedade, cominando na aspiração pela ideologia liberal, na qual não havia atenção quanto às desigualdades sociais, posto que o homem considerado individualmente era o objeto central da busca pelas liberdades.
Desencadeou-se, a partir desse período, o crescimento industrial e demográfico, porém, ambos se deram de maneira desordenada, gerando um impacto negativo socialmente, posto que ocasionou profundas desigualdades. Assim, já não era mais satisfatório a permanência do Estado na inércia, necessitando de uma atitude intervencionista do mesmo.
Eis, então, que surge, nesse contexto, a segunda geração de direitos fundamentais no início do século XX, pautados na premissa da igualdade. São os direitos sociais, culturais e econômicos, os quais apreciam o ser humano não só em sua individualidade, mas também coletivamente. Acerca do assunto, dispõe Bonavides (2010, p. 565):
Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos da liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa e à valorização da personalidade que o quadro tradicional da solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporciona em toda a plenitude.
Observa-se que os esforços desprendidos para a efetivação do liberalismo de maneira desenfreada não solucionavam os anseios da sociedade, já que o homem precisa ser analisado e resguardado pela ótica de um ser que vive em comunidade. Logo, ao contrário do esperado, as liberdades fincadas sem a ponderação da igualdade desencadearam intensos conflitos, como a primeira guerra mundial, a partir da qual se notou a importância do estabelecimento dos direitos sociais.
Em seguida, com aderência da consciência acerca de uma divisão mundial entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, deu-se a gênese dos direitos de terceira geração, os quais possuem caráter coletivo e difuso. Entre eles estão os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação, dentre outros. Por transcenderem o indivíduo, percebe-se que se baseiam no ideal de fraternidade cultuado pela revolução francesa. A respeito do objeto, tem-se:
Nesse sentido, é de assinalar que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e de reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível, consoante proclama autorizado magistério doutrinário. (STF, RE 796347 RS, Publicação: 03/03/2015, Julgamento: 19 de Fevereiro de 2015, Relator: Min. CELSO DE MELLO)
Por fim, pela dinamicidade do Direito, revela-se a formulação de novas discussões jurídicas a partir da evolução da história da sociedade, conforme a citação acima, admitindo-se a existência de direitos de quarta geração, advindos das consequências da globalização. Estão elencados nesse rol o direito ao pluralismo, à democracia e à informação, por exemplo. Além disso, existe o debate para a determinação dos direitos de quinta geração em curso. Em outras palavras, em decorrência da natureza das ciências jurídicas, é natural se aguardar sempre novidades no que diz respeito à composição dos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2010, p. 570-572).
1.2 Há hierarquia entre os direitos fundamentais?
Os direitos fundamentais, por serem normas jurídicas intimamente ligadas à proteção da dignidade da pessoa humana que portam, em seu conteúdo, princípios que norteiam todo o ordenamento jurídico a fim de garantir a preservação da identidade do homem, estão elencados na CF/88. Dessa forma, devido à sua natureza, estão no topo da hierarquia entre as normas.
Por conseguinte, estando todos situados na mesma posição hierárquica, são contemplados, cada um, com a mesma importância, em virtude do princípio da unidade da constituição federal, sobre o qual assevera Bercovici (2000, p. 95-99): “São esses os princípios constitucionais que constituem o ‘cerne da Constituição’ e que devem servir de diretriz, por meio do princípio da unidade da Constituição, para a interpretação coerente das normas da Constituição de 1988 sem isolá-las do seu sistema e contexto. ”
Nesse enredo, afirma Barroso (2009, p. 239): “não existe hierarquia em abstrato entre princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso concreto. ” Ou seja, claro está que um direito fundamental não é hierarquicamente superior ao outro, ao contrário, complementam-se para garantir a dignidade ao homem.
Contudo, a partir dessa citação, é respondido o questionamento: há direitos fundamentais absolutos? Conclui-se, então, pela inexistência do absolutismo, posto que, na afirmativa de Barroso, observa-se que, em certas condições, ocorre a relativização de um em detrimento do outro. Nessa situação, visualiza-se a colisão entre os mesmos, objeto que será debatido em breve.
Diante dessa perspectiva, é válido fazer menção à teoria da eficácia da horizontalização dos direitos fundamentais, visto que ela reconhece que esses direitos, como normas nas quais devem se basear as situações jurídicas, têm aplicação não só na relação entre Estado/particular, mas também nas relações privadas, posto que as desigualdades se encontram em ambas as situações. Em referência a esse princípio, argumenta Sarlet (2016, p. 376):
[...]. Neste particular, a doutrina oscila entre os que advogam a tese da eficácia mediata (indireta) e os que sustentam uma vinculação imediata (direta), ressaltando-se a existência de posicionamentos que assumem feição mais temperada em relação aos modelos básicos referidos, situando-se, por assim dizer, numa esfera intermediária. Sem adentrar especificamente no mérito destas concepções e das variantes surgidas no seio da doutrina constitucional, é possível constatar – a exemplo do que sustenta Vieira de Andrade – uma substancial convergência de opiniões no que diz com o fato de que também na esfera privada ocorrem situações de desigualdade geradas pelo exercício de um maior ou menor poder social, razão pela qual não podem ser toleradas discriminações ou agressões à liberdade individual que atentem contra o conteúdo em dignidade da pessoa humana dos direitos fundamentais, zelando-se, de qualquer modo, pelo equilíbrio entre estes valores e os princípios da autonomia privada e da liberdade negocial e geral, que, por sua vez, não podem ser completamente destruídos.
Desse modo, registra-se que os direitos fundamentais, por estarem dispostos na mesma hierarquia, visto que objetivam a preservação da dignidade humana, equilibram as desigualdades sociais, tanto nas relações entre o indivíduo e o Estado, como entre particulares, através da aplicação de seus princípios, os quais devem ser ponderados levando em consideração o caso concreto, sendo esse tema que será abordado mais adiante.
1.3 A colisão entre direitos fundamentais
Apesar de constatada a inexistência da hierarquia jurídica entre os direitos fundamentais, é verdade que, em diversas situações reais, eles se colocam em confronto, haja vista que são potencialmente contraditórios entre si por refletirem uma vasta diversidade de ideias, a despeito de convergirem para a tutela da dignidade humana, como já exaustivamente expressado.
Exemplificando: pessoas que seguem a religião de testemunhas de jeová não admitem passar pelo procedimento de transfusão de sangue. No entanto, se esses sofrerem um acidente e necessitarem se submeter ao citado processo, deverá se optar pelo direito fundamental à liberdade religiosa ou à vida? Revela-se, então, uma controvérsia que deverá ser solucionada por métodos jurídicos, os quais serão explanados a seguir.
1.3.1 A diferença dos conflitos entre regras e colisão entre princípios
Em sua classificação, a norma é dividida entre regra e princípio. Essa distinção, conforme a doutrina predominante, está baseada em um critério qualitativo, ou seja, esses institutos possuem especificidades próprias, características que os diferenciam entre si. Acerca desses conceitos, explana a doutrina de Alexy (2008, p. 90-91):
[...] Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. [...]. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos […] (grifo original).
Em resumo, as regras estabelecem deveres definitivos, enquanto os princípios expressam deveres prima facie, ou seja, que são frutos de uma ponderação da análise de cada caso específico. Esclarecidos esses conceitos, passa-se ao exame das colisões entre princípios e conflitos entre regras.
Observa-se que na ocorrência de conflitos entre regras, será feita uma avaliação sobre a questão da validade, em que necessariamente uma delas será válida e a outra não. Já nas colisões entre princípios se deve analisar somente qual deles, naquela situação concreta, deverá prevalecer e, por isso, ser aplicado.
Assim, no conflito total entre regras, vê-se que é impossível haver a coexistência das duas regras que se contradizem, sendo necessário que uma delas seja considerada inválida e, consequentemente, revogada. Contudo, nas colisões entre princípios, a não aplicação de um deles não significa a sua invalidade e, então, não será excluído do ordenamento jurídico. Nesse caso, o que ocorre é simplesmente a impossibilidade da utilização de um princípio para a resolução do problema, portanto, esse mesmo princípio poderá ser aplicado em situação diversa, prevalecendo, inclusive, sobre aquele que o afastou em primeiro caso (SILVA, 2003, p. 621-622).
À vista disso, percebe-se que o conflito entre regras pode ser solucionado, regra geral, fazendo-se a observância de alguns critérios, sendo esses: a) o hierárquico, no qual a regra que for hierarquicamente superior exclui a que for inferior, conforme a premissa lex superior derogat legi inferiori; b) o cronológico, em que a regra posterior revoga a anterior, lex posterior derogat legi priori; c) o da especialidade, no qual a regra especial derroga a que for geral, lex speciallis derogat legi generali. (ALEXY, 2008, p. 92-93)
No entanto, tratando-se este estudo sobre os direitos fundamentais, deve-se aprofundar acerca da solução para a colisão entre princípios, a qual não segue o mesmo procedimento descrito para as regras, pois, como já explicado, aqui não haverá a exclusão de um princípio em detrimento do seu confronto com o outro.
1.3.2 O princípio da proporcionalidade na resolução de conflitos envolvendo direitos fundamentais
Os direitos fundamentais contêm em si uma natureza principiológica, tendo em vista que, de acordo o abordado sobre o conceito de princípio, expressam em seu enunciado obrigações que são correspondidas, em conformidade com o caso concreto, em graus diversos, o que denuncia o não absolutismo na sua aplicação. Porém, sendo esses direitos norteadores do ordenamento jurídico, há de se atentar para não tornar essa relativização tão flexível, como aponta Marmelstein (2013, p. 365):
Isso não significa, contudo, dar uma carta em branco para que os direitos fundamentais sejam suprimidos abusivamente. [...]. Portanto, qualquer limitação a direitos fundamentais deve ser considerada suspeita e, por isso mesmo, deve passar por um exame constitucional mais rigoroso, cabendo ao judiciário exigir a demonstração de que a limitação se justifica diante de um interesse mais importante. E é nesse ponto que entra em cena o mais importante princípio de interpretação dos direitos fundamentais, que é o princípio da proporcionalidade.
Portanto, para que se mantenha a segurança jurídica, a restrição dos direitos fundamentais só deve ocorrer para preservar outro valor constitucional e é preciso que a resolução da colisão de princípios seja encontrada através de procedimento judicial próprio, aplicando-se, segundo a doutrina tradicional, o princípio da proporcionalidade, o qual consiste em uma técnica de sopesamento nos termos da lei de colisão.
Ainda se fazendo referência à obra de Marmelstein (2013, p. 367-375), demonstrando a doutrina estar inspirada em decisões da Corte Constitucional alemã, o princípio da proporcionalidade é analisado sob a ótica de três dimensões: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.
No que concerne à adequação, significa que o método a ser utilizado pelo judiciário deve ser eficaz para se alcançar o objetivo almejado. Ou seja, deve haver uma pertinência que possa justificar a limitação ao direito. É importante salientar que o propósito buscado com a aplicação dessa medida tem que ser compatível com a constituição, do contrário, tornar-se-á inválido o processo.
No que diz respeito à vertente da necessidade, ela se subdivide na observância da vedação de excesso e da vedação de insuficiência. No primeiro caso, o objetivo é aferir se o meio adequado escolhido é a forma menos agressiva de se alcançar a efetivação de um direito específico. Por exemplo: um cidadão se encontra entre a vida e a morte e, para salvá-lo, existe um hospital público no país com tecnologia suficiente para reverter o quadro, no entanto, ele é enviado ao exterior para um hospital tão capacitado quanto o anterior, mas é particular, logo, precisará ser paga as despesas.
Apesar de se ter consciência de que enviar o indivíduo ao exterior irá curá-lo, não é necessário, já que os ônus serão menores se ele permanecer em uma unidade pública de saúde, já que o tratamento será menos oneroso e suficiente para a sua recuperação.
Já quanto à vedação de insuficiência, a necessidade decorre do dever de proteção do poder público, o qual precisa ter um posicionamento a fim de se utilizar de medidas que sejam eficazes para proteger os direitos fundamentais de situações que possam violá-los. Ou seja, é um princípio que serve para evitar a omissão do Estado no cumprimento do imperativo constitucional.
Concluindo, a última dimensão a ser verificada é a da proporcionalidade em sentido estrito, na qual se deve analisar se a medida escolhida trouxe mais vantagens ou desvantagens, obtendo o resultado por meio da ponderação dos interesses de acordo com a constituição. Assim, pode-se obter uma reflexão crítica sobre as decisões judiciais e, consequentemente, um controle limitador da atividade jurisdicional.
A partir da apreciação sobre a proporcionalidade, é importante chegar à conclusão que ela não é equivalente à ideia de razoabilidade, a qual se aplica quando se trata de direitos infraconstitucionais, mas ao contrário, aquele princípio, como explanado acima, possui suas particularidades por ser específico à aplicação da constituição, como no tratamento dos direitos fundamentais, segundo a visão de Dimoulis (2014, p. 189):
Dito de outra forma, a proporcionalidade não é analisada aqui, nem deveria ser entendida no âmbito da dogmática dos direitos fundamentais como regra de equidade, prudência, ponderação, reciprocidade, moderação, bom-senso, razoabilidade, equilíbrio ou qualquer outra qualidade e “virtude” dessa natureza. A proporcionalidade é analisada como instrumento juridicamente configurado e delimitado para analisar problemas de constitucionalidade de atos infraconstitucionais.
Infere-se, então, que a colisão entre direitos fundamentais se dá não por estarem hierarquicamente acima uns dos outros, mas porque contêm em si ideologias que, em diversas situações, contrapõem-se e, por isso, precisa ser solucionada através de método específico, utilizando-se o princípio da proporcionalidade quando decorrem de princípios, a fim de preservar a sua função de zelar pela dignidade humana.
2 OS DIREITOS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E À LIBERDADE RELIGIOSA
Levando em conta que o objetivo deste trabalho é a análise de caso sobre o atentado ao jornal francês Charlie Hebdo, faz-se necessário, neste momento, atentar-se a dois direitos fundamentais elencados na constituição brasileira de forma particular: a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, estando expressos, respectivamente, no art. 5º, incisos IX e VI.
Para tanto, justifica-se pelo fato de que os dois direitos acima mencionados se colidiram na ocasião do referente atentado, sendo essa a temática abordada no próximo capítulo. Por ora, será realizada a análise sobre cada uma das citadas liberdades tuteladas constitucionalmente.
2.1 O direito à liberdade
A ideia do estabelecimento de direitos fundamentais tem aparições desde a antiguidade, como se pode observar em passagens bíblicas, como os dez mandamentos, bem como nos primeiros documentos jurídicos, exemplificando, o Código de Hamurabi. Como já constatado, esses direitos decorrem de fatores históricos da humanidade e, desde os primórdios, sua origem se deu dessa forma.
Assim, gradualmente, foi sendo desenvolvido no homem a noção de sua valorização pela sua condição humana, reconhecendo-se, então, como um sujeito detentor de direitos, pelos quais houveram várias lutas para que fossem garantidos, tendo em vista a existência de fatores de opressão. Dessa forma, iniciou-se a busca pelos direitos fundamentais pela necessidade de liberdade:
A causa primeira ao surgimento da teoria dos direitos fundamentais traz suas raízes na liberdade do ser humano, que à época do direito das gentes vivia em comunhão com o bem comum, onde tudo era de todos, inexistindo-se a noção de propriedade privada. Tal liberdade veio a ser restringida, por vezes, de maneira integral, quando da opressão política e social voltada à garantia da dominação econômica. (MATTOS JUNIOR, 2009, p. 20)
Esse contexto remete à primeira geração de direitos fundamentais, correspondendo à reação da sociedade quanto à repressão advinda do poder do governo do antigo regime. Portanto, considera-se que, a partir do direito à liberdade, com o decorrer das épocas, foram sendo evidenciadas as demais fragilidades sociais.
Contudo, pelo contexto social existente na antiguidade, sofreu-se a crise da conceituação da liberdade, findando no regime liberalista que, em vez de favorecer o cidadão, criou abismos de desigualdade, como analisado anteriormente. Portanto, hoje se sabe que se fez necessária a superação da visão inicial sobre esse princípio, o qual tinha como referência apenas valores econômicos, mas que, atualmente, devem ser acrescidos os ideais humanistas para se alcançar a essência de seu valor.
De acordo com Bonavides (1996, p. 61), fazendo referência ao pensamento do sociólogo Alfred Vierkandt, o conceito de liberdade formulado no liberalismo só estaria correto se, verdadeiramente, houvesse igualdade, a qual era mero aspecto formal, servindo como uma ideia utilizada para encobrir uma série de desigualdades, findando por oprimir os mais fracos. Assim, qual seria, afinal, o conceito de liberdade?
Sobre o tema, Pulido (2009, p. 48-71) cita a obra de Noberto Bobbio relatando sobre os três conceitos de liberdade discriminados pelo último, quais sejam: a liberdade liberal, a liberdade democrática, também sendo conhecida como autonomia, e a liberdade positiva.
A liberdade liberal estaria relacionada com a ideia de poder realizar ou não determinados atos da vida sem o impedimento da sociedade e, principalmente, do poder estatal. Essa faculdade seria devido à ausência de regulamentações, ou seja, tudo se é permitido posto que não há positivada nenhuma obrigação ou proibição, tendo a liberdade a mesma noção de licitude. Chega-se à conclusão que aqui se refere à um conceito negativo acerca da liberdade pela falta de normatização.
Já a liberdade democrática, ou autonomia, refere-se não mais à inexistência de leis, ao contrário, seria o próprio cidadão a estabelecer as normas que deveria cumprir. Ou seja, ser livre não seria estar desprendido de obrigações, mas obedecer apenas ao que cada homem considerasse como norma a ser seguida. Neste raciocínio, Noberto Bobbio defende que todos devem participar de algum modo da elaboração legislativa.
Quanto à liberdade positiva, essa seria caracterizada pela perspectiva de que todo ser humano deve possuir os meios necessários ao alcance de uma vida digna, estando esse conceito influenciado pelas ideologias socialistas do século XIX. Em síntese, a liberdade consiste na prerrogativa de que ao homem serão resguardadas as possibilidades de auferir as garantias constitucionais e, assim, evidencia-se a presença da norma como meio de atingir esse objetivo.
Essa noção de liberdade pode ser encontrada na doutrina de demais juristas, exemplificando, na ótica de Vasconcelos (2016, p. 158), tem-se:
A liberdade consiste na condição de uma pessoa poder dispor de si, uma faculdade de fazer ou deixar de fazer uma coisa, o livre-arbítrio sem a influência de qualquer tipo de coação. ‘Do latim libertas, de liber (livre), indicando genericamente a condição de livre ou estado de livre, significa, no conceito jurídico, a faculdade ou o poder outorgado à pessoa para que possa agir segundo sua própria determinação, respeitadas, no entanto, as regras legais instituídas’.
Já Mendes e Branco (2016, p. 263) asseveram acerca do conceito: “As liberdades são proclamadas partindo-se da perspectiva da pessoa humana como ser em busca de autorrealização, responsável pela escolha dos meios aptos para realizar as suas potencialidades. ”
Em resumo, a tutela a essa determinada faculdade tem como substrato a proteção da autonomia de cada homem, tendo como limitação a premissa de que a liberdade de um se finda quando interfere na do outro e, por isso, há previsão normativa na Constituição brasileira acerca de certas “liberdades”, já que esse direito pode se manifestar de diversas formas, como na escolha de ir e vir, na opção profissional, em decisões coletivas de manifestação, dentre outras que são alvos de constantes ataques, no intuito de assegurá-las. Assim, propõe-se a se aprofundar no que diz respeito à liberdade de expressão e à liberdade religiosa.
2.2 A liberdade de expressão: surgimento, características e limites
Introdutoriamente, a liberdade de expressão é compreendida como a livre manifestação de pensamentos, de ideias, de opiniões e de informações por diversos meios, como a escrita, performances artísticas, documentários, protestos e demais situações que a criatividade humana despontar para esse fim.
De acordo com Farias (1996, p. 129), o pioneirismo na luta por essa liberdade foi da Inglaterra, destacando-se com a postura do parlamento em não reiterar o instituto do Licensing Act, o qual determinava a censura prévia.
Contudo, o autor afirma que os Estados Unidos e a França foram os primeiros a efetivamente conquistá-la, observando-se, respectivamente, o artigo 12 do Bill of Rights: “a liberdade de imprensa é um dos grandes baluartes da liberdade e não pode ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos”, e o artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “a livre manifestação do pensamento e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, à exceção do abuso dessa liberdade pelo qual deverá responder nos casos determinados por lei.” Neste sentido, fazendo um comparativo sobre o surgimento dessa liberdade e da sua definição atual através da evolução histórica, tem-se:
Se a liberdade de expressão e informação, nos seus primórdios, estava ligada à dimensão individualista da manifestação livre do pensamento e da opinião, viabilizando a crítica política contra o ancien régime, a evolução daquela liberdade operada pelo direito/dever à informação, especialmente com o reconhecimento do direito ao público de estar suficiente e corretamente informado; àquela dimensão individualista-liberal foi acrescida uma outra dimensão de natureza coletiva: a de que a liberdade de expressão e informação contribui para a formação da opinião pública pluralista – esta cada vez mais essencial para o funcionamento dos regimes democráticos, a despeito dos anátemas eventualmente dirigidos contra a manipulação da opinião pública. Assim, a liberdade de expressão e informação, acrescida dessa perspectiva de instituição que participa de forma decisiva na orientação da opinião pública na sociedade democrática, passa a ser estimada como um elemento condicionador da democracia pluralista e como premissa para o exercício de outros direitos fundamentais. (FARIAS, 1996, p. 134-135)
Constata-se, então, que a liberdade de expressão, inicialmente, teve como motivação o combate ao antigo regime em uma perspectiva individual, ou seja, cada homem deveria possuir a liberdade de criticar o sistema político independentemente da concordância dos soberanos.
Todavia, atualmente, esse princípio se caracteriza como um meio concreto de exercício da democracia, garantindo que os cidadãos sejam devidamente formados para a participação nas questões públicas através da manifestação de suas opiniões, as quais interferem no cenário em que se encontra a sociedade, tendo o poder de transformá-lo.
Ratificando esse sentido, a jurisprudência do Conselho Constitucional Francês faz referência ao assunto[2]{C}: “d’une liberté fondamentale, d’autant plus précieuse que son existence est l’une des garanties essentielles du respect des autres droits et libertés et de la souveraineté nationele”, revelando que não é possível que haja a dissociação do direito à liberdade de expressão dos valores fundamentais da democracia liberal (CABRILLAC; FRISON-ROCHE; REVET, 2009, p. 407).
Ressalte-se que, devido à importância desse direito e por ser diversas vezes ferido por formas de repressão ao longo da história, exemplificando-se pelo decreto do “AI-5” à nível nacional, sendo ato institucional que estabeleceu a censura da expressão no governo militar, foi criado o “Article 19”, nome que faz referência ao art. 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos, constituindo-se uma organização independente que tem o intuito de promover e proteger a liberdade de expressão em vários países através de monitoração, pesquisas, publicações, advocacia, campanhas e criação de normas.
Em referência às atividades da organização, foi lançado relatório sobre as violações contra os comunicadores no âmbito do Brasil em 2015, através de investigações, o qual revelou que a região do país com a maior proporção de casos foi o Nordeste com 57% do total, sendo que, anteriormente, o Sudeste ocupava essa colocação, observando-se que ainda as agressões estão concentradas, em maioria, nas cidades pequenas, sendo assim considerada as de até 100 mil habitantes (ARTIGO19..., 2016, online).
Além disso, os autores das violações têm como perfil, predominantemente, políticos e policiais, de forma semelhante aos estudos anteriores realizados pela organização. Em consequência, as motivações são, geralmente, devido a denúncias de irregularidade na gestão pública feitas pelas vítimas.
Abordando também o trabalho realizado pela organização à nível internacional, cita-se a análise do cenário de outros países, como no que concerne à regulamentação quanto à utilização da internet em Senegal, em que há uma crítica sobre a lei da “cybercriminalidade”, posto que em sua legislação existem vários aspectos que estão incompatíveis com as normas internacionais, causando risco de graves impactos negativos acerca da liberdade de expressão, como a desconsideração das penalidades quanto aos crimes de difamação e calúnia (SÉNÉGAL..., 2015, online).
Nesse sentido, pode-se avaliar que, para o alcance da preservação da dignidade da pessoa humana, é importante se considerar as limitações ao direito de liberdade de expressão, posto que o seu excesso pode se tornar abuso, chegando a configurar um ilícito penal, como os crimes contra a honra citados acima.
Acerca da temática, Mendes (1994, p. 297-301) declara que a Constituição deixa claro, em seu art. 220, que a liberdade de expressão não se constitui em um direito absoluto, haja vista que, para a sua aplicação, faz-se necessária a observância dos próprios dispositivos constitucionais. Se assim não fosse, os demais valores que possuem a mesma relevância restariam esvaziados diante de um poder irrestrito.
Verifica-se que, então, no sistema democrático brasileiro, os meios legais utilizados para impor esses limites são encontrados no expresso pelos princípios da Constituição, enfatizando-se a vedação ao anonimato (art. 5º, IV, CF/88), por ser uma medida preventiva às agressões por evitar que o autor do pronunciamento, pelo fato de não se identificar, esquive-se de se responsabilizar por quaisquer danos causados. Neste sentido, cabe a seguinte conclusão acerca da relativização das liberdades:
Dessa forma, tem-se o núcleo da liberdade tutelada diretamente pela Constituição, por se tratar de Direito Fundamental. Entretanto, os contornos que lhe estabelecem limites estão disponibilizados mediante leis do ordenamento jurídico que impõem obrigações ou proibições. É importante, entretanto, ressaltar que esses limites deverão se originar em leis em sentido estrito, ou seja ato normativo originado do Congresso Nacional. O sentido para esse entendimento é preciso: a limitação para o exercício da liberdade somente poderá advir de decisão para a qual houve consentimento popular. Assim, somente a lei como decisão oriunda da soberania popular (diretamente ou mediante seus representantes) teria legitimidade para opor limites ao exercício da liberdade. Por extensão, consoante Ferreira Filho (1988), outros atos normativos primários seriam capazes também de estabelecer tais limites: medidas provisórias e leis delegadas. (FREITAS; CASTRO, 2013, p. 334-335).
Assim, o mesmo povo que lutou pelo direito de poder manifestar suas ideias e opiniões será aquele que estabelece os limites para a mesma garantia, tendo a finalidade de resguardar os demais privilégios elencados como fundamentais, especialmente os direitos de personalidade, contemplando, por exemplo, a honra, a imagem e a privacidade.
Não sendo dessa forma, a liberdade de expressão iria prevalecer sobre a dignidade humana, descumprindo, assim, o objetivo dos direitos fundamentais, o que acontece nos casos enquadrados como “discurso ao ódio”, nos quais se busca a desvalorização do assunto sobre o qual se trata, conforme retratam Freitas e Castro (2013, p. 344):
Na busca de um conceito operacional para o discurso do ódio (hate speech), observa-se que tal discurso apresenta como elemento central a expressão do pensamento que desqualifica, humilha e inferioriza indivíduos e grupos sociais. Esse discurso tem por objetivo propagar a discriminação desrespeitosa para com todo aquele que possa ser considerado ‘diferente’, quer em razão de sua etnia, sua opção sexual, sua condição econômica ou seu gênero, para promover a sua exclusão social.
Concebe-se que o excesso é condenável pela ótica do Direito, como já relatado de maneira abrangente, estando notável a importância dos limites impostos à liberdade de expressão, apesar de ser igualmente necessária sua tutela para a preservação do Estado Democrático de Direito.
2.3 A liberdade de religiosa: surgimento, características e limites
Neste momento, analisando o âmbito da religião, pode-se fazer, primeiramente, uma comparação entre essa liberdade e a anteriormente citada: trata-se de um meio de se assegurar as livres formas de externar o pensamento e a opinião, contudo, de uma temática mais específica, a qual diz respeito à assunto de fulcro íntimo, como as crenças que cada pessoa alimenta interiormente.
Para se compreender de forma mais clara a especificidade da liberdade religiosa, a qual foi garantida expressamente no art. 5º, inciso VI da CF/88, vale-se da visualização do significado da palavra religião no dicionário (HOLANDA, 2017): 1. Culto prestado à divindade; 2. Doutrina ou crença religiosa; 3. O que é considerado como um dever sagrado; 4. Reverência, respeito. Assim, pela relevância do objeto, destinou-se o constituinte a tutelar a liberdade religiosa direta e especificamente.
Além disso, os fatores históricos também agiram nesse contexto. Silva Neto (2003, p. 113-114) afirma que, sem intenção de macular a imagem da Igreja, visto que houve o reconhecimento de seus erros por suas lideranças religiosas, o catolicismo foi utilizado como justificação do poder detido pelos governantes da monarquia, através da ideologia trazida na Teoria da Origem Divina Sobrenatural do Poder, consolidando a era absolutista, bem como determinando ser a religião católica a única fé possível de ser professada.
Na visão de Machado (2017, p. 338), o movimento protestante foi um marco decisivo para o início do desenvolvimento da liberdade religiosa, posto que criticava ideologias teológico-políticas estabelecidas no período medieval, dando espaço para outras crenças se difundirem, visto a determinação do Estado acerca catolicismo, como já apontado, desde a queda do império romano.
Contudo, apenas no ano de 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, é que a diversidade religiosa veio a ser tutelada entre as liberdades públicas, em seu art. 10: “Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei” (SILVA NETO, 2003, p. 114).
Em decorrência do desenvolvimento da consciência sobre a importância da liberdade religiosa como forma de garantir a dignidade do ser humano, ela foi elencada como direito fundamental e, no âmbito brasileiro, mais especificamente na Constituição Federal de 1988, teve vários reflexos para que houvesse a efetivação dessa faculdade.
Essa afirmativa é claramente evidenciada ao se deparar com as seguintes disposições: direitos de crença, culto, proteção às liturgias e locais de culto no art. 5º, VI, a objeção de consciência por motivos religiosos no art. 5º, VII e art. 143, §1º, direitos à assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva no art. 5º, VII, o ensino religioso como matéria facultativa em escolas públicas no art. 210, §1º, o reconhecimento do casamento religioso para efeitos civis no art. 226, §2º, a proibição do Estado para estabelecer religiões no art. 19, I e a imunidade tributária dos templos de qualquer culto no art. 150, VI, “b” (TERAOKA, 2010, p. 139).
No que concerne à liberdade religiosa em outros países, Teraoka (2010, p. 97-100) faz referência, por exemplo, à França, a qual não deixa esse direito expresso em sua constituição. Contudo, no preâmbulo da mesma, está a afirmação de que será seguido o que foi definido na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a qual se tornou a pioneira em positivar acerca do tema, como já disposto acima.
Já quanto aos Estados Unidos, o autor relata que o fato de o país ter sido colonizado por ingleses fugitivos de perseguições religiosas demonstra o quanto a liberdade neste aspecto tem repercussão para o povo americano. Tanto que o Bill of Rights expressa na primeira emenda que o Congresso não pode elaborar leis que prevejam a adoção de uma religião oficial, ou mesmo que proíbam professar alguma específica.
Retornando à realidade nacional, dentre as polêmicas que surgem quando se trata de religião na esfera estatal, Montero (2009, p. 7) relata sobre a influência das crenças nos diversos âmbitos da sociedade:
Não se trata aqui de tomarmos partido nesse debate, mas, sim, de refletirmos sobre os a priori implícitos que organizam os termos de sua formulação. Ao conceber a esfera pública em termos de mercado esse debate parte do suposto normativo implícito de que a religião está “fora de seu lugar”, isto é, está invadindo a esfera pública que deveria ser autônoma com relação às crenças e, em consequência disso, está tornando-se ela mesma mercadoria, ao assumir uma lógica própria aos espaços profanos de consumo de massa. Ao invés de restringirem-se ao mundo da vida privada, as instituições religiosas penetram de maneira cada vez mais acintosa na indústria do entretenimento, tornando-se proprietárias de canais de televisão e de emissoras de rádio, alimentando o mercado musical e do turismo, e se movem com autonomia crescente no campo das políticas públicas, promovendo campanhas nos setores da educação, da saúde e do trabalho. A natureza dessas “impertinentes” derivações do domínio religioso para além das fronteiras que lhe foram designadas como próprias pelo modelo secular republicano ainda não foi bem estudada em sua forma, estrutura e dimensões.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Giumbelli (2010, p. 77) aborda algumas situações envolvendo a exposição de imagens religiosas em tribunais, parlamentos e órgãos públicos, como no estado do Rio Grande do Sul, no ano de 2005, em que um juiz propôs, em um congresso estadual de magistrados, uma moção com a intenção de realizar a retirada do crucifixo e demais símbolos das salas de audiência. Pode-se citar também um representante do Ministério Público que opôs, em São Paulo, uma ação civil pública com o intuito de que a União procedesse à remoção das imagens religiosas das repartições públicas federais paulistas em 2009.
Esses são exemplos do entendimento de que a laicidade significa a ausência de qualquer conotação religiosa, ou seja, a total neutralidade. Em contrapartida, há o raciocínio de que a presença da religião como fator histórico e cultural de um povo não fere a existência de um Estado laico. Dentro dessa última conotação, dispôs o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que o uso dos símbolos religiosos é um traço cultural da sociedade brasileira, os quais não restringem a liberdade, mas, ao contrário, só a afirmam. (CNJ...,2007, online).
Nesse mesmo sentido se pautou o recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que autorizou o ensino religioso confessional nas escolas públicas decorrente de ação direta de inconstitucionalidade, a qual teve como promovente a Procuradoria-Geral da República (PGR), sobre acordo firmado entre Brasil e Vaticano no ano de 2008 que estabeleceu a disciplina de religião em horários normais. Assim se posicionou a ministra Cármen Lúcia no voto de desempate:
Não vejo submissão do Estado à submissão de religião na norma. A pluralidade de crenças, a tolerância – que é princípio da Constituição Federal – combina-se com os dispositivos aqui atacados. Pode-se ter conteúdo confessional em matérias não obrigatórias nas escolas (STF..., 2017, online).
Analisando o exposto sobre a liberdade religiosa, reconhece-se a importância de sua garantia à dignidade humana, porém, aqui também se contempla discussões que dizem respeito às restrições impostas à mesma para alcançar o mesmo fim de sua tutela, ou seja, resguardar ao homem condições de viver com dignidade.
Sobre a limitação a esse direito, Teraoka (2010, p. 55-57) aduz que, diferentemente das constituições brasileiras anteriores, a de 1988 não traz, expressamente, os limites à liberdade religiosa. Apesar disso, relembra que não existem direitos absolutos, fazendo retomar a perspectiva da ponderação para a aplicação dos direitos fundamentais como mandamentos de otimização.
Além disso, o autor faz alusão à aplicação dos critérios utilizados pela Suprema Corte dos Estados Unidos, a qual afirma que não será considerada inconstitucional a lei que: a) tenha propósito secular; b) não estimule e nem iniba a religião; c) não crie embaraço às práticas religiosas.
Observa-se uma certa dificuldade em determinar limites claros para a liberdade religiosa, por isso, necessário se faz se atentar para a jurisprudência acerca das decisões proferidas sobre a temática. Pode-se visualizar esse raciocínio na cautela demonstrada no julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a benefício auferido por parlamentar ao realizar evento religioso com o intuito de receber votos. Nesse cenário, o ministro Gilmar Mendes pediu a suspensão do julgamento sob a justificação de que deveria tentar antecipar o resultado do processo, tendo em vista ser essa prática recorrente. (TSE..., 2016, online).
Dessa forma, denota-se a necessidade do aprofundamento de estudos jurídicos no âmbito desse direito fundamental, possibilitando uma maior compreensão sobre o significado da laicidade do Estado e, consequentemente, dos limites a serem fixados quanto à liberdade religiosa, a qual não deve ferir a ordem pública.
3 ESTUDO DE CASO: O ATENTADO AO JORNAL CHARLIE HEBDO E A COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Tendo sido explanada a colisão entre direitos fundamentais, bem como sobre as liberdades de expressão e religiosa, aprofundando-se no conhecimento científico acerca desses temas, faz-se menção, neste momento, da aplicação das teorias abordadas no caso concreto, mais especificamente, no atentado ao jornal Charlie Hebdo.
Para tanto, utiliza-se da exploração dos fatos do causídico, observando-se os lados opostos que se colocaram em confronto, tendo em vista que se deseja alcançar o resultado que defina qual dos direitos em questão deve prevalecer, conforme os métodos apresentados outrora. Ou seja, é preciso um olhar criterioso, já que não se trata de uma ciência exata, a qual é passível da interferência de critérios subjetivos e, portanto, deve ser aplicada a máxima cautela para se preservar a ordem constitucional.
3.1 O atentado ao jornal francês
Em 7 de janeiro de 2015, na cidade de Paris, mais especificamente no escritório do jornal Charlie Hebdo, foram mortas 12 pessoas e 11 ficaram feridas devido a um tiroteio. As vítimas fatais eram, em maioria, jornalistas do referente noticiário, conforme os devidos processos de identificação, além de um policial, um muçulmano chamado Ahmed Merabet, um servidor do prédio atacado e um convidado que estava de visita à redação. (ATAQUE..., 2015, online).
Estava, portanto, estabelecido um cenário de violência, caracterizado como terrorismo, apesar de ser árdua encontrar uma definição exata para esse termo, devido às divergências de pensamento à nível internacional, Martins (2010, p. 10) o explica como o propósito de causar um medo intenso e o espalhar, baseando-se na própria noção do que é terror.
Neste sentido, o ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente a Lei 13.260/16, apesar de não ser a legislação aplicada ao caso, utilizando-se da sua exposição a título de exemplificação acerca da concepção sobre o terrorismo, afirma:
Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
§ 1o São atos de terrorismo:
I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;
[...]IV - sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;
V - atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa.
Esse “terrorismo” pode ser identificado uma vez que os irmãos Said e Chérif Kouachi adentraram na redação do jornal com metralhadoras, já sob os discursos de ameaça em vista das publicações de charges que faziam referência ao profeta Maomé (ATAQUE..., 2016, online), o qual é reverenciado pela religião islâmica.
É que o referente jornal possui a peculiaridade de se utilizar de charges satíricas para basear as suas reportagens, traço esse característico do humor francês sarcástico, o que pode gerar desconforto àqueles que são alvos das notícias. Natali (2015, online), retratando a história do periódico, expressa que, muito além de um meio de transmissão de humor negro, ele deu amplitude para uma mídia que se definia como libertadora, revelando os pensamentos de esquerda não oficiais, remetendo-se à criatividade das barricadas estudantis de maio de 1968.[3]
Dessa forma, as matérias publicadas com as charges do profeta Maomé desagradaram de sobremaneira aqueles que professam a fé islã, tendo em vista seu cunho ofensivo. Em reação, os muçulmanos citados nos relatos acima se utilizaram da força bruta para impedir a propagação da mensagem transmitida pela mídia, ceifando, irreversivelmente, a possibilidade de os jornalistas atacados prosseguirem a expressar seus pensamentos.
No fim de semana após o fatídico, cerca de 4 milhões de franceses se reuniram e se manifestaram através do slogan “Je suis Charlie”, o qual estava sendo divulgado pelas redes sociais, realizando passeatas para homenagear as vítimas do atentado e reafirmar, com vigor, o direito de se expressar livremente. (LE RESUME..., 2015, online).
Além dos protestos pacíficos, houve também uma explosão de ações que repreendiam o culto Islã. Segundo o Observatório Contra a “Islamofobia” do Conselho Francês do Culto Muçulmano, totalizaram-se 50 atos anti-muçulmanos no período de apenas 5 dias. (FLAMBÉE..., 2015, online).
Assim, resta clara a existência do conflito entre o direito de liberdade de expressão e liberdade religiosa neste caso concreto, evidenciando-se que ambas as partes do litígio feriram, de alguma forma, o direito de outrem, desestabilizando a paz social através da interferência em ideais e princípios íntimos, ou melhor, no que se entende como dignidade humana.
3.2 A violação de direitos por parte do jornal
Como já apontado, o jornal Charlie Hebdo é reconhecido por suas sátiras, pela sua maneira de transmitir informação através de charges que possuem um humor que, na verdade, revela sérias críticas. No caso do objeto desta análise, a propagação de ilustrações e mensagens que aludiam sentido negativo à religião Islã por parte do jornal causaram ofensa aos muçulmanos, sendo a origem da motivação dos atos de violência praticados naquela ocasião.
As reportagens que faziam referência ao profeta Maomé estavam sendo publicadas desde 2006, ano no qual começaram as ameaças feitas por alguns grupos de muçulmanos. (ATAQUE..., 2016, online). Desde então, o noticiário tem, constantemente, divulgado discursos que ultrapassam o fim informativo e alcançam o excesso, ferindo os valores religiosos, os quais tem cunho extremamente íntimo de um povo.
Exemplificando, em uma das capas do periódico, há uma ilustração retratando o retorno de Maomé na qual esse está sendo degolado por um de seus fiéis como nas recorrentes práticas terroristas, associando-o a esses atos de violência (figura 1). Em outra publicação, foi feito o desenho de um dos cartunistas beijando o profeta sob a legenda de “o amor é mais forte que o ódio”, realizando uma provocação quanto as ameaças feitas contra o jornal (figura 2).
Figura 1 – Representação do profeta Maomé sofrendo um ataque terrorista
Fonte: Além..., 2015, online
Figura 2 – O amor é mais forte que o ódio
Fonte: Além..., 2015, online
Ainda foram impressas outras edições que se remetiam ao líder dos islamitas, devendo-se sublinhar que a própria tentativa de representação figurativa do profeta já é considerada uma falta grave para os muçulmanos, pois eles temem que Maomé seja idolatrado como um deus, assim como os cristãos se relacionam com Jesus, já que o único Deus de sua fé deve ser Alá.
Atentando-se para o efeito das charges, Klein e Hoffman (2009, p. 63-64) abordam acerca da estética do grotesco, que se materializa por meio de técnicas de ilustração e do exagero contido nas figuras, através do qual transmitem mensagens de forma mais atrativa, realizando uma fácil persuasão do leitor. Ainda, especificamente sobre as charges de Maomé, os estudiosos citados dispõem:
[...]. Na cultura da visibilidade, na qual tudo é criado com o fim de ser visto, as imagens são exploradas com o intuito de seduzir e prender a atenção do público. A credibilidade da imagem, sua supervalorização em detrimento da informação, pode gerar conflitos e reforçar estereótipos. [...]. As charges, além de representar figurativamente o profeta, o que já é proibido pelo islamismo, associam-no a atos suicidas ou terroristas. Essas representações desvirtuadas constituem apenas parte de um cenário de referências redutoras do islã na mídia ocidental, estimulando no seu horizonte uma espécie de cultura do medo em relação ao Oriente Médio. (KLEIN; HOFFMAN, 2009, p. 61)
Além disso, Silva (2015) destaca que em momentos de conflitos culturais, a interpretação da religião através do riso pode causar a banalização de alguns problemas sociais, tais como a xenofobia, o antissemitismo, o racismo e etc. Esses fatores geram sentimentos de incompreensão por parte do povo muçulmano, tendo como consequência as crises de identidade.
Portanto, consegue-se depreender que o jornal ultrapassou os limites da liberdade de expressão, posto que, muito além do objetivo de informar, findou por estereotipar a religião Islã, causando a impressão de que ela se baseia no terrorismo, gerando repulsa na população de forma geral, alimentando preconceitos.
Contudo, sabe-se que os atos terroristas são praticados apenas por uma parcela dos muçulmanos de grupos específicos, os denominados fundamentalistas, mas que, de forma geral, essa não é uma postura adotada pelos islamitas. Está caracterizada, então, a deturpação da imagem desse povo, o que denota a violência impregnada nas publicações do jornal, identificando-se, então, o discurso ao ódio.
Esse excesso cometido pelo jornal encontra embasamento na história de seu país de origem, a França, posto que a mesma foi o centro revolucionário no qual se expandiram os ideais iluministas, nos quais foram geradas as noções de direitos fundamentais. Assim, a liberdade está entranhada nos princípios franceses e tem necessidade de se concretizar em máximas proporções, o que identifica o porquê da maneira de emitir opiniões do referente noticiário.
Fato é que a expansividade no uso da liberdade de expressão, com as frequentes publicações da mídia, incluindo as do Charlie Hebdo, as quais eram frequentes, infiltraram no imaginário dos seus leitores, em escala internacional, um condão negativo sobre o Islamismo, o que pode causar, para várias pessoas, a impossibilidade de enxergar a realidade de maneira diversa da transmitida pelas charges.
Essa afirmativa é uma realidade no solo francês, tanto que estão sendo banidos, com frequência, imigrantes do seu território, através do estabelecimento de uma legislação mais rígida como desculpa para não aceitar o diferente, alicerçando-se na laicidade. Além disso, a discriminação religiosa, mesmo que o Islã tenha como fundamento a paz, ao contrário do pregado na mídia, atinge os grupos que se encontram na periferia, como os argelinos, os quais, ainda que nascidos na França, estão excluídos do convívio social (BARBOSA, 2015, p. 161).
Conclui-se, consequentemente, que a liberdade religiosa foi violada pelo jornal à medida que foram corrompidos os fundamentos do islamismo, transmitindo uma imagem errônea acerca dos muçulmanos, gerando exclusão e preconceito, fatores que denigrem a dignidade humana de forma coletiva.
3.3 A violação de direitos por parte dos terroristas
Diante das publicações que continham a representação do profeta Maomé, foi praticada outra forma de violência, ensejando em um ataque aos jornalistas e outras pessoas que se encontravam na redação do noticiário, gerando vítimas fatais, tendo falecido doze pessoas como o apontado anteriormente.
Os irmãos Said e Chérif Kouachi, que estavam vinculados à uma rede chamada Buttes-Chaumont, fazendo referência a um parque ao norte de Paris, a qual se constitui em um grupo que realizava o treinamento dos seus combatentes para a jihad[4] no Iraque, foram os responsáveis pelo atentado ocorrido na sede do jornal Charlie Hebdo. Ressalte-se que ambos já estavam incluídos na “lista negra” de terroristas dos Estados Unidos (IRMÃOS..., 2015, online).
Aqui deve se atentar que o ataque não foi idealizado pelos muçulmanos, como esclarecido anteriormente, mas por um grupo fundamentalista, sendo esses definidos como aqueles que se baseiam na interpretação literal dos livros sagrados, devendo as escrituras serem seguidas à risca (O QUE É..., 2017, online).
Segundo as pesquisas de Asnis, Werlang e Sá (2006, p. 91) existem escolas islâmicas específicas para o estudo do Alcorão chamadas “madrassas”, instituições antigas ligadas a mesquitas, as quais tem como objetivo a formação dos talibãs que buscam o “poder”. Ressalte-se que a revolução do Irã que findou o governo do Xá Reza Pahlevi surgiu dessas instituições de educação, alimentadas pelo espírito revolucionário.
Neste contexto, as “madrassas” estão baseadas no extremismo religioso e se organizaram com a finalidade de formar os “soldados de Alá”. Assim, as crianças são direcionadas a usar vestimentas de militares, utilizar armamentos e as leituras do Corão são selecionadas nos pontos em que a interpretação é enfatizada na violência, sem considerar o contexto em que estão escritas, o que resultaria em conotação diversa da transmitida pelos professores.
Ainda retratando a formação religiosa desse povo, Elgebaly (2015, p. 155-156) defende a ideia de que o fundamentalismo é uma consequência da ausência de humanidade e justiça da modernização, o que ocasionou diversos problemas na resolução das causas culturais do terrorismo, posto que não se desenvolveram instituições educacionais modernas nas periferias, predominando a instrução de mentes eurocêntricas, unidimensionais e monossêmicas que não acolhem a diversidade, as diferenças e as críticas.
Dessa maneira, uma parcela da população islã, destaque-se que é a minoria, é incentivada, desde a infância, à realização dos atos terroristas, alienando os indivíduos a considerar esse tipo de conduta normal, ou melhor, correta, posto que não há tolerância com aquilo que diverge com seus pensamentos e mentalidades. Utiliza-se, portanto, da religião como justificativa para se cometer atrocidades e, neste ponto, é nítido o excesso do uso da liberdade religiosa.
Esse abuso, no caso em análise, findou em ataque terrorista. Pereira (2009, p. 230) faz a diferenciação entre guerra e terrorismo afirmando que a primeira se dá entre Estados, já a segunda é planejada por pessoas de modo individual ou agrupadas por milícias sem a observação de nenhuma regra internacional ou limites. Além disso, enquanto na guerra há a consciência da busca da preservação do maior número de vidas possíveis, no terrorismo predomina o ataque indistinto de civis e militares.
Esse foi o mesmo cenário do atentado ao jornal Charlie Hebdo, visto que para fazer justiça as suas convicções religiosas, os irmãos Kouachi não se detiveram à observação da razoabilidade dos seus atos, nem mesmo em quem poderia ser atingido, mas interessava tão somente “vingar o profeta”, como foi afirmado por eles segundo os noticiários, através da cessação da liberdade de expressão e, como se não bastasse tamanha brutalidade, atingiram, até mesmo, o direito à vida dos jornalistas e demais vitimados.
Importante o estudo dos atos de terrorismo e, em muitos casos, suas motivações religiosas, porque essa forma de violência está cada vez mais recorrente, o que se pode constatar por meio da mídia que divulga, com certa frequência, atentados desse tipo em vários países. Desde o episódio ocorrido no Charlie Hebdo, até o fim do ano de 2016, houve ciência de, pelo menos, 12 ataques pelo mesmo grupo terrorista. Dentre eles, uma explosão de uma mesquita xiita no Kuwait, o bombardeio a um subúrbio do Líbano em que a população é predominantemente xiita, fuzilamentos em massa e lançamento de bombas em Paris e Saint-Denis no mesmo dia, além de atos suicidas em Istambul, e outros (DELLAGNEZZE, 2016, p. 18-29).
Devido a essas permanentes ameaças, o governo francês sancionou uma nova lei antiterrorismo, a qual entrou em vigor em 1 de novembro de 2017, a fim de sair do estado de emergência, mas não diminuir a estratégia de segurança do país. Em seus dispositivos estão previstos poderes policiais ampliados, como realizar buscas em propriedades, bem como escutas, e o fechamento de mesquitas se forem suspeitas de pregar o ódio (FRANÇA..., 2017, online).
Denota-se, então, o alastramento, em esfera mundial, da intolerância por parte dos terroristas, da qual são geradas a violência, o ódio, o desrespeito à vida, à liberdade de expressão e demais direitos fundamentais, os quais, por ter caráter social e político, além de normativo, são extremamente significativos por se constituírem meios de garantir a dignidade humana, como já exaustivamente abordado. Averígua-se, aqui, que a utilização da liberdade religiosa colidiu com diversas outras faculdades, estando revelada a gravidade das violações de direitos por parte dos terroristas.
3.4 Que direito deve prevalecer?
Chega-se o momento de confrontar os atos do jornal Charlie Hebdo com a conduta dos terroristas e, neste caso específico, responder se deve prevalecer a liberdade de expressão ou a liberdade religiosa, posto que, como já analisado, sendo ambos direitos fundamentais, não existe uma hierarquia estabelecida de um em relação ao outro, mas devem ser observados os limites constitucionais.
Ainda retornando ao assunto da resolução dos conflitos entre direitos fundamentais, aplica-se, aqui, o princípio da proporcionalidade, no qual se observa a adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito para se alcançar o resultado pretendido, recordando que essas faculdades têm caráter principiológico.
Neste sentido, é notável que a forma escolhida por ambas as partes não foi adequada. No caso do jornal, suas publicações findaram por ter uma repercussão além do objetivo próprio de exprimir suas opiniões e pensamentos para transmitir informações, também geraram a estereotipização e o preconceito de um povo. Já os terroristas atingiram o efeito almejado, já que, através da distorção dos princípios da religião Islã, causaram o terror e ceifaram vidas a fim de interromper a liberdade de expressão, porém, estando a sua finalidade incompatível com a constituição, não é válida.
Ressalte-se, ponderando pela via da necessidade, que apesar de o jornal ter ultrapassado o limite do uso da liberdade de expressão por todo o exposto neste estudo de caso, a resposta dada pelos terroristas para frear o abuso cometido pelo noticiário foi deveras excessiva, portanto, descabida, não sendo o meio mais suave para contornar a situação, mas, pelo contrário, foi a maneira mais agressiva e, até mesmo, insuficiente, posto que a violência não é a solução para a intolerância religiosa, sendo a conduta considerada desnecessária. De acordo com a visão da antropóloga Barbosa (2015, p. 159-160) sobre a problemática, tem-se:
[...]. O que está faltando? Talvez a resposta mais rápida seja: falta diálogo! Neste sentido, os muçulmanos terão que ser mais propositivos em tentar ensinar ao Ocidente do que se trata o Islam, e não bastam discursos religiosos. É preciso ocupar o espaço público/político de forma positiva, fazer com que a sociedade veja quem são os muçulmanos e no que eles acreditam. Enquanto os muçulmanos estiverem escrevendo e falando para eles mesmos, a mensagem não será comunicada. É preciso sair da defensiva e “contra-atacar” com um discurso que o ocidente compreenda. Talvez falte, e aí, o ponto pode ser interessante, falte mais intelectuais muçulmanos comprometidos em desconstruir a imagem que os ocidentais fazem do Islam e dos muçulmanos e falta, sobretudo diálogo e ação política. Não basta dizer que seguem o Alcorão e a Sunnah do Profeta Muhammad, é preciso muito mais que discursos, é preciso criar o contradiscurso daquilo que está na mídia. O não diálogo, levará certamente a outros riscos e não promove nem o Islam, muito menos a desconstrução etnocêntrica que a Europa se encontra desde os primórdios. [...] (grifo original).
Ou seja, o desfecho para os problemas de falta de compreensão entre o ocidente e o oriente, no que diz respeito à religião e às condutas decorrentes dela, é o fortalecimento de um verdadeiro diálogo, mas não uma conversa de qualquer maneira, e sim buscando se comunicar em uma linguagem que facilite o entendimento entre ambas as partes, esforçando-se mutuamente para estudar e querer aprender o ponto de vista diverso. A partir disso é que se pode projetar uma sociedade que cultiva o respeito pelas diferenças e, dessa forma, estabelece a paz. Essa seria, então, a medida necessária.
Importante enfatizar que, juntamente ao diálogo, a reparação de danos também se constitui como uma diligência cabível para coagir a cessação do abuso da liberdade de expressão. Braha Netto (2009, p. 21) elucida que os danos morais não podem ser restituídos, mas geram uma compensação, já que aqui não há como retroceder à honra ferida. Porém, é óbvio que a indenização pecuniária estabelecida para compensar as vítimas desestimula a reiteração das práticas causadoras do dano por consequência do prejuízo financeiro ao ofensor.
No entanto, os terroristas optaram por adentrar a redação do Charlie Hebdo com o intuito de “honrar o profeta Maomé” através do homicídio dos jornalistas, de um visitante e policiais, achando que com essa atitude estariam instaurando o respeito a sua maneira de viver a fé e fazendo com que o mundo entenda as suas condutas e as respeite. Porém, como o exposto, esse ato foi ineficaz, estimulando a predominância da incompreensão, como se pode constatar pelos protestos que se espalharam pela França, fomentando a intolerância.
Quanto à proporcionalidade em sentido estrito, a doutrina de Marmelstein (2013, p. 375-376) traz um importante questionamento: “o benefício alcançado com a adoção da medida sacrificou direitos fundamentais mais importantes (axiologicamente) do que os direitos que a medida buscou preservar? Em uma análise de custo-benefício, a medida trouxe mais vantagens ou mais desvantagens? ” Para responder a essa pergunta, afronta-se, novamente, a postura do jornal e dos terroristas.
O Charlie Hebdo, através da defesa ferrenha à liberdade de expressão a todo custo, causou ofensa aos muçulmanos e, pode-se até dizer que gerou motivos para a discriminação de um povo, pecando em seu excesso, mas essa é uma situação reversível através do diálogo e da aplicação de indenização, como já apontado, além da retratação, a qual é um meio bastante eficaz utilizado pela mídia para esclarecer seus equívocos.
Porém, o atentado terrorista, além de amedrontar com o intuito de impor barreiras à faculdade de exprimir os pensamentos dos jornalistas franceses em questão, atingiu o direito à segurança, à paz e à própria vida. Assim, com o mau uso da liberdade religiosa, foram anulados esses direitos também considerados essenciais à dignidade do ser humano e, para evitar situações como essa, é que se faz necessário recordar que os direitos fundamentais não são absolutos, mas devem ser efetivados em harmonia com os demais.
Denota-se, então, que as consequências geradas por essa violência não podem ser desfeitas, pois as vidas das pessoas que os irmãos Kouachi brutalmente mataram não podem ser recuperadas. Também se deve considerar que até mesmo a identidade da maioria dos islamitas pacíficos permanece desonrada pela prevalência da imagem transmitida por uma minoria de fundamentalistas adeptos ao terrorismo.
Assim, em resposta ao questionamento levantado para analisar a proporcionalidade em sentido estrito, nota-se que a defesa da liberdade de expressão utilizada para ridicularizar os preceitos muçulmanos é a mesma que pode se fazer uso para a retratação com a identidade e cultura desse povo.
Todavia, a forma como se deu o exercício da liberdade religiosa, focando no retratado neste estudo de caso, sacrificou sim outros direitos fundamentais desproporcionalmente, pois, como visto acima, não havia necessidade de um ataque terrorista, o qual apenas gerou revolta, intolerância e ceifou vidas, deixando de criar a consciência de “respeito”, através do medo, que evitaria a continuidade de publicações ofensivas, assim como o pretendido pelos terroristas.
Portanto, especificamente para essa situação, a liberdade de expressão deve prevalecer sobre a liberdade religiosa, já que apesar de aquela ter sido má empregada pelo seu excesso, pode se constituir em uma das vias que ajuda a solucionar a intolerância religiosa por meio do contra discurso dos muçulmanos quanto às publicações do Charlie Hebdo, além da possibilidade da retratação por esse jornal, gerando o diálogo aberto entre as culturas, demonstrando que desse direito surgem mais vantagens do que desvantagens.
A justificativa para essa conclusão também se ampara na clara percepção de que o ataque terrorista foi desproporcional, tanto por seu objetivo inválido por desrespeitar a ordem constitucional, quanto por sua total ausência de necessidade, observando que esse ato apenas causou desvantagens, atingindo, inclusive, o direito essencial à vida, estando esse tão bem descrito por Alexandre de Moraes (2015, p. 34): “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”, revelando a gravidade das consequências do terrorismo aos direitos fundamentais. Sintetiza-se, nesses termos, a subsunção da liberdade religiosa à liberdade de expressão.
CONCLUSÃO
É perceptível que os objetivos enumerados como resultados desta pesquisa monográfica foram alcançados. Inicialmente, tratou-se sobre a natureza dos direitos fundamentais, podendo se avaliar que em suas normas estão inseridas características que derivam de princípios e, portanto, havendo uma situação de conflito entre os mesmos, devem ser interpretados como “mandamentos de otimização”, ou seja, deveres prima facie, os quais são objetos de uma ponderação.
Assim, o objetivo de assimilação dos meios de resolução de conflitos entre direitos fundamentais utilizados no ordenamento jurídico brasileiro foi demonstrado através do princípio da proporcionalidade, o qual se baseia na análise de cada caso por meio da aplicação da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, tendo em vista ser essa a via aplicada pela doutrina quanto aos conflitos entre princípios.
Quanto às garantias reservadas ao povo através da liberdade de expressão, demonstrou-se que essa se constitui como o meio de formação da população para a sua intervenção em questões importantes da sociedade, como a participação política. Dessa forma, revela-se a importância desse direito, pelo qual se evita que os cidadãos permaneçam na ignorância, dando a possibilidade de transmissão de conhecimentos, opiniões, pensamentos e demais maneiras de expressão.
Já no que se refere às garantias contidas na liberdade religiosa, visualizou-se que esse direito gera a proteção à profissão de fé cultuada por cada religião, refletindo-se essa tutela na constituição brasileira por meio da imunidade tributária dos seus templos, a objeção de consciência por motivos religiosos, dentre outros mecanismos.
Por conseguinte, foi verificado qual direito deveria prevalecer, entre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, no atentado ao jornal Charlie Hebdo. Foi encontrado um resultado, sendo esse a predominância da liberdade de expressão por meio da averiguação do caso em questão pelo princípio da proporcionalidade.
Denotou-se que apesar de o jornal francês ter abusado no uso do direito da liberdade de expressão, a reação dos terroristas não foi adequada, pois, devido o desrespeito à ordem constitucional, sua conduta não teve validade, já que infringiu normas de suma importância, como o direito à vida. Além disso, foi uma medida desnecessária, posto que foi o modo mais agressivo de se combater aos excessos dos jornalistas, inclusive, não retirou desses o entendimento de rechaçar os limites à faculdade de exprimir seus pensamentos.
Finalmente, observou-se a ausência de proporcionalidade, tendo sido encontradas apenas desvantagens na resposta dos terroristas, já que não foram constatados benefícios, mas tão somente o sacrifício de direitos mais importantes, não sendo, portanto, viável que se tutele a liberdade religiosa em detrimento da vida, da segurança e da paz mundial.
Essa conclusão se baseia no entendimento de que a mensagem transmitida pela religião islã, tendo sido essa distorcida pelos fundamentalistas para justificar a barbárie, prega o bem, a paz, a fraternidade e o amor, estando totalmente desvinculada da atitude dos terroristas na citada situação e, por isso, aqui não é cabível que prevaleça a liberdade religiosa.
Destarte, nota-se que foi cumprido o objetivo geral de analisar o atentado ao jornal Charlie Hebdo à luz dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e à liberdade religiosa, tendo este trabalho científico repercussão positiva, pois o debate estabelecido sobre o confronto de direitos fundamentais apresentou como o Direito pode agir de forma concreta para solucionar casos à nível mundial, estando além da visão de resolução de litígios entre o juiz e as partes.
Também se evidenciou que para sanar, tanto com os discursos de ódio, como com os recorrentes ataques terroristas, deve-se investir no estudo sobre as culturas para se estabelecer um diálogo que gere uma compreensão mútua sobre as diferenças entre o ocidente e o oriente, além da aplicação de um valor indenizatório de caráter educacional a fim de evitar os excessos da liberdade de expressão.
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{C}[1]{C} Alguns doutrinadores, como George Marmelstein, criticam a expressão “geração” e preferem se referir como “dimensão”, tendo em vista, justamente, que uma fase de aquisição de direitos não anula a anterior. Apesar de ter ciência acerca da crítica, por ser uma nomenclatura clássica, será feita referência neste estudo sobre as gerações de direitos fundamentais.
{C}[2]{C} É uma liberdade fundamental extremamente preciosa, pois sua existência é uma das garantias essenciais do respeito aos demais direitos e liberdades que asseguram a soberania nacional.
{C}[3] Protestos que se iniciaram com manifestações estudantis, evoluindo para uma greve de trabalhadores, causando crise no governo do então presidente da França, Charles de Gaulle. (ACARY, 2008, p. 203-209).
{C}[4] Guerra santa