Distorções relativas ao Sistema Prisional - “Anuário Brasileiro de Segurança Pública”

19/10/2020 às 21:39
Leia nesta página:

Análise de imprecisões / omissões constantes do “Anuário Brasileiro de Segurança Pública” 2020, especialmente sobre o número de pessoas presas, e sobre a cor / raça destas pessoas submetidas ao sistema prisional.

Como está escrito nas ESCRITURAS, “pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7:16-18). Portanto, conhecendo as fontes apoiadoras de análises produzidas, pode-se ter uma noção da qualidade dos resultados divulgados.

No caso, específico, estamos fazendo referência ao “Anuário Brasileiro de Segurança Pública” veiculado agora em outubro de 2020, elaborado pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Que tem dentre seus apoiadores, duas entidades internacionais de grande poder econômico, cujos objetivos reais são bastante questionáveis (Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-final.pdf; acesso em out 2020).

Este “Anuário” vem marcado por, no mínimo, várias imprecisões, que podem conduzir o leitor desavisado a formar convicções imprecisas sobre a realidade do sistema prisional brasileiro. Para não estender demasiadamente este texto, faremos apenas a indicação de algumas destas “imprecisões” que marcam este “Anuário”.

A primeira delas pode ser encontrada na p. 306, cuja transcrição é necessária para que se compreenda melhor o raciocínio:

“Os dados disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional confirmam, mais um ano, a orientação encarceradora da política criminal brasileira. De um total de 744.216 presos no país em 2018, passou-se para 755.274 em 2019, o que representa uma taxa de 359,4 presos por 100 mil habitantes.”

Este “Anuário”, portanto, alega que, com base em dados de 2019, extraídos do Departamento Penitenciário Nacional, haveria 755.274 pessoas presas no país, em razão da “orientação encarceradora da política criminal brasileira.”

Esta informação NÃO corresponde a realidade, e o tal “Anuário”, não esclareceu que, por mais que os números de pessoas que estejam (de alguma forma) submetidas ao sistema prisional (em razão da prática de ilícitos penais) possam realmente girar em torno desta cifra, comporta variações de situações jurídicas. A depender, por exemplo, do regime de cumprimento de pena a que estejam submetidos (Código Penal, art. 33).

Este dado pode parecer irrelevante aqueles que não são iniciados no mundo forense. Porém, para estudiosos e pesquisadores do tema, é absolutamente inconcebível que não sejam levados em consideração nestas análises.

Desta forma, com base nos próprios dados do Departamento Penitenciário Nacional, que é vinculado ao Ministério da Justiça (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, SISDEPEN, disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen, acesso em out 2020), seguindo a base de dados que compreende o período de julho a dezembro de 2019, tem-se os seguintes dados, aqui analisados resumidamente: TOTAL de pessoas submetidas ao sistema prisional 748.009. Sendo que, destas, 362.547 estão no denominado regime FECHADO, 133.408 no regime SEMIABERTO, 25.137 no regime ABERTO, e 222.558 em prisões provisórias (como prisão preventiva).

Ou seja, em uma análise superficial já é possível constatar que, rigorosamente presos / encarcerados, estão aqueles do regime FECHADO, 133.408 + 222.558 em prisões provisórias (como prisão preventiva), o que totaliza algo em torno de 355.966 pessoas realmente “presas”. Número bastante inferior ao indicado pelo tal “Anuário” de mais 755.000 “presos”.

Posto que, nos demais regimes como semiaberto e aberto, na grande maioria dos casos (dependendo de fatores inerentes a execução penal) os presos podem sair do estabelecimento prisional e trabalhar ou estudar, e depois retornarem. Ou mesmo sequer serem presos, como no regime aberto. E mais, em não havendo vaga no regime de cumprimento de pena adequado, por força de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os presos devem ser colocados em PRISÃO DOMICILIAR (que obviamente pressupõe que a pessoa fique “presa” na sua própria casa), por força de aplicação da Súmula Vinculante n° 56.

Noutras palavras, por mais que formalmente estas pessoas todas que integram os aludidos 748.009 estejam “presas”, na verdade, em grande parte não estão “presas”. Pelo menos não no significado linguístico do termo preso / encarcerado. Sendo erro grosseiro uma pesquisa que ser considerada referência, não tratar destas variantes.

Outra evidente imprecisão contida neste “Anuário”, refere-se aos PERCENTUAIS de pessoas negras presas em comparação com pessoas “não-negras”, que vem descrita na p. 307, abaixo reproduzida:

“...Por outro lado, quanto à raça/cor, identificamos também uma forte concentração entre a população negra. Em 2019, os negros representaram 66,7% da população carcerária, enquanto a população não-negra, aqui considerados brancos, amarelos e índigenas, segundo a classificação adotada pelo IBGE, representou 33,3%. Isto significa que para cada não-negro preso no Brasil em 2019, 2 negros foram presos. É um pouco mais que o dobro, quando comparado aos não-negros, em especial os brancos.,, Ou seja: verifica-se que, as prisões no Brasil estão se tornando, ano a ano, espaços destinados a um perfil populacional ainda mais homogêneo. No Brasil, se prende cada vez mais, mas, sobretudo, cada vez mais pessoas negras. Assim, se há algum tipo de política de desencarceramento sendo realizada, ela vem atingindo com mais intensidade a população carcerária identificada pela raça/cor branca.”

Antes de mais nada, não se pretende aqui refutar a constatação de que, infelizmente, no país ainda ocorrem episódios de discriminação / preconceito racional em alguns segmentos. O que não significa afirmar, que exista no país uma política deliberada de encarceramento de pessoas negras.

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Mas vamos aos dados (contra os quais é difícil argumentar em contrário), e que foram OMITIDOS no referido “Anuário.”

De início, lastreado em informações do próprio IBGE (citado no referido “Anuário”), faz-se necessário uma distinção entre população negra e parda, não sendo correto (seguindo esta matriz de dados) juntar estas duas classificações (negros e pardos) em apenas uma (negros), como o fez o tal “Anuário.”

A este respeito, o IBGE não apenas faz esta distinção, mas inclusive esclarece que, ao longo dos anos, a população classificada como “branca” vem diminuindo, enquanto a população de negros e pardos vem aumentando no país (Disponível emhttps://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-populacao-chega-a-205-5-milhoes-com-menos-brancos-e-mais-pardos-e-pretos, acesso em out 2020):

“Entre 2012 e 2016, enquanto a população brasileira cresceu 3,4%, chegando a 205,5 milhões, o número dos que se declaravam brancos teve uma redução de 1,8%, totalizando 90,9 milhões. Já o número de pardos autodeclarados cresceu 6,6% e o de pretos, 14,9%, chegando a 95,9 milhões e 16,8 milhões, respectivamente. É o que mostram os dados sobre moradores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2016, divulgados hoje pelo IBGE.

Nas pesquisas domiciliares do IBGE, a cor dos moradores é definida por autodeclaração, ou seja, o próprio entrevistado escolhe uma das cinco opções do questionário: branco, pardo, preto, amarelo ou indígena.

A pesquisa mostra que, entre 2012 e 2016, a participação percentual dos brancos na população do país caiu de 46,6% para 44,2%, enquanto a participação dos pardos aumentou de 45,3% para 46,7% e a dos pretos, de 7,4% para 8,2%.

Há marcantes diferenças regionais na distribuição da população por cor ou raça, o que pode ser explicado pelo processo de ocupação do território. No Sul, 76,8% da população se declarou branca, 18,7% parda e apenas 3,8% preta. Por outro lado, na região Norte, 72,3% da população se declarou parda, 19,5% branca e 7,0% preta.”

Vale dizer, se o critério de PROPORCIONALIDADE for levado em consideração nas análises sobre a população carcerária, o aumento da população negra e parda no pais, pode (EM CERTA MEDIDA) ajudar a compreender porque, proporcionalmente, pode ter havido o correspondente aumento da população carcerária.

Assertiva que pode ser corroborada com base nas afirmações acima da própria Agência de Notícias do IBGE, quando esclarece que, nos Estados do SUL, a população dos autodeclarados brancos é superior a de negros e pardos.

Ora, se no SUL a população dos autodeclarados brancos é superior a de negros e pardos, então, pela PROPORCIONALIDADE, também a população carcerária de brancos deveria ser maior, correto? CORRETO, e é exatamente isso que ocorre, mais uma vez escorado na base de dados do Departamento Penitenciário Nacional, (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, SISDEPEN, disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen, acesso em out 2020).

Que indica que, nos TRÊS Estados do Sul, a população branca é majoritária no sistema carcerário (aba “Composição da População por Cor / Raça no Sistema Prisional”, período de Janeiro a Junho de 2020):

OBS: não foi possível adicionar os respectivos gráficos neste espaço, porém estes gráficos podem ser acessados consultando as referências acima indicadas:

PARANÁ: 56,55% pessoas brancas submetidas ao sistema prisional

SANTA CATARINA: 59,99% pessoas brancas submetidas ao sistema prisional

RIO GRANDE DO SUL: 65,89% pessoas brancas submetidas ao sistema prisional

O que se depreende, portanto, é que por mais que se deva repudiar toda e qualquer sorte de discriminação / preconceito, o fato é que as análises que são feitas devem procurar examinar com cautela os dados disponíveis. E mais, estes estudos e pesquisas precisam ser pautados pela isenção e honestidade intelectual. Oferecendo esclarecimentos relevantes, escoradas nas bases de informações disponíveis, não omitindo e não direcionando estes estudos para fins específicos. que podem confundir, e escalonar o nível de tensão da população destinatária destas informações.

Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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