O EXERCÍCIO DE ATIVIDADE REMUNERADA DURANTE O GOZO DE LICENÇA MÉDICA NO ESTATUTO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS CIVIS DO ESTADO DE SÃO PAULO

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21/10/2020 às 13:26

Resumo:


  • O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo proíbe a realização de atividades remuneradas durante o período de licença médica, sob pena de cassação da licença e demissão por abandono de cargo.

  • A legislação estabelece que a licença médica é concedida para repouso e reconstituição da saúde, sendo o exercício de outra atividade remunerada uma violação que pode acarretar sanções disciplinares.

  • A aplicação das penalidades deve considerar a gravidade da infração, os danos ao serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais do servidor, respeitando os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Busca-se identificar o respectivo ilícito disciplinar, no caso de exercício de atividade remunerada durante o gozo de licença para tratamento de saúde, nos termos do art. 187, da Lei Estadual 10.261/68.

O EXERCÍCIO DE ATIVIDADE REMUNERADA DURANTE O GOZO DE LICENÇA MÉDICA NO ESTATUTO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS CIVIS DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

I – INTRODUÇÃO

 

                            É consabido que o serviço público, dada sua natureza e particular relevância, não pode sofrer interrupções, devendo se manter regular e constante, razão pela qual acentuava Marcello Caetano que o primeiro dever do funcionário no exercício do cargo consiste na permanência e assiduidade no serviço.[1]

                            Nesse contexto, no qual a presença do servidor público em seu local de trabalho está ligada intimamente ao indene desenvolvimento de suas atividades, a concessão de licenças enseja detida reflexão.

                            A propósito, de acordo com o magistério de Odete Medauar, as licenças, também denominadas afastamentos, são períodos em que o servidor deixa de exercer atribuições de seu cargo, função ou emprego, por razões apontadas na lei. [2]  

                            Ressalta a mencionada autora que algumas licenças configuram direitos do servidor, [3] enquanto outras a concessão dependerá de apreciação de mérito pela autoridade administrativa. [4]

                            Especificamente dentre aquelas que ensejam a análise de mérito encontra-se a licença-saúde, prevista no Estatuto Paulista, em seu artigo 191 e seguintes e que dependerá, em regra, de prévia inspeção médica oficial. 

                            Depreende-se, portanto, que a concessão de licenças, a despeito do respaldo legal, caracterizará sempre uma situação excepcional que autorizará o servidor público a se afastar de suas atividades, consoante o escólio de Edmir Netto de Araújo; in verbis: [5]

         [...] As licenças funcionais, agasalhadas de maneira similar (mas não idêntica) pelos estatutos, têm nítido caráter de exceção, além de serem ‘intuitu personae’, geralmente concedidas mediante requerimento do servidor, a qualquer tempo em que se verifiquem os pressupostos legais  [...]

                            Nesse terreno de exceção, a licença-saúde, segundo o escólio do aludido autor será concedida:

         [...] sem prejuízo da remuneração, ao servidor impossibilitado por motivo de saúde a exercer normalmente seu cargo, concedida a pedido ou ‘ex officio’, submetendo-se a inspeção oficial ... e ao tratamento previsto por essa inspeção [...]

                            Evidencia-se, destarte, que a concessão da aludida licença médica estará condicionada a uma prévia análise de mérito, na qual o órgão oficial concluirá ou não, se o motivo de saúde alegado se mostra suficiente para justificar o afastamento.

                            Os objetivos da excepcional concessão seriam: (i) o repouso e reconstituição da saúde e (ii) a realização do tratamento indicado.[6]

                            Por consequência, a princípio, o descumprimento desses objetivos, máxime no tocante ao exercício de outra atividade remunerada implicaria numa deslealdade para com a Administração.

 

II - OUTRAS LEGISLAÇÕES

 

                            Dado o caráter de exceção, bem como de seus claros objetivos, a vedação ao trabalho remunerado durante o gozo de licença médica é encontrada em praticamente todos os diplomas legais.

                            Variam, contudo, os textos legais que disciplinam essa proibição.

 

                            Há disposições legais que simplesmente vedam a atividade remunerada no durante o período de licença, sem qualquer previsão explícita a uma sanção. É o caso, por exemplo, do art. 88, §3º, do Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado de Tocantins; in verbis:

         [...] art. 88 - § 3º Não é permitido o exercício de atividade remunerada durante os períodos das licenças previstas nos incisos I, II, III e IV [...][7]

 

                            No mesmo sentido, prevê o Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Piauí, Lei 13/94, art. 75, § 4º.:

         [...] art. 75 - § 4º.  É vedado o exercício de atividade remunerada durante o período da licença para tratamento da própria saúde ou de pessoa da família [...]

 

                            Noutras legislações, além da vedação é possível constatar a previsão expressa das sanções advindas de seu descumprimento. É o caso, por exemplo, do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Poder Executivo, das Autarquias e das Fundações Públicas do Estado de Mato Grosso do Sul, Lei 1.102/90, que em seu artigo 140, expressamente dispõe:

         [...] No curso da licença para tratamento de saúde, o funcionário abster-se-á de atividade remunerada, sob pena de interrupção da licença, com perda total do vencimento, desde o início dessas atividades e até que reassuma o cargo [...]

                           

                            Semelhante disposição é encontrada no Município de São Paulo, na qual a Lei 8.989/79, em seu artigo 140, não só estabelece a proibição, como também menciona a responsabilidade do servidor; a saber:

[...] Art. 140 - O funcionário licenciado para tratamento de saúde não poderá dedicar-se a qualquer atividade remunerada, sob pena de ter cassada a licença e ser promovida sua responsabilidade [...]

 

                            No Paraná, o Regime jurídico dos funcionários civis do Poder Executivo, Lei 6.174/70, em seu artigo 226, impõe a interrupção da licença e a perda total do vencimento ou remuneração; a saber:

         [...] Art. 226. No curso de licença para tratamento de saúde, o funcionário abster-se-á de atividade remuneradas, sob pena de interrupção da licença, com perda total do vencimento ou remuneração, até que reassuma o cargo [...]

        

                            Semelhante redação é encontrada no Amazonas, onde o  Estatuto dos Funcionários Públicos Civis, Lei 1.762/86, em seu artigo 70, expressamente estabelece:

         [...] Art. 70 - O funcionário licenciado para tratamento de saúde não poderá dedicar-se a qualquer atividade remunerada, sob pena de imediata suspensão da licença, com perda total de vencimento e vantagens, até reassumir o cargo [...]

 

                             Em Sergipe, o Regime Jurídico dos funcionários públicos civis do Estado,  Lei 2.148/77, em seu artigo 120, estabelece:

 

         [...] art. 120. É vedado o exercício de atividade remunerada ao funcionário licenciado para tratamento de saúde própria ou de pessoa da sua família.

§ 1º. A inobservância da vedação estabelecida por este artigo acarretará a cassação da licença e a restituição, ao Estado, das quantias indevidamente recebidas.

§ 2º. Cassada a licença, o funcionário reassumirá imediatamente o exercício, sujeitando-se à demissão por abandono de cargo, se a reassunção não se operar no prazo de 30 (trinta) dias [...]

 

                            Possuidor de uma técnica refinada e que atende tanto às necessidades do servidor quanto ao interesse público, o Estatuto dos Servidores Públicos do Quadro Geral de Pessoal do Município de Belo Horizonte Vinculados à Administração Direta, Lei 7.169/96, em seu artigo 141, expressamente dispõe:

         [...] O servidor que se encontrar licenciado nas hipóteses especificadas nos incisos I, II, III e IV do art. 140 desta Lei não poderá, no prazo de duração do afastamento remunerado, exercer qualquer atividade remunerada incompatível com o fundamento da licença, sob pena de imediata cassação desta e perda da remuneração, até que reassuma o exercício do cargo, sem prejuízo da aplicação de penas disciplinares cabíveis [...] [8]

                  

                            O preciso texto legal de Belo Horizonte contempla as seguintes situações:

                   1ª. proibição de exercício de atividade remunerada;

                   2ª. proibição de atividade remunerada incompatível com o fundamento da licença;

                   3ª. cassação imediata da licença concedida;

                   4ª. perda da remuneração percebida;

                   5ª. ressalvada a aplicação de sanções de caráter disciplinar.

                 

                   A vedação, a devolução da remuneração percebida e a cassação da licença não trazem grandes novidades; porém, os outros dois pressupostos merecem breve exame.

 

                   O primeiro diz respeito à atividade remunerada exercida, cuja proibição se acha condicionada à incompatibilidade com o fundamento da licença. Assim, por exemplo, se um profissional da saúde obtém uma licença por conta de problemas de ordem psiquiátrica, em razão de trabalhar num plantão de um hospital público, lhe seria vedado, durante o período da licença, trabalhar em um hospital particular, também no setor de pronto atendimento.

 

                   O segundo aspecto a merecer atenção, diz respeito à expressa previsão da ressalva "aplicação de sanção de ordem disciplinar." Não estabelecendo o referido estatuto qual seria a falta disciplinar cometida, delegou à Administração Pública a correta tipificação.

 

 

III – DA PREVISÃO LEGAL NO ESTADO DE SÃO PAULO

 

                            A exemplo da vedação prevista em diversos diplomas legais, no Estado de São Paulo, a Lei 10.261/68, em seu art. 187, assim regulou a matéria:

 [...] artigo 187 - O funcionário licenciado nos termos dos itens I e II do art. 181 não poderá dedicar-se a qualquer atividade remunerada, sob pena de ser cassada a licença e de ser demitido por abandono do cargo, caso não reassuma o seu exercício dentro do prazo de 30 (trinta) dias [...][9]

        

                   Nesses termos, de acordo com expressa previsão legal, o exercício de atividade remunerada durante o período de licença para tratamento de saúde (art. 181, inciso I, da referida lei) ou quando o servidor se acidentar no exercício de suas atribuições ou, ainda, caso venha a ser acometido por doença profissional (art. 181, inciso II, do aludido diploma legal) , ensejaria duas consequências:

                   1ª. Cassação da licença;

                   2ª. Demissão por abandono de cargo.

 

                   A cassação da licença, por se tratar de uma questão de saúde,[10] teria de ser antecedida de uma nova avalição médica.

 

                   A segunda consequência legalmente prevista é a demissão. Todavia, esta hipótese, nos estritos limites traçados pelo referido artigo 187, está reservada apenas para a caracterização da falta de abandono de cargo.

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                   Ademais, a demissão está condicionada a uma questão temporal, que consiste em não reassumir o cargo no prazo de trinta dias.

 

                   Ocorre que na descrição legal não há definição de qual será o termo inicial dessa contagem; concluindo-se que, para seu início, deverá a Administração Pública proceder à notificação do servidor licenciado.

 

                   Outro ponto de extrema relevância refere-se ao fato de que não há qualquer referência legal à pena de demissão como consequência direta e imediata do exercício de uma outra atividade remunerada.

 

                   A vedação existe, isso é inegável. Porém, a eventual caracterização  (i) de um mero descumprimento de um dever legal (que ensejaria a pena de repreensão – art. 253),  (ii) de uma falta grave  (que ensejaria uma pena de suspensão – art. 254) ou de um (iii) procedimento irregular de natureza grave (que ensejaria uma pena de demissão – art. 256, inciso II), irá depender da análise do caso concreto, na qual dever-se-á aferir o grau de censurabilidade que a conduta do servidor  ensejar.

 

                   Caso não fosse essa a intenção do legislador, por certo teria inserido a proibição de exercício de atividade remunerada durante o gozo de uma licença-saúde entre os artigos 242, 243 e 244, da Lei 10.261/68.[11]

 

                   A título de mera sugestão, essa tipificação original pode utilizar como parâmetro as circunstâncias previstas no Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado de Tocantins, Lei 1.818/07, art. 153; in verbis:

         [...] art. 153. Na aplicação das penalidades, são considerados a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, a repercussão do fato, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais do servidor, assim como a reincidência [...]

 

IV - ATIVIDADE REMUNERADA DURANTE A LICENÇA MATERNIDADE

 

                   O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo, nos casos de exercício de atividade remunerada durante o gozo de licença maternidade, adota um critério menos gravoso.

 

                   De fato, em consonância com o disposto no art. 198, inciso II, da Lei 10.261/68, restará caracterizada a falta grave, caso a gestante, durante o período da licença maternidade, venha a exercer qualquer atividade remunerada ou mantiver a criança em creche  ou organização similar.

 

 

V - PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE

 

                   Há precedentes jurisprudenciais, nos quais o exercício de atividade remunerada foi reconhecido como falta disciplinar passível de demissão.[12]

                   No entanto, como já restou consignado, o exercício de atividade remunerada durante a fruição de licença médica, nos estritos limites estabelecidos pela legislação paulista, não implica necessariamente numa tipificação de tamanho rigor, devendo-se, em respeito aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, analisar minuciosamente todas as circunstâncias em que a falta ocorreu. Por certo não se pode equiparar, por exemplo, o exercício de uma atividade de cunho terapêutico ou mesmo que não apresente qualquer relação com os fundamentos da licença original, com uma maliciosa simulação, na qual o servidor consegue levar a erro os médicos, objetivando exclusivamente dedicar-se a outro labor.

 

                   Nessa direção, a título de exemplo, destaca-se a decisão adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, na qual, após exame minudente das circunstâncias em que a falta ocorreu, entendeu-se proporcional e razoável a pena de advertência, aplicada a um servidor do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que, em licença médica, ministrou aulas em um curso privado. O v. Acórdão, em determinado trecho, reconheceu:

         [...]Assim, em vez de repousar e se restabelecer para retornar ao trabalho perante a Administração Pública, o então servidor público ministrava aulas em um curso privado, o que também acarretou uma sobrecarga de trabalho aos demais servidores públicos. A Comissão Processante ainda ressaltou que, como as aulas já estavam agendadas quando da concessão da licença, a ocultação dessa informação à Administração Pública demonstrou a má-fé do servidor  [...]

                   Superior Tribunal de Justiça, RMS 28695 / DF – Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, 2009/0012114-2, Relator Ministro FELIX FISCHER, Órgão Julgador T5 - Data do Julgamento 24/11/2015.

 

 

VI - CONCLUSÃO

 

                   O art. 187 da Lei 10.261/68 peca por suas imprecisões, máxime ao não ressalvar, a exemplo do Estatuto de Belo Horizonte, que a atividade remunerada vedada é aquela incompatível com o fundamento da licença.

                   Não obstante, é certo que a indene tipificação da conduta a ser imputada deverá obedecer a um criterioso exame de todas as circunstâncias em que o fato se apresenta, o que pode desencadear uma mera sindicância (nos casos de descumprimento de dever ou falta grave)  ou um processo administrativo disciplinar (nos casos extremos, nos quais a deslealdade restar patente).

                   Assim procedendo, a Administração Pública estará atuando em consonância com os princípios da legalidade, proporcionalidade e razoabilidade.

                   Especificamente no caso de licença maternidade, por conta de limite imposto pela lei, somente poderá ser imputada à servidora a prática de falta grave.         

                  

 

Messias José Lourenço

Procurador do Estado de São Paulo, aposentado

Mestre em Processo Penal pela USP

Professor da Academia de Polícia Militar do Barro Branco

 

Sobre o autor
Messias José Lourenço

Procurador do Estado de São Paulo - Aposentado; Mestre em Processo Penal - USP ex Professor da Academia de Polícia Militar do Barro Branco - SP. Sócio do Escritório: Lourenco & Batista Advocacia e Consultoria Especializadas. E-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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