O novo código de trânsito

21/10/2020 às 08:50
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Considerações sobre o Novo Código de Trânsito

A Acrimesp, a valorosa associação dos criminalistas, continua a cumprir o principal de seus preceitos estatutários: reunir os que professam a advocacia criminal, ensejando-lhes a oportunidade de ampliar seus conhecimentos técnico-jurídicos, mediante a lição de abalizados e conspícuos doutrinadores. O espírito acadêmico e o amor dos estudos hão de figurar sempre entre os pressupostos objetivos tradicionais da agremiação.

Nessa conformidade, promoveu no dia 12 de setembro de 1992, por seu departamento cultural, concorrido simpósio a respeito do anteprojeto de lei do novo Código Brasileiro de Trânsito. Foi seu expositor-mor o Dr. Ciro Vidal, Diretor do Detran e professor na Academia de Polícia Civil de São Paulo. Em longa, substanciosa e agradável palestra, afirmou Sua Excelência que o sistema do Código é de feição eminentemente brasileira, ainda que lhe tenham servido de arquétipo os mais acabados monumentos legislativos alienígenas.

A primeira preocupação do legislador, declarou o conferencista, foi espertar no indivíduo a consciência de que não pode transformar uma das mais preciosas conquistas de nosso tempo, que é o automóvel, em instrumento de violência e destruição. Dentre as maiores causas de morte, na atualidade, incluem-se, com efeito, os acidentes de trânsito[1].

A filosofia do anteprojeto consistiu, portanto, em aperfeiçoar as regras de circulação e prover à segurança do cidadão e da sociedade.

Para atenuar os efeitos da violência do trânsito, estabeleceram-se penalidades que atendessem ao intuito de reprimir o infrator e desestimular condutas transgressoras.

A algumas infrações, definidas como de natureza gravíssima (v.g.: dirigir sob a influência do álcool ou entorpecente, disputar corrida por espírito de emulação, confiar a direção do veículo a quem não seja habilitado, etc.), foram cominadas, cumulativamente, penas administrativas de multa, apreensão do veículo e suspensão do direito de dirigir.

Certas condutas, dantes impuníveis, incorrem agora na censura do direito repressivo, como entregar a direção de veículo a pessoa não-habilitada: pena detentiva de 3 meses a 1 ano.

Encerrou o distinto orador sua exposição, protestando que, embora sujeito às imperfeições inerentes às obras humanas, o anteprojeto, de que foi um dos artífices, venceu os estádios mais avançados que a moderna política de trânsito ainda atingiu.

Tratando “ex professo” da parte relativa às infrações penais, a Dra. Maria Lúcia Pizzotti Mendes, Juíza de Direito da 25a. Vara Criminal e exímia cultora da ciência jurídica, também participante do fórum de debates, pôs em relevo dois pontos do novo diploma legislativo: o valor extremado das penas pecunárias, a operar como elemento inibidor das violações das normas de trânsito e, em antítese, o acoroçoamento à prática de ações louváveis à luz da ética e da solidariedade humana, como se colhe do teor literal do art. 173: “Ao condutor de veículo, nos casos de acidente de trânsito de que resulte vítima, não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá fiança, se prestar pronto e integral socorro àquela”[2].

Nisso de multas — interveio o Dr. Flávio D’Urso (que era igualmente do número dos conferencistas) —, importava considerar que, em razão de seu valor excessivo, desdizia da cruciante realidade socioeconômica nacional. A imposição da pena pecuniária, no grau em que a fixou o anteprojeto, não faria mais que sujeitar o motorista infrator a um estado de insolvência, compelindo-o a entregar o próprio veículo para acudir ao seu recolhimento. Situações que tais lhe pareciam quebrantar as salutares regras da equidade!

Ao demais, se qualquer agente for o que pratique o ato administrativo da aplicação da multa, estará sob grande risco a segurança dos negócios jurídicos, pois que os impulsos da verdade poderão ceder o passo ao arbítrio, à discrição e à alicantina. Era preciso ter mão, pois!

A essas ponderações do nobre diretor do departamento cultural da Acrimesp, a que não escasseavam bons foros, contrapôs-se o parecer do arguto criminalista Dr. Mário de Oliveira Filho, para quem unicamente na multa de cunho draconiano é que se houvera de achar o remédio heroico à desobediência das regras de trânsito. Muito a propósito evocou a figura legendária do ex-prefeito Jânio Quadros, que, à força de postura na qual estipulara multas exacerbadas aos infratores, pôs cobro ao sestro de motoristas paulistanos que deixavam seus carros estacionados sobre calçadas. O temor do castigo pecuniário era o que os movia à emenda[3].

Mas, fundamental que é a disciplina do motorista e do pedestre na solução do caos do trânsito, urge educá-los desde a puerícia. Esta, a mensagem que o último dos oradores, advogado e psicólogo Dr. Salomão Rabinovich, insinuou no espírito de todos os ouvintes, como a adverti-los de que na tenra idade é que se deve moldar o caráter das crianças e educá-las para o bem.


Notas

[1] Mais vítimas tem causado o automóvel do que os conflitos mundiais. Nos EUA, conforme estatística de 1970, o número de óbitos foi superior a 10 anos de guerra no Vietnã; no Brasil, nesse mesmo período, os acidentes de trânsito, numa única semana, ceifaram tantas vidas, quantos foram os brasileiros que tombaram no teatro da 2a. Grande Guerra: 470 (cf. Valdir Snick, Acidentes de Trânsito, 1978, p. 3).

[2] “Como para os vícios há castigos, para as virtudes há prêmios”, discursou o eloquente Cícero (cf. Bluteau, Vocabulário, t. VI, p. 698).

[3] É a teoria da intimidação de Filangieri e outros, segundo a qual “a pena é cominada e aplicada para aterrar e afastar do crime os espíritos tendentes ao mal” (cf. Fernando Nery, Lições de Direito Criminal, 3a. ed., p. 350).

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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